• Nenhum resultado encontrado

2 - O esplendor da Corte Portuguesa: a Joalharia

A sociedade portuguesa do século XVIII, integrada em toda a conjetura espácio-temporal europeia, caracterizava-se, por uma nova e exponencial perceção dos seus recursos, e do seu valor internacional, mas também por uma maior acessibilidade e disponibilidade de metais preciosos, que afluíam ao seu mercado.99

Todos estes novos pressupostos, trazem a Portugal uma sensação de arrebatamento, que apesar dos moldes clássicos, prenunciam e consolidam novas perceções da arte, da vida e entre povos e estados.100

Como mencionámos anteriormente, a joalharia esteve desde sempre presente em todos os períodos da história desde o aparecimento do Homem, aquando da sua necessidade de se enfeitar e adornar. Desde as mais remotas origens, as peças de joalharia aparecem associadas a motivos religiosos, de poder espiritual e de proteção ou associados a um fator utilitário para uso prático, tal como para prender as peças de roupa. São esses valores, que acompanham até aos nossos dias todo o processo evolutivo da joia.101

As joias deixam de caminhar lado-a-lado com as belas-artes e a preocupação volta-se novamente para as pedras e o aprimoramento das técnicas sobrepõe-volta-se a expressão intelectual, de status ou crença religiosa. Este desenvolvimento só foi possível pelo aumento do fornecimento de pedras preciosas e sua comercialização em todo o mundo.

É um período de êxito no campo técnico com várias inovações no âmbito da lapidação, que potenciaram uma extraordinária produção de peças, onde aumenta a importância que nas joias é atribuída às pedras, por oposição ao trabalho em ouro, sendo que a arte de “montar as pedras” se transforma na nova arte do joalheiro102.

Foi no século XVI, com a explosão criativa dos artistas renascentistas europeus, que se definiram os padrões de uma arte clássica mais jovem, que desse período em diante

99 Cf. BORGES DE MACEDO, Jorge, “Do Ouro aos Diamantes: Portugal no século XVIII. Uma Perspectiva”, in TEIXEIRA, José Monterroso, (coord.), O Triunfo do Barroco, Lisboa, Fundação das Descobertas, 1991, p. 21.

100 Idem.

101 Cf. CARDOSO, Ana Claúdia Dias, Op. Cit., pp. 21-22.

102 Cf. OREY, Leonor d’ (ed.), Cinco Séculos de Joalharia: Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Instituto Português dos Museus - Zwemmer, 1995, p. 26.

57 foi tomada como padrão, sendo seguida e imitada pelos outros. A joalharia europeia adquiriu o seu grande reconhecimento durante o Renascimento103, a arte figurativa alcançou o seu grande esplendor e a joalharia também procurou inspiração no corpo humano, nas paisagens e na natureza104.

No século XVI, a joalharia portuguesa começou a alcançar um lugar de destaque nas artes decorativas, não só devido à afluência das gemas oriundas do Oriente, mas também pela qualidade de execução da mesma.

O século XVII caracteriza-se como a era da pedra facetada, onde as joias se tornam objetos essencialmente decorativos e cuja observação e ostentação indicam a condição socioeconómica do seu possuidor. Ao longo deste período a joia ganha em fantasia e originalidade expressiva, aumentando exponencialmente o seu vocabulário decorativo.

Adquirem-se conhecimentos e experiência no talhe e polimento das pedras, dando-lhes um brilho e beleza até então desconhecidos e executam-se montagens mais leves e quase invisíveis105.

Até aos finais do século XVII, o diamante era geralmente lapidado em rosa, onde vários talhes eram realizados na superfície da gema. Os aperfeiçoamentos técnicos e as novas conceções, permitem que as joias absorvam uma componente teatral, tão característica do barroco106.

Os grandes clientes da joalharia, eram sem sombra de dúvidas, a Família Real e os membros da nobreza da corte, e seria nesse círculo mais seleto, onde se encontrava o melhor da produção portuguesa, junto com peças de outras proveniências, resultado de uma internacionalização da alta nobreza portuguesa com a alta nobreza europeia107.

103 Cf. CORBETTA, Glória, Joalheria de Arte, Porto Alegre, Editora AGE, 2007, p. 19. Disponível em:

https://books.google.pt/books?id=T4psLxO2I_cC&pg=PT3&lpg=PT3&dq=gloria+corbetta&source=bl&

ots=YCx0GLlDNV&sig=ACfU3U3cSuk7cnaLYmNQ6FVG-gdl1hFrdw&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwj_kYrL8_fgAhXRSBUIHV6ZAQQQ6AEwBnoECAEQAQ#v=onepage&q=g loria%20corbetta&f=false. Acedido a 02 de março de 2019.

