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A inafastabilidade da Jurisdição e o acesso à Justiça

No documento 2017GustavoBuzzato (páginas 59-67)

CAPÍTULO II – O PODER JUDICIÁRIO E A CRESCENTE JUDICIALIZAÇÃO DOS

2.2. A inafastabilidade da Jurisdição e o acesso à Justiça

Reza como regra geral e inquestionável no ordenamento jurídico-processual brasileiro que a todo aquele que possuir ou entender possuir um direito indevidamente resistido ou não satisfeito nasce o direito subjetivo de buscar a tutela jurisdicional através do direito de ação, exigindo do Estado uma resposta, baseada no Direito, que conforte as pretensões conflitantes e restabeleça a ordem social e jurídica.

157 CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2000, p. 130-134. 158 CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2000, p. 135-138.

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A ordem constitucional vigente, de um lado, não limita a ação aos indivíduos que se sintam, de alguma forma, lesados ou violados em suas esferas de direitos e, de outro, determina a obrigatoriedade da atuação jurisdicional frente ao exercício do direito de ação, não podendo o Poder competente se afastar ou se eximir de dar a resposta estatal ao conflito posto ao seu crivo.

Conforme determina a CF/88 em seu art. 5º, XXXV, o acesso à Justiça é pleno a todos os que se sentirem violados ou lesados em seus direitos, sendo vedado à lei excluir da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou, até mesmo, a ameaça de lesão a qualquer direito.

Esta norma, por um lado, veda que a lei proíba sejam questionados todos os atos de que resulte violação de direito. E na redação vigente seja este direito individual ou não, portanto, abrangendo direitos difusos etc. Ela se inspira no desiderato de tornar todos os brasileiros (e estrangeiros residentes no País – v. caput do art. 5º) defensores da ordem jurídica.159 Insta referir que o acesso à Justiça deve ser visto muito mais do que simplesmente o direito de postular perante o Poder Judiciário em busca da declaração de um direito ou da resolução de um litígio. Trata-se de direito atrelado à democracia e garantidor da igualdade, não apenas formal, mas efetiva. “O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar o direito de todos”.160

De fato, o acesso à Justiça é tido como a garantia constitucional de reclamar a efetivação de direitos reconhecidos, porém não satisfeitos, afinal, “a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação”.161

Mais do que isso, segundo Kazuo Watanabe, o princípio não se caracteriza tão somente pela aproximação do conflito à jurisdição, mas “é fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa”.162 Nesse caso, “o ‘acesso’ não é apenas

159 FERREIRA FILHO, 2015, p. 233.

160 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris

Editor, 1988. p. 5.

161 CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 5.

162 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna: Participação e processo. São

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um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística”.163

Diante disso, o acesso à Justiça requer um Judiciário bem estruturado e funcionalmente capaz de atender plenamente a garantia constitucional do acesso, não só formal, mas efetivamente, e, por consequência, o direito através deste pleiteado, do que poderá resultar em uma justa Justiça. Para tanto:

Os juízes precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais servem a questões sociais, que as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada e que qualquer regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei substantiva – com que frequência ela é executada, em benefício de quem e com que impacto social.164

O exercício do direito de ação, ato que materializa o acesso à Justiça, deflagra a função jurisdicional. A partir daí, o Estado-Juiz possui o poder-dever de conferir o provimento jurisdicional para o qual foi provocado a apreciar. Assim como a lei não pode excluir a apreciação do Poder Judiciário, este também não pode se afastar de seu dever funcional.

Em relação à inafastabilidade da jurisdição, Luiz Guilherme Marinoni destaca a fundamentalidade do princípio na efetivação dos direitos e garantias constitucionais:

Tal direito não poderia deixar de ser pensado como fundamental, uma vez que o direito à prestação jurisdicional efetiva é decorrência da própria existência dos direitos e, assim, a contrapartida da proibição da autotutela. O direito à prestação jurisdicional é fundamental para a própria efetividade dos direitos, uma vez que esses últimos, diante das situações de ameaça ou agressão, sempre restam na dependência da sua plena realização. Não é por outro motivo que o direito à prestação jurisdicional efetiva já foi proclamado como o mais importante dos direitos, exatamente por construir o direito a fazer valer os próprios direitos.165

Como já referido, a norma constitucional não estabelece qualquer limitação quanto ao direito lesionado ou ameaçado de lesão. Assim, em princípio, qualquer direito supostamente violado ou na iminência de sofrer violação pode representar a

163 CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 5. 164 CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 5.

