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3 – A importância do Retrato: fontes iconográficas

“O significado atribuído pelas elites aos diversos objectos de que se rodeavam vem merecendo um crescente interesse por parte de alguns sectores da comunidade científica. (…). De facto, a encomenda de retratos esteve reservada às elites mais elevadas, especialmente até ao final do século XVIII, tendo-se assistido a uma abertura do perfil social dos retratados a partir do século XIX. Tomar a percepção da importância da joalharia figurada nos espécimes oitocentistas femininos e masculinos (…) objectivando-se a relevância de determinados espécimes de joalharia nesta ou naquela fase e de que modo funcionam como expressão de classe social. A vontade explícita de deixar para a posteridade a imagem da pessoa retratada, associada ao prestígio em vida que o retrato (…) constitui um dos meios mais curiosos de apurar o potencial simbólico desta expressão artística. (...) São muitos e diferenciados os objectivos que norteariam a execução de um retrato por uma personagem das elites. Para além da pujança das jóias que nele podem figurar, o retrato é naturalmente revelador (…) dos seus gostos e iconográficas enquanto meio comunicante da simbologia honorífica, e dos costumes de época.

162 SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, “Jóias, retratos e a iconografia das elites portuguesas de Oitocentos”, in Revista de História da Arte, n.º 5, Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2008, p. 259. Disponível em:

http://hdl.handle.net/10362/13242. Acedido a 04 de novembro de 2019.

87 Ao contrário do que fizemos no subcapítulo anterior, não nos propomos efetuar a uma análise individual de cada retrato, mas sim, recorrendo à observação dos mesmos, encontrar um ponto de partida devidamente fundamentado, para estabelecer a importância do retrato no período barroco em Portugal e as suas implícitas funções sociais, evidenciando as suas características mais marcantes e sumptuosas, os objetos de joalharia honorífica e os seus sentidos estilísticos.

Em Portugal o retrato em pintura destaca-se por volta do século XV, muito provavelmente através de artistas italianos, evidenciando claros indícios da chegada da cultura humanista.163 Essa representação do ser humano, na sua faceta efémera e material, quer seja coletiva ou individual, de corpo inteiro ou meio corpo, e nas suas mais diversas posições, teve, apesar dos mais variados recursos, o de dar protagonismo ao representado.164

Estratificada e composta por ordens, a sociedade do barroco cultivou desde sempre a iconografia, proporcionando e conferindo de forma visível às formas um significado e contextualizando a sua simbologia. É neste contexto que os distintivos de honra ou veneras, formam uma linguagem hermética, uma marca de posse e inerentemente de património, rico nas suas formas, materiais luxuosos e simbólicos. Esses ícones tornaram-se reflexo e resultado de uma extraordinária criação artística, extremamente fértil, o que por si só justifica o elevado investimento e a sua conversão em joias de impressionante esplendor.165

A complexidade das Ordens Militares e da sua hierarquia, dão às veneras/insígnias um valor simbólico sempre associado a valores de dignidade e poder, revestidos durante o período barroco por uma riqueza e magnificência tão típicos da produção de joalharia honorífica, repleta de criatividade e qualidade estética.166

163Cf. PEREIRA, Fernando António Baptista, História da Arte Portuguesa. Época Moderna (1500-1800), Lisboa, Universidade Aberta, 1992, p. 149.

164Cf.MORAIS, Maria Antonieta, Pintura nos séculos XVIII e XIX na Galeria de Retratos dos Benfeitores da Santa Casa de Misericórdia do Porto, Vol. I, Dissertação de Mestrado em História de Arte, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2001, pp. 4-8. Disponível em:

https://hdl.handle.net/10216/18490. Acedido a 15 de fevereiro de 2020.

165 Cf. PIMENTEL, António Filipe, “Honra e Esplendor: Da joalharia honorífica portuguesa do século XVIII”, in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, HERRADÓN FIGUEROA, Maria Antonia, (coord.), I Colóquio Português de Ourivesaria: actas, Porto, Círculo Dr. José de Figueiredo, 1999, pp. 196-197.

Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/85035. Acedido a 4 de novembro de 2019.

166 Idem.

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“A joia propriamente dita conteve sempre uma aura de magnificência, tendo sido preferencialmente executada em materiais nobres. Os privilégios da sociedade adornaram-se com objectos de ouro e prata destinados à ritualização das actividades religiosas, militares e civis.”167

O período barroco, caracterizou-se, entre muitas coisas, pela construção de uma imagem de poder, configurado por um modelo de apresentação criado por Luís XIV, onde o rei detinha um lugar de destaque, tendo a sua imagem um protagonismo especial enquanto objeto social e político. E é neste enquadramento tipicamente barroco, que temos de entender o retrato em Portugal ao longo dos séculos XVII e XVIII, representando não só o seu soberano, mas também, toda a personificação social e estatal envolventes.168

É através do retrato, nas suas múltiplas variantes, que constatamos o valor eminentemente simbólico e político da ostentação do luxo, projetados pelo monarca e do círculo que o rodeiam.169

O retrato, foi ao logo de todo o período barroco, um género muito presente que se multiplicou por diferentes campos artísticos, com encomendas abrangentes e diversificadas, desde a Casa Real, estendendo-se à nobreza, burguesia em ascensão, ordens religiosas, clero secular, e a alguns homens ilustres, usando diversos suportes e tipologias, consoante as funções sociais.170

Importa, contudo, referir, que em Portugal, ao longo dos séculos XVII e XVIII, o retrato assume-se através de uma simples conceção de cópia, por herança direta da expressão antiga de contrafacere, ou seja, de imitar, buscando intrinsecamente a essência e autenticidade dos retratados.171

167 TEIXEIRA, Madalena Braz, O Triunfo da Joalharia, Lisboa, Caleidoscópio, 2007, p. 11.

168 Cf. PIMENTEL, António Filipe, “Os pintores de D. João V e a invenção do retrato de corte”, Revista de História da Arte. Retrato, N.º 5, Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2008, pp. 133-135. Disponível em:

http://hdl.handle.net/10316/85067. Acedido a 04 de novembro de 2019.

169 Idem., p. 135.

170 Cf. GONÇALVES, Susana Cavaleiro Ferreira Nobre, A arte do retrato em Portugal no tempo do barroco (1683-1750): conceitos, tipologias e protagonistas, Tese de Doutoramento em História da Arte, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012, pp. 14-30. Disponível em:

http://hdl.handle.net/10451/8491. Acedido a 05 de março de 2020.

171 Idem., p. 44.

89 Para isso, muito contribuiu a vinda de artistas estrangeiros, nomeadamente franceses e italianos, sobretudo, para a corte lisboeta 172, e após o terceiro quartel do século XVII, assiste-se então à introdução e maturação de um novo conceito pictural, o do Barroco pleno, aberto a modelos internacionais. 173

Com uma estreita ligação ao Poder, o Retrato encontrou na encomenda régia e da alta aristocracia uma forte solicitação. 174

A produção artística tinha preferencialmente como objeto o rei absoluto, e a corte fazia-se de igual modo retratar pelos pintores régios, portugueses ou estrangeiros, que estivessem de momento ao seu serviço. Fora da corte, a produção de retratos encontrava-se junto dos altos dignitários da Igreja, encontrava-sendo os mesmos modelos de virtude e moral, e da tradicional. Desde sempre, a representação dos modelos retratados esteve vinculada ao seu prestígio moral e estatuto social.175

Toda a conceção do sistema de organização social, desde o século XVI até meados do XVIII, é a de uma monarquia absoluta, assente numa coletividade fortemente imbuída nos valores da caridade e do culto a Deus e à Virgem, estratificada em estados ou Ordens, que se distinguem entre si através de um complexo sistema de privilégios e isenções, vestuário e formas de tratamento, que acabavam por demarcar o estatuto de cada um. 176