104 Idem, p. 21.

105 Cf. OREY, Leonor d’ (ed.), op. cit., p. 27.

106 Cf. GUEDES, Rui, SILVA, Nuno Vassalo e, TREWINNARD, Richard, Joalharia Portuguesa, Lisboa, Bertrand Editora, 1995, pp. 24-25.

107 Cf. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, A Joalharia em Portugal: 1750-1825, (…), p. 7.

58 Na transição do século XVII para o XVIII, o desenvolvimento da exploração de vastas jazidas de ouro brasileiro, e o crescente poder económico das classes mais abastadas, vem mergulhar Portugal, num ambiente de enorme euforia e confiança generalizada nessa fonte inesgotável de recursos, proporcionando o aparecimento de joias de ornamentação exuberantes, as conhecidas joias de aparato108.

O ouro e as gemas do Brasil vão, corresponder em Portugal a uma época de exuberância e de fausto, ou seja, a um ponto de viragem, assinalado pelo brilho magnificente de espetaculares combinações de metais e pedraria, e com primorosas formas de execução, o que permitiu com que a joalharia se tornasse uma das artes mais criativas.

A sua vocação sumptuária faz dela o espelho fiel das novas condições económicas de que Portugal beneficia e do gosto generalizado pela ostentação comum a todas as classes, observado por viajantes estrangeiros como uma autêntica marca coletiva. A variedade das gemas oriundas do Brasil, provocaram toda uma mudança na joalharia e moda europeia (da qual Portugal, como colonizador não foi exceção), fruto de um acesso muito mais facilitado aos metais e pedras preciosas, mas também à sua excecional qualidade109.

No século XVII, a abundância de matérias-primas para realização de joias, como já mencionamos anteriormente, permitiu, não só um desenvolvimento de técnicas, mas também, uma afluência de ourives em Portugal, o que nos permite analisar e compreender os seus percursos e a sua vivência, enquanto corpo social, com regras próprias110 (v.g.

Confraria de Santo Elói111). Aliás, o grande poder económico da família real portuguesa, assim como das grandes famílias nobres, fez com que o ofício de ourives se transforma-se numa profissão de grande prestigio, especialmente nos séculos XVII e XVIII,

108 Cf. SILVA, Maria Fernanda Espinosa Gomes da, “Ouro do Brasil”, in SERRÃO, Joel, (dir.), Dicionário de História de Portugal, Vol. IV, Barcelos, Companhia Editorial do Minho, 1981, pp. 498-499.

109 Cf. OREY, Leonor d’ (ed.), op. cit., p. 49.

110 Cf.SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, Percursos da Joalharia em Portugal - Séculos XVIII a XX, (…), pp. 191-192.

111 O objetivo das confrarias, de um modo geral, é a prestação de ajuda e solidariedade aos seus associados e familiares. É o caso dos ourives da prata de Lisboa que se associaram, formando uma Confraria que tinha como patrono Santo Elói. Em 1460 o rei D. Afonso V, por Alvará de 7 de agosto, concede-lhes o "privilégio da aferição dos pesos e balanças da cidade de Lisboa e seu termo", e D. Manuel, em 1514, outorga aos ourives da prata, um arruamento distinto do dos ourives do ouro. Vide, Associação de Socorros Mútuos dos Ourives da Prata. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4411571. Acedido a 02 de março de 2019.

59 transformando Lisboa num importante centro de transformação do ouro, cravadores e lapidários, não só relacionados com a Casa Real, mas também com a poderosa corte da altura. No entanto, quando comparados com as luxosas oficinas de Roma e Paris, a qualidade dos joalheiros nacionais não eram as melhores, sendo tendência encomendar obras a joalheiros estrangeiros, fazendo mais uma vez jus ao grande poder da nobreza e realeza da altura112.

Cumprindo as determinações régias, o Senado de Lisboa, institui a ocupação de Ensaiador do ouro e da prata. Para este cargo, teriam de se ter conhecimentos específicos dos materiais, por forma a estudar e aferir a qualidade das peças. Desta forma o ofício de ourives e ensaiador do ouro, surgem reconhecidos através do Regimento do Ensaiador do Ouro de Lisboa em 1693, realizado por Francisco da Cruz Godinho113.

