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O que Luc Boltanski tem a oferecer a Pierre Bourdieu e a Bernard Lahire?

avanço substancial para as ciências sociais porque fornece, além de um vasto complexo categorial, a possibilidade de tomar o próprio ofício do cientista social como objeto. Ademais, esse arcabouço colaborou para o desenvolvimento de uma sociologia crítica que permite ao pesquisador desfetichizar a experiência dos atores comuns. Boltanski (2011) comenta que a sociologia bourdieusiana nos permite ver com mais clareza, acima de tudo, as facetas intoleráveis da realidade.

A sociologia lahireana possibilita, por sua vez, avançar ainda mais, pois ao analisar as trajetórias individuais estende as capacidades críticas e reflexivas aos mais diversos atores. Isso ocorre dado a impossibilidade de negar os constantes eventos que suscitam os questionamentos sobre as condições objetivas e subjetivas que eles possuem no mundo social, condicionantes que influenciam em maior ou menor as capacidades para a ação. A pluralidade dos processos de socialização engendrados pela interação entre os patrimônios de disposições incorporadas nos indivíduos e quadros contextuais constroem, dialeticamente, atores também plurais. Para Lahire, todavia, os atores se tornam plurais por conta de processos prioritariamente orientados pelo mundo objetivo, logo, a capacidade reflexiva dos indivíduos fica secundarizada. Explicita-se aí uma lacuna teórico-conceitual, uma vez que a capacidade subjetiva de agência e modificação da realidade social fica, mesmo a nível dos indivíduos, em segundo plano, em detrimento à continuidade das estruturas incorporadas.

Outrossim, acredita-se que essa lacuna pode ser preenchida por um arcabouço que trate como os indivíduos são reflexivos no seu cotidiano, como tal dinâmica ocorre e se

73 expressa por meio das práticas. A sociologia da crítica proposta por Luc Boltanski fornece, assim, o aparato para um duplo movimento, pois na medida que possibilita preencher a lacuna citada também permite compreender os processos que os indivíduos empreendem subjetivamente e objetivamente para justificar e criticar suas ações e as de outrem. Essa dinâmica de justificação e crítica é preponderante para o entendimento sobre as capacidades individuais de aderir ou mudar a realidade social imediata, componente seminal de qualquer trajetória biográfica.

Nessa perspectiva, focalizam-se elementos conceituais específicos propostos por Boltanski (BOLTANSKI; THEVENOT, 1999, 2006; BOLTANSKI, 2011) que propiciam tal tarefa e, por isso, não se preocupa aqui em estabelecer os antecedentes da sociologia da crítica deste autor e seus pressupostos epistêmicos. Da mesma forma, não é também intenção descrever de maneira aprofundada outros elementos categoriais do autor como os regimes de justificação ou o conceito de cidades. Nosso foco é utilizar elementos argumentativos específicos do autor que permitem discutir a reflexividade de forma complementar às propostas de Bourdieu e Lahire.

3.14 “Somos todos reflexivos”

Inicialmente, Boltanski e Thévenot (1999, 2006) interpelam os enfoques mais difusos sobre o chamado acordo social, elemento central para a unidade simbólica de qualquer organização societária. Esse acordo não seria unicamente fruto da interiorização de expectativas normativas, como sugere a sociologia parsoniana, ou resultado de estruturas objetivas incorporadas, seguindo as proposições de Bourdieu. A explicação para o acordo viria, com efeito, do questionamento das categorias tradicionais como classe, estruturas ou mesmo sociedade e, enfatizaria, ficando mais próxima dos atores, as suas próprias experiências. Os autores tomam os grupos, por exemplo, não como conceitos explicativos do mundo social, mas como objetos a serem explicados. Esse questionamento se operacionaliza metodologicamente por meio do escrutínio dos juízos de valor que os atores fazem em momentos críticos (VANDENBERGH, 2006; CORREA; DIAS, 2016; NORDACHIONNE, 2017).

Os estudos de Boltanski demonstram que o ideal bourdieusiano de uma reflexividade que implicava no controle da subjetividade a partir da consciência da posição objetiva poderia ser engendrado não apenas por sociólogos, mas também pelos atores leigos. As capacidades de avaliar, criticar, classificar e justificar seriam compartilhadas

74 tanto por especialistas como leigos de forma e em graus diferentes empiricamente constatáveis (BOLTANSKI; THEVENOT, 2006; BOLTANSKI, 2011; CORREA, 2015). Além disso, os indivíduos muitas vezes justificam suas classificações em termos de coerência lógica e de justiça, o que denota que a prática e a apreciação dos fatos e valores não são efetivamente separáveis. Os atores procuram dar legitimidade pública a suas causas por meio da sua vinculação ao bem comum, afastando-as de interesses particulares. Essas demandas públicas são, por seu turno, fundamentadas em provas e objetos que as dotem de inteligibilidade, coerência e realidade. Para compreender os mecanismos que orientam a crítica e a justificação é necessário estudar não só esses movimentos, mas também seus componentes como as evidências e os dispositivos que os constituem (BOLTANSKI; THEVENOT, 2006; VANDENBERGH, 2006; CORREA; DIAS, 2016).

Dessa forma, a proposição de Boltanski emerge como um avanço, pois para estudar a reflexividade individual em sua amplitude, ele evidencia a necessidade de considerar duas características basilares. Primeiro, a reflexividade decorre dos desenvolvimentos do conceito de crítica, ou seja, esses conceitos são sinônimos e não desassociados. Segundo, e de maneira quase tautológica, é imperativo estender as competências críticas aos atores leigos, não sendo possível as restringir apenas aos sociólogos. Em maior ou menor grau, somos todos reflexivos (VANDENBERGH, 2006; NORDACHIONNE, 2017).

A reflexividade é engendrada quando ocorre algum problema, um distúrbio, uma situação na qual o acordo imediato se mostra impossível. Ou seja, o efeito histeresys é microssociológico e situacional (CORREA, 2015; CORREA; DIAS, 2016), o que cria o imperativo por novas justificativas (e também novas críticas) para o estabelecimento de um novo acordo sobre a realidade social. O estudo sociológico crítico passa a estudar também as manifestações e formas da crítica, logo, a sociologia da crítica de Boltanski não seria uma ruptura com Bourdieu ou Lahire, mas um desenvolvimento ao elevar a reflexividade como um possível fio condutor para a emancipação, algo que faz parte do processo que torna determinada realidade inaceitável e habilita, talvez, superá-la (BOLTANSKI, 2011).