165 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. 2. ed. São Paulo: Revista

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causa de pedir de uma ação. Assim, “os próprios atos políticos podem ser impugnados perante o Judiciário, desde que firam direito”.166

É neste contexto que surge a discussão e controvérsia acerca de a função jurisdicional, em decorrência da possibilidade praticamente ilimitada de se pleitear direitos em juízo, e em nome do princípio da inafastabilidade da jurisdição, exceder- se, o que será objeto de análise mais aprofundada no capítulo seguinte.

Apesar disso, “claro está que isto não significa poder o Judiciário substituir-se, na apreciação do mérito (conveniência e oportunidade) ao Poder competente (Legislativo ou Executivo). Apenas, deve ele reparar eventual violação de um direito definido, individual ou não”.167 O mérito está presente na prática de atos discricionários, nos quais a autoridade pública realiza um juízo de conveniência e oportunidade da prática do ato, com alguma margem de liberdade, que, em princípio, seriam da exclusiva alçada administrativa, sem qualquer interferência judicial.

Essa visão, ainda defendida por muitos doutrinadores, dentre eles Manuel Gonçalves Ferreira Filho e Miguel Seabra Fagundes168, vigorava “quando a lei era vista, sob a ótica do positivismo jurídico, dentro de um sistema lógico-jurídico, despido de qualquer conteúdo axiológico”169, o que limitava o Judiciário tão somente ao controle de legalidade dos atos, não sendo possível a análise de seu mérito. “Quando, porém, à lei formal se acrescentam considerações axiológicas – o que aconteceu com a instauração do Estado de Direito Democrático – amplia-se a possibilidade de controle judicial”170, haja vista que o princípio da legalidade, hoje, é visto com o sentido de juridicidade, pois abrange, além da lei, todos os princípios e valores jurídicos do ordenamento, ampliando o âmbito de controle judicial dos atos.

Neste sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que “na medida em que a lei foi reconquistando o seu sentido axiológico perdido por influência do positivismo jurídico, novos princípios foram sendo elaborados como formas de limitar a

166 FERREIRA FILHO, 2015, p. 233. 167 FERREIRA FILHO, 2015, p. 233.

168 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 8. ed.

Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 179.

169 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Técnica e Discricionariedade

Administrativa. In: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico - REDAE. 09/02/2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-9-FEVEREIRO-2007-MARIA%20 SYLVIA.pdf>. Acesso em: 24/01/2017. p. 2-3.

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discricionariedade administrativa e, paralelamente, ampliar a esfera de controle pelo Poder Judiciário”.171

Essa mudança de concepção e ampliação da esfera de controle jurisdicional sobre atos administrativos se fundamenta na obrigação da autoridade praticante do ato, independente de ser este vinculado ou discricionário, de atender aos fins de interesse público almejados pela lei e pela ação do Poder Público, nos termos sustentados por Celso Antônio Bandeira de Mello:

Deveras, não teria sentido que a lei, podendo fixar uma solução por ela reputada ótima para atender o interesse público, e uma solução apenas sofrível ou relativamente ruim, fosse indiferente perante estas alternativas. É de presumir que, não sendo a lei um ato meramente aleatório, só pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quanto nos casos de discrição, que a conduta do administrador atenda excelentemente, à perfeição, a finalidade que a animou. Em outras palavras, a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz se trate de vinculação, quanto de discrição. O comando da norma sempre propõe isto. Se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei. (grifos originais).172

Dessa forma, como medida de atendimento do interesse público exigido da ação administrativa, o Poder Judiciário tem seu âmbito de atuação funcional ampliado, para controlar mais do que a legalidade do ato, alcançando o controle do mérito deste e dos próprios fins requeridos pela lei, haja vista ser o administrador apenas um representante da vontade da sociedade e um ator cumpridor da ordem jurídico-administrativa, e o julgador o vigia deste cumprimento. Portanto, é uma ampliação da função jurisdicional que o próprio sistema jurídico-administrativo requer, com vistas ao atendimento do interesse público.