Caberia assim ao ensaiador, avaliar a qualidade das peças realizadas na sua cidade pelos diversos ourives, registando todos os objetos observados num livro específico para o efeito. Nesse registo deveriam ser indicadas todas as caraterísticas da joia (v.g. peso, tipologia de materiais e descrição física) que muitas vezes não eram marcadas pelo ourives, devido à sensibilidade do material, nem registadas no Senado da Câmara114.

Relativamente às influências de estilo, destacamos o ascendente francês e italiano, que fez com que se propagassem por toda a Europa, através de compilações de gravuras, desenhos de joias, que foram posteriormente copiados e adotados ao gosto nacional.

Em França podemos destacar Gilles Legaré (1617-1663)115, ourives e esmaltador, considerado um dos mais importantes artífices da corte de Luís XIV e responsável por alguns dos melhores designs de joalharia dos finais do século XVII, cuja obra Livre des Ouvrages d’Orfévrerie (1663)116 se tornou popular por toda a Europa. De todos os

112 Cf. PINTO, Lurdes Maria Neves Marques, A Leitão & Irmão (1877 – 1897) e as Joias da Família Real Portuguesa, Dissertação de Mestrado em História Moderna e Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014, p. 11. Disponível em:

https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/20382/1/ulfl179127_tm.pdf. Acedido a 02 de março de 2019.

113 Cf. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, Percursos da Joalharia em Portugal - Séculos XVIII a XX, (…), p. 193. Cit. Livro das Chapas, in Corpus Codicum Latinorum et Portugaleusium, Vol. 5, Porto: Câmara Municipal do Porto, Gabinete de História da Cidade, 1953, p. 182-187.

114 Idem, pp. 194 e ss.

115 Vide, Genealogy - Gilles Legaré. Disponível em:

https://www.genealogy.com/forum/surnames/topics/legare/149/. Acedido a 02 de março de 2019.

116 Cf. LEGARÉ, Gilles, Livre des Ouvrages d'Orfevrerie, Inventaire du Fonds Français: Bibliothèque Nationale, Paris, Departement des Estampes, 1930. Disponível em:

https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1877-0609-255. Acedido a 02 de março de 2019.

60 projetos de Legaré, os mais conhecidos são: o Sevigné117 ou enfeite de arco, uma forma de joalharia que nunca perdeu sua popularidade e os pingentes de girândola (forma usada para broches e brincos) que permaneceram na moda até o final do século XVIII118.

Em Espanha encontramos o nome do italiano Pietro Cerini (c. 1650-1730), ativo em Roma na primeira metade do século XVIII, gravador e ilustrador, que se tornou uma das maiores influências da joalharia espanhola na transição do século XVII para o XVIII, publicando em meados de 1668 (em Paris), diversas gravuras de ornamentos e peças de joalharia. As joias espanholas do século XVIII exibem a influência de estilo quase exclusiva dos desenhos de Pietro Cerini, aplicável ao metal trabalhado, que durou ao longo de todo o período barroco119.

A migração de influências e estilos, mostra-se presente também em Portugal, onde se encontra a presença de duas orientações simultâneas: por um lado, um gosto e uso abundante do ouro, com moderado uso de pedrarias; e por outro, a aplicação massiva de pedraria, usando o metal estritamente necessário para o suporte das gemas120.

A natureza foi, sem margem para dúvidas, a maior fonte de inspiração da joalharia barroca, não só em Portugal, mas em toda a Europa. Tendo como inspiração elementos

117 Tipo de broche na forma de um nó de arco, feito de ouro ou prata em um padrão de céu aberto e definido com muitos pequenos diamantes, às vezes com um diamante suspenso ou pérolas. Foi usado como um ornamento de corpete de meados do século XVII até o final do século XVIII. Nos primeiros exemplos, o arco era simples, formal e plano, mas depois tornou-se mais naturalista e tridimensional, com laços desiguais e extremidades pendentes. Vide, Antique Jewelry Glossary. Disponível em:

https://www.antiquejewel.com/en/explanation-on-sevigne-by-adin-antique-jewelry.htm. Acedido a 10 de março de 2019.

118 Cf. EVANS, Joan, A History of Jewellery 1100-1870, Nova York, Dover Publications, INC, 1970, pp.

137-144. Disponível em:

https://books.google.pt/books?id=KgUJmQYEm9wC&printsec=frontcover&dq=A+History+of+Jeweller

y,+1100-1870&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwjzutvQ_YvhAhUlyoUKHZ4IBbIQ6AEIKTAA#v=onepage&q=A%20History

%20of%20Jewellery%2C%201100-1870&f=false. Acedido a 10 de março de 2019.