A Coroa portuguesa do século XVIII, fortalecida pelas favoráveis condições económicas, devidas à descoberta de ouro no Brasil, tenta substituir-se progressivamente à Igreja como suporte estruturador social, criando leis (pragmáticas) que regulavam o luxo e os tratamentos honoríficos, apesar de estes últimos se verem sempre excluídos.177

As insígnias das Ordens Militares, incontornáveis ícones da honra e instrumentos simbólicos de poder na sociedade barroca, constituíam instrumentos de prestígio para os seus possuidores, numa sociedade que espelhava o soberano a quem prestavam

172 Cf. GONÇALVES, Susana Cavaleiro Ferreira Nobre, op. cit., p. 223.

173 Cf. GONÇALVES, Susana Cavaleiro Ferreira Nobre, op. cit., p. 246.

174 Cf. GONÇALVES, Susana Cavaleiro Ferreira Nobre, op. cit., pp. 431-432.

175 Cf. GONÇALVES, Susana Cavaleiro Ferreira Nobre, op. cit., p. 432.

176 Cf. PIMENTEL, António Filipe, “Honra e Esplendor: Da joalharia honorífica portuguesa do século XVIII”, (…), p. 178.

177 Idem, pp. 178-182.

90 vassalagem. Estes objetos eram instrumentos de domínio e de vínculo de lealdade entre o Rei e os seus vassalos, apelando implicitamente a uma dependência e coesão social.178

Nos retratos masculinos, há a salientar a presença de diversas tipologias de joias, apesar de, em muitos deles, nenhuma peça de joalharia poder ser encontrada. Alfinetes de gravata, botões de camisa, correntes de relógio, fivelas e insígnias (hábitos de laçar ao pescoço), revelavam-se as peças mais simples passíveis de visualizar neste tipo de pinturas oitocentistas.

A pintura de retrato assume o papel de eternização damemória iconográfica das personagens que, em diferentes épocas, posaram para a tela do pintor, isto é, um repositório de diversas realidades e contextualizações mentais da sociedade em que estão inseridas.

O retrato mostra-nos, não só o gosto de trajar, mas também o uso dado a cada elemento de joalharia e variedade das mesmas, constituindo-se como um dos mais importantes instrumentos da política de arte da corte. Constituindo-se de igual modo, como uma forma privilegiada de perceber de que modo as elites portuguesas fizeram incidir no retrato a adesão às correntes internacionais que nortearam a produção de joias oitocentistas.

Apesar de se verificar uma menor variedade de peças de joalharia masculinas, podemos aferir que o seu destaque cabe às expressões públicas de reconhecimento que o Estado emana, do qual as insígnias são claro e generoso testemunho. 179

Objetos de enobrecimento, fonte de proventos, de honra e reconhecimento social, os hábitos das Ordens Militares foram desde sempre cobiçados e apetecidos pela pequena nobreza, em virtude da ascensão social que as mesmas proporcionavam.180

178 Cf. PIMENTEL, António Filipe, Arquitetura e Poder, o Real Edifício de Mafra, Lisboa, Livros Horizonte, 2002 (1.ª edição, 1992), pp. 65-73. Disponível em:

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/84953/1/Arquitectura%20e%20Poder.pdf. Acedido a 4 de fevereiro de 2019.

179 Cf. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, “Jóias, retratos e a iconografia das elites portuguesas de Oitocentos”, (…), pp. 269-271.

180 Cf. PIMENTEL, António Filipe, “Honra e Esplendor: Da joalharia honorífica portuguesa do século XVIII”, (…), p. 184.

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“(…) contra o negro omnipresente dos trajes, as cruzes das Ordens Militares avultam com uma violência estridente, quase agressiva, onde se fundem a altivez da casta e a pureza da crença, unidas num modelo ideológico que se define, corporativamente, na figura social do cavaleiro professo.”181

181 Idem., p. 178.

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