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Ativismo Judicial e afirmação de direitos

No documento 2017GustavoBuzzato (páginas 137-142)

CAPÍTULO III – O ATIVISMO JUDICIAL E SUAS DIMENSÕES VERIFICADAS NA

3.2. As dimensões do Ativismo Judicial segundo a jurisprudência do Supremo

3.2.4. Ativismo Judicial e afirmação de direitos

Como guardião da ordem jurídico-constitucional e, assim, dos valores, princípios e fins a esta pertencentes, o STF é provocado a enfrentar temas e discussões polêmicas, que ultrapassam a seara judicial, adentrando em aspectos relativos à política e à moral, especialmente no que se refere a conflitos envolvendo direitos fundamentais, “tanto os conflitos entre direitos individuais como entre esses direitos e os interesses mais amplos da sociedade”.389

385 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno, RE nº 592.581 com repercussão geral, Rel. Min.

Ricardo Lewandowski, julgado em 13/08/2015, DJ de 29/01/2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10166964>. Acesso em: 10/08/2015.

386 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma, Ag.Rg. no RE 393.175/RS, Rel. Min. Celso de

Mello, julgado em 12/12/2006, DJ de 02/02/2007.

387 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma, RE 368.564/DF, Rel. Min. Menezes Direito, Rel. p/

acórdão Min. Marco Aurélio, julgado em 13/04/2011, DJ de 10/08/2011.

388 CAMPOS, 2014, p. 169. 389 CAMPOS, 2014, p. 169.

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Diante desses casos, o agir jurisdicional intenta confortar direitos e princípios que se conflitam entre si, “o que requer, principalmente diante da indeterminação semântica e da alta carga valorativa das normas constitucionais envolvidas, esforço de justificação ética ou axiológica das decisões judiciais verdadeiramente cruciais”.390 Dessa forma, o órgão constitucional acaba por determinar escolhas que influirão diretamente no comportamento dos indivíduos, da sociedade e dos poderes políticos.

E não poderia ser diferente, haja vista que questões de tamanha polêmica e que geram tanta controvérsia ideológica, especialmente de ordem moral, dificilmente conseguem superar o debate político e ser devidamente disciplinadas. Assim, somente o Judiciário é quem pode, levando-se em consideração toda a disciplina jurídica, e desvinculado de quaisquer interesses políticos, ideológicos e religiosos, chegar a uma resolução, mesmo que esta divida a opinião política e pública, já que as “decisões judiciais sobre esses direitos poderão envolver, além de raciocínios jurídicos, juízos de validade moral e política”.391

A dificuldade em relacionar estes institutos se deve ao fato de que, embora guardem estreita relação, já que as regras jurídicas surgem a partir de regras morais e por estas são justificadas, “mesmo tendo pontos em comum, a moral e o direito distinguem-se prima facie, porque a moral pós-tradicional representa apenas uma forma do saber cultural, ao passo que o direito adquire obrigatoriedade também no nível institucional”.392 Ademais, “não podemos interpretar os direitos fundamentais que aparecem na figura positiva de normas constitucionais como simples cópias de direitos morais, nem a autonomia política como simples cópia da moral”.393

Por isso é que temas desta natureza tendem a proporcionar uma vasta abertura ao agir jurisdicional ativista. Diante disso é que Ronald Dworkin afirma se tratar de um dever da corte constitucional ser ativista no sentido de estar preparada para responder e solucionar questões afetas à moralidade política.394

Caso dos mais relevantes julgado pelo STF que demandou esta polêmica discussão envolvendo aspectos morais, ideológicos, religiosos, além de jurídicos, foi

390 CAMPOS, 2014, p. 169. 391 CAMPOS, 2014, p. 169. 392 HABERMAS, 2003, p. 141. 393 HABERMAS, 2003, p. 141.

394 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fonte,

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o “caso do aborto de fetos anencéfalos”, demandado em controle concentrado de constitucionalidade sob Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 54.395

A ação foi formulada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, com pedido de interpretação conforme a Constituição aos artigos 124, 126 e 128, todos do Código Penal, no intuito de declará-los compatíveis com a dignidade da pessoa humana, fundamento constitucional brasileiro, bem como com os direitos fundamentais de liberdade e de saúde da gestante e, assim, descriminalizar o ato de interromper voluntariamente a gravidez de feto anencéfalo.396

Antes do julgamento, o parecer do Procurador-Geral da República foi no sentido de que os dispositivos penais interpretados gozavam de univocidade de significado, de tal modo que, “além de não caber interpretação conforme a constituição, que necessariamente envolve definir, entre sentidos possíveis, aquele mais compatível com o Texto Constitucional, ainda eventual sentença de procedência importaria em clara atividade legiferante penal pela Corte”.397

Tal posição foi reforçada pelo entendimento kelseniano adotado de manutenção do órgão constitucional como legislador negativo398, de forma que criar mais uma hipótese de excludente de ilicitude ao aborto seria, verdadeiramente, atuação legislativa, pois tal possibilidade somente poderia ser criada mediante lei e regulamentação séria pelo órgão político “intérprete dos valores culturais da sociedade”. Os votos neste sentido foram proferidos por Cezar Peluso, Eros Grau, Carlos Velloso e Ellen Gracie, esta com postura ainda mais enfática, ao destacar que a criação de tal hipótese resultaria “em usurpação à competência dos outros dois poderes [...] por via oblíqua e em foro impróprio”, sendo que a adoção de postura de legislador positivo para um tema tão relevante resultaria em “ruptura de princípios basilares, como o da separação de poderes e a repartição estrita de competências”.399

395 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em

12/04/2012.

396 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em

12/04/2012. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=370 7334>. Acesso em: 03/02/2017.

397 CAMPOS, 2014, p. 293. 398 KELSEN, 1974, p. 492.

399 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em

12/04/2012. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=370 7334>. Acesso em: 03/02/2017.

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Apesar disso, a ação restou julgada procedente, sob o fundamento de que obrigar uma mulher a levar a gestação de um feto anencéfalo até o fim, ou seja, até o parto, violaria o princípio da dignidade da pessoa humana, além dos direitos à vida, à liberdade, à privacidade, à autonomia e à saúde da mulher, atribuindo, assim, aos dispositivos penais interpretação conforme a Constituição para retirar a pretensão punitiva do Estado diante de “antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo” e afirmar tais direitos. Os Ministros que votaram neste sentido reconheceram a existência de lacuna legislativa, diante da qual, segundo Luiz Fux, requer-se aplicação de “equidade integrativa”, já que, consoante Gilmar Mendes, a omissão legislativa apresentava-se incompatível com a Constituição.400

Além da polêmica envolvendo o aspecto moral da matéria julgada, enfrentada sem qualquer apego a religião – em atenção à laicidade do Estado – ou ideologia, o caso teve como consequência a criação de hipótese de excludente de ilicitude para o crime de aborto, o que, a princípio, somente pode ser disposto pelo Poder Legislativo federal, mas que foi feito pelo STF em sede de controle concentrado sob legítimos fundamentos constitucionais e em aplicação da interpretação conforme à Constituição.

Não há como negar o caráter ativista da referida atuação sob a dimensão de afirmação de direitos, vez que, para tanto, o STF teve, seguindo entendimento da maioria de seus Ministros, de se desgarrar da tese do legislador negativo para, promovendo uma “sentença aditiva de garantia”401, assumir conduta positiva frente ao ordenamento posto.

Em consonância ao caso supraverificado, pende no STF Ação Direta de Inconstitucionalidade cumulada com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com pedido de Medida Cautelar, proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), visando a descriminalização da interrupção da gravidez por mulheres infectadas pelo vírus zika.402

Da análise da petição inicial da referida ação de controle concentrado, em apertada síntese, verificam-se como principais fundamentos ensejadores do pedido:

400 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em

12/04/2012. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=370 7334>. Acesso em: 03/02/2017.

401 CAMPOS, 2014, p. 295.

402 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5581, Rel. Min. Cármen Lúcia. Pedido protocolado em

24/08/2016, em andamento. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcesso Andamento.asp?incidente=5037704>. Acesso em: 12/02/2017.

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a deficiência nos serviços públicos disponibilizados pelo Estado para prevenção e combate ao vírus zika, comprovada por vários pareceres técnicos; as graves violações a diversos preceitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, o livre desenvolvimento da personalidade, os direitos à liberdade e às integridades física e psicológica, o direito à informação, a proteção à maternidade e à infância, o direito à saúde e à prevenção de doenças, o direito à seguridade social, o direito ao planejamento familiar e de liberdade reprodutiva, e o direito à proteção das pessoas com deficiência; e a necessidade de implementação de políticas públicas adequadas para o combate eficaz da epidemia, consoante pareceres técnicos de organismos nacionais e internacionais.403

Com base, especialmente, nestes fundamentos, a ação tem como pedido, dentre outros, a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, sob o contexto de que a interrupção de gravidez promovida por mulheres infectadas pelo vírus zika encontra abrigo em interpretação constitucionalmente adequada da legislação infraconstitucional penal. Neste sentido, a interrupção da gravidez consiste em gênero, o qual é composto das espécies interrupção lícita, legal, constitucional e interrupção ilícita (aborto). Segundo a inicial, questões de técnica jurídica e sociais impõem modificações interpretativas sobre a interrupção lícita da gravidez, na qual deve se enquadrar o caso de gestantes infectadas pelo vírus zika. Em relação aos direitos das mulheres grávidas infectadas, há o seu direito à vida digna, o qual pressupõe a possibilidade de escolher não continuar com a gravidez que lhe causa intenso sofrimento; bem como o direito à liberdade, compreendendo-se a liberdade à autodeterminação sexual e à autonomia reprodutiva. Neste caso, a inicial pugna para que, em se considerando haver colisão de princípios, os direitos reconhecidos constitucionalmente à mulher devem estar, valorativamente, no mesmo status do direito à vida do embrião ou do feto.404

A ação encontra-se em andamento no STF, pendendo ainda decisão do órgão, mas já possui manifestação do Ministério Público, o qual, além de questionar aspectos preliminares, não de mérito, a exemplo da alegada ilegitimidade ativa da

403 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5581, Rel. Min. Cármen Lúcia. Petição inicial.

Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/Consultar ProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5037704>. Acesso em: 12/02/2017.

404 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5581, Rel. Min. Cármen Lúcia. Petição inicial.

Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/Consultar ProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5037704>. Acesso em: 12/02/2017.

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ANADEP, emitiu parecer em sentido a concordar com a constitucionalidade da interrupção da gravidez quando houver diagnóstico de infecção pelo vírus zica, visando à proteção da saúde da mulher e de sua autonomia reprodutiva. Pelo parecer, configura-se causa de justificação genérica de estado de necessidade, cabendo às redes pública e privada realizar o procedimento apropriado nessas situações.405

A decisão proferida na ADPF nº 54 enseja, portanto, a abertura de caminho para novas ações que oportunizam o debate sobre a afirmação de direitos e exigem do STF uma atuação ativista. Portanto, mais esta dimensão de ativismo judicial é verificada no agir do órgão constitucional pátrio.

No documento 2017GustavoBuzzato (páginas 137-142)