• Nenhum resultado encontrado

A incidência positiva: no sentido da expansão do poder punitivo 109

O TJUE tem-se pronunciado, em casos de grande significado, em termos que já têm sido identificados como demonstrativos de “uma mudança significativa da relação entre direito penal e União Europeia, em grande parte mediada por um uso algo desprendido [“disinvolto”] do instrumento judiciário por excelência neste domínio: o reenvio prejudicial”317.

                                                                                                               

314 O TJUE viria a pronunciar-se em sentido paralelo, ainda que com nuances, em outros casos recentes:

cfr. AcTJ, 6.12.2011, Achughbabian (C-329/11); AcTJ, 6.12.2012, Sagor (C-430/11); AcTJ, 19.9.2013, Filev e Osmani (C-297/12) (pedidos de decisão prejudicial apresentados por tribunal francês, italiano e alemão, respectivamente); e ainda AcTJ, 7.6.2016, Affum (C-47/15).

315V.MITSILEGAS, “Article 49”, p. 1367.

316 Cfr. ainda, do mesmo Autor, mais recentemente e com idêntica conclusão, “The relationship

between...”, p. 580 e 581.

317 S. MANACORDA, “La garanzie penalistiche...”, p. 4. Também V. MITSILEGAS, EU Criminal Law...Europe, passim, refere um “transformative effect”. Sobre o reenvio prejudicial, e a sua relação com

Interessa-nos nesta sede referir alguma da jurisprudência pós-Lisboa, a qual, mesmo após a definição algo estabilizada de um quadro de competência da União em matéria penal, continua a modelar e a redefinir os seus termos; muito em especial, a modelar as relações entre o direito da União e o direito penal (e processual penal) dos EM por via do mecanismo do reenvio prejudicial. Apesar do foco na jurisprudência mais recente, não deixarão de referir-se Acórdãos relevantes proferidos na vigência dos Tratados de Amesterdão e Nice, na medida da sua relevância e (pelo menos parcial) actualidade. Está essencialmente em causa a perspectiva da incidência positiva do direito europeu sobre o direito penal interno318, sob o signo da expansão do poder punitivo.

Em 2005, no conhecido caso Pupino319, o TJ proferiu uma decisão relevante no âmbito das relações entre o direito da União e o direito (processual) penal nacional, fazendo estender uma doutrina do primeiro pilar ao contexto do terceiro.

Neste Acórdão, já brevemente referido no 1.º Capítulo, um tribunal italiano – no âmbito de um processo penal promovido contra uma educadora de infância por maus tratos a menores –, perante a lei italiana que limitava aos processos por crime sexuais a faculdade de o juiz de instrução criminal recorrer à produção antecipada de prova e a formas especiais de recolha e produção de prova, suscita perante o TJ uma dúvida quanto à interpretação dos artigos 2.º, 3.º e 8.º da DQ relativa ao estatuto da vítima em processo penal320. Em causa estava a possibilidade, não prevista no processo penal relativamente aos crimes em causa, de inquirir as testemunhas menores em momento anterior ao do julgamento e em certas condições destinadas a proteger a