119 Cf. GUTIERREZ IBANEZ, Sara, “Ornamental models of the Catalan Baroque Silverwork in the late 17th and early 18th centuries”, in COUTINHO, Maria João Pereira, FERREIRA, Sílvia e MENDONÇA, Isabel, (coord.), A Arte do Ornamento: Sentidos, Arquétipos, Formas e Usos - Livro de Resumos, Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2017, pp. 63-64. Disponível em:

https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/23040/1/TheArtOrnament_v2.pdf. Acedido a 10 de março de 2019; sobre a circulação dos desenhos e gravuras de Pietro Cerini em Espanha Cf. PARRILLA, Francesca Da Roma alla corte madrilena. La circolazione dei repertori a stampa di ornamento e decorazione tra la fine del XVII e la prima metà del XVIII secolo, Roma, Fondazione 1563 per l’Arte e la Cultura della Compagnia di San Paolo, 2019, pp. 8-10.

120 Cf. OREY, Leonor d’ (ed.), op. cit., p. 50.

61 de fauna e flora, os artífices da época criaram joias com apresentações estilizadas, onde predominam as emoções, as assimetrias e a cor.

Podemos assim afirmar, que nas joias barrocas, o que predomina é a emoção, que vem contrapor com o racionalismo do renascimento. As joias passam a ser usadas com mais moderação, ficam mais elegantes e os temas religiosos perdem espaço para os temas naturalistas. No segundo quartel do século XVII, identifica-se o recurso a um vegetalismo estilizado, onde se apresentam montagens e pedrarias envoltas em elementos naturalistas121.

Já na segunda metade do século XVIII, a joalharia barroca tardia e quase roccaile transforma-se em exuberância, e sedução. A “joia espetáculo” do período barroco, era inequivocamente, uma demonstração pública de riqueza e estatuto, onde o diamante assume o seu lugar de destaque.

A variedade de modelos, bem como o colorido das pedras, e apetência crescente para uma clientela que, desde a nobreza à alta e média burguesia, procura no objeto precioso um ornamento ou uma afirmação social, permitiram aos artistas criar novas formas essencialmente de influencia francesa que se faziam sentir no quotidiano da corte e em todos aqueles que a tinham como modelo.122

Apesar de todo o destaque dado ao diamante, utilizavam-se muitas outras gemas coloridas, não só devido à sua cor, mas também devido ao seu preço mais acessível, dos quais são exemplo os topázios, os crisoberilos, as ametistas, as granadas e os cristais de rocha, que começam a receber diferentes tipos de lapidação123.

A reflexão feérica das pedras facetadas, surge, agora, revelada por uma forma nova e surpreendente de lapidação, o talhe em brilhante, que tende a suplantar o anterior talhe em rosa. A lapidação em brilhante com 58 facetas, iniciada pelo italiano Vicenzo Peruzzi (1789-1847), proporcionava o requinte ideal para complementar a moda altamente elitista e sofisticada de Setecentos. Criando ou inspirando-se nos desenhos oriundos de outros países, os ourives, joalheiros e lapidadores portugueses atingem tal perfeição formal e

121 Idem, p. 27.

122 Cf. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, A Joalharia em Portugal: 1750-1825, (…), p. 7.

123 Vide, Serafim Joalheiros. Disponível em: http://serafimjoalheiros.blogspot.com/2012/03/tipos-de-lapidacao-de-pedras-preciosas.html. Acedido a 28 de fevereiro de 2019.

62 técnica, que se torna por vezes difícil distinguir a joia importada da joia executada em Portugal. Indo ao encontro das exigências de luxo da época, executam soberbas composições de espetacular efeito decorativo, revelando toda a beleza da cor e do jogo de pedras através de novos processos de lapidação.”124

Era recorrente realçar as suas cores e valor, através da colocação de um forro (folheta) prateada, dourada (ou de outra cor), por forma a acentuar os seus reflexos125, afirmação também validada por Leonor d’Orey126. Nesta conjuntura, ouro e a prata assumem, na joalharia barroca da segunda metade do século XVIII, um mero papel de suporte, como já mencionamos anteriormente.

124 Cf. OREY, Leonor d’ (ed.), op. cit., pp. 50-51.

125 Vide, CARVALHO, Cristina, in Casa Museu Medeiros e Almeida. Disponível em: https://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/pecas/comoda-secretaria-alcado-senhor-do-sr-lever-destaque-agosto-2017/.

Acedido a 28 de fevereiro de 2019.

126 Cf. OREY, Leonor d’ (ed.), op. cit., p. 53.

63

2.1 – A joia e a sua construção simbólica: o corpo e a moda como meios