Ademais, muitas vezes, diante do caso prático, para fazer concretizar um direito fundamental constitucionalmente garantido, o qual, se não satisfeito, pode acarretar grave violação a um bem jurídico, o Poder Judiciário acaba por determinar que outro órgão ou Poder o faça, ou seja, supra a omissão ou a insuficiência da ação, ou reveja o mérito do ato praticado, e realize o direito que cabia ao mesmo garantir.

171 DI PIETRO, 2007, p. 3.

172 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São

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A título exemplificativo, quando o Poder Executivo, responsável pela implementação de políticas públicas necessárias à satisfação de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos, deixa de fazê-lo, por qualquer motivo, inclusive pela prática de ato discricionário, faz nascer um direito subjetivo à parte prejudicada de buscar a concretização através de um provimento jurisdicional.

Diante de um caso desta natureza, tem-se, de um lado, o direito da parte suscitado em juízo e o dever do Poder Judiciário de apreciar lesão ou ameaça a direito, sem poder se eximir de seu poder-dever funcional, e de outro lado, a atribuição relativa a outro Poder – Poder Executivo – que deixou de satisfazer um direito, seja por discricionariedade, arbitrariedade ou por já atender o mínimo existencial que lhe é exigido.

No exemplo trazido, o Poder Judiciário está no estrito cumprimento de sua função típica, de dizer o direito, porém submetendo outro Poder independente ao seu provimento, ordenando que este realize sua respectiva função.

Neste mesmo sentido, outro exemplo de atuação jurisdicional também confortada pelo sistema constitucional vigente e, logo, legítima, que interfere no terreno de atuação dos demais Poderes, diz respeito ao mandado de injunção. O art. 5º, inc. LXXI, da CF/88, prescreve que sempre que houver direitos, liberdades constitucionais e prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, devidamente assegurados, porém de exercício inviável devido à falta de norma regulamentadora ocasionada pela omissão do legislador, nasce a pretensão de ajuizamento ao titular destes direitos e a competência jurisdicional de conceder o remédio com vistas à elaboração da norma faltante.

O remédio, inovação trazida pela CF/88, foi concebido no intuito de não causar prejuízo aos indivíduos em relação aos seus direitos assegurados pela ordem jurídico-constitucional devido a uma falha do legislador e para garantir a plenitude do sistema. Neste sentido, “o instituto foi criado com vistas a sanar o problema da ineficácia das disposições constitucionais que concediam direitos sociais”.173 O intuito do remédio, que se assemelha ao da ação de controle de constitucionalidade por omissão, é conferir a aplicabilidade imediata à norma constitucional determinada pelo § 1º do art. 5º da CF/88.174

173 MENDES; BRANCO, 2016, p. 1257. 174 SILVA, 2016, p. 451.

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Dessa forma, o mandado de injunção é medida constitucionalmente prevista que confere ao Judiciário o poder-dever de controlar a função do legislador, verificando se há omissão do mesmo que inviabiliza o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas.

A despeito de eventuais críticas ao instituto e ao agir jurisdicional decorrente, a própria norma constitucional reconhece esta necessidade, haja vista que, em um Estado Democrático de Direito, de modelo pós-positivista, a realização dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados está acima de qualquer alegação de fundamento organizacional, funcional.175

A adoção deste remédio dá ensejo a intensas controvérsias doutrinárias, sobretudo acerca dos efeitos da decisão de concessão. Gilmar Mendes apresenta os principais entendimentos quanto aos possíveis efeitos de uma decisão de concessão de mandado de injunção:

Alguns nomes da literatura jurídica sustentam que, como as regras constantes do preceito constitucional que instituiu o mandado de injunção não se afiguravam suficientes para possibilitar a sua aplicação, ficava sua utilização condicionada à promulgação das regras processuais regulamentadoras. Outros doutrinadores afirmam que, sendo o mandado de injunção instrumento dirigido contra omissão impeditiva do exercício de direitos constitucionalmente assegurados, competiria ao juiz proferir decisão que contivesse regra concreta destinada a possibilitar o exercício do direito subjetivo em questão. Uma variante dessa corrente acentua que a decisão judicial há de conter uma regra geral, aplicável não apenas à questão submetida ao Tribunal, mas também aos demais casos semelhantes.176 Consoante a primeira posição, a decisão judicial não tem o potencial de regulamentar o direito cuja falta de norma lhe torna inaplicável, nem de impor ao legislador a obrigação de elaborar a norma faltante, limitando-se a declarar sua mora e omissão. Já as duas últimas posições entendem que o Judiciário, diante da constatação da norma faltante, além de declarar a omissão e a mora legislativa, pode-deve regrar o exercício do direito para torná-lo exercitável; o que diferencia estas duas últimas posições é o fato de que uma permite o Judiciário disciplinar somente o caso concreto apreciado, e a outra pretende uma norma geral para disciplinar o direito a ser exercido por todos que o detém.

Obviamente, diante da aplicação destes dois últimos entendimentos, surgem críticas conservadoras acerca da atuação jurisdicional, pois “o constituinte teria

175 BONAVIDES, 2016, p. 616.

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dotado o Tribunal, excepcionalmente, do poder de editar normas abstratas, de modo que essa atividade judicial apresentaria fortes semelhanças com a atividade legislativa”.177

Por outro lado, que utilidade teria o mandado de injunção se o Judiciário somente pudesse declarar a existência da omissão, sem poder concretizar o direito violado? Se assim fosse, por medida de não adentrar na função regulamentadora, o Judiciário também estaria sendo omisso por não reparar lesão ou ameaça a direito constitucionalmente assegurado. Assim, o Judiciário também se apresentaria omisso em sua função diante de uma omissão legislativa.

Após julgamentos, debates, controvérsias, mudanças de entendimento, o STF, atualmente, vem, em concessão de mandado de injunção, disciplinando provisoriamente, até a feitura da norma, o direito cuja regulamentação foi omitida, e fazendo surtir efeitos não só inter partes, mas sim erga omnes, ou seja, a todos os titulares do direito, nos termos referidos por Gilmar Mendes:

O que se evidencia é a possibilidade de as decisões nos mandados de injunção surtirem efeitos não somente para os impetrantes, mas também para os casos idênticos ou semelhantes. Assim, em regra, a decisão em mandado de injunção, ainda que dotada de caráter subjetivo, comporta uma dimensão objetiva, com eficácia erga omnes, que serve para tantos quantos forem os casos que demandem a superação de uma omissão geral do Poder Público, seja em relação a uma determinada conduta, seja em relação a uma determinada lei.178

O mandado de injunção, portanto, é outro exemplo de ação jurisdicional ampla e ativa exercida nos estritos limites de sua competência funcional, que controla a atuação de outro Poder com o fito de evitar ou reparar lesão ou ameaça a direito, ocasionada pela falta ou insuficiência de ação legislativa.

Os casos supra-apresentados são exemplificativos de que, cada vez mais, o Poder Judiciário, em realização ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, vem enfrentando questões não meramente jurídicas, mas que exigem atuação eminentemente política, sem, contudo, violar a independência funcional, já que motivada, muitas vezes, pela inação ofensiva aos direitos fundamentais dos outros Poderes. Nesse sentido, o Judiciário brasileiro, atualmente, assume importante papel político, apreciando e julgando questões como fidelidade partidária, pesquisas

177 MENDES; BRANCO, 2016, p. 1258. 178 MENDES; BRANCO, 2016, p. 1275.

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com células-tronco embrionárias, cassação da lei de imprensa, vedação ao nepotismo na Administração Pública179, implementação de políticas públicas, reconhecimento legal de união de casais homossexuais, interrupção de gravidez em caso de feto anencéfalo, dentre outras.

É para identificar se situações como estas evidenciam um Poder Judiciário agindo dentro de sua respectiva função e manifestam a harmonização entre os Poderes ou se, ao contrário, demonstram a exacerbação da função jurisdicional e, assim, a violação ao princípio da tripartição, que o presente estudo se justifica.

No documento 2017GustavoBuzzato (páginas 59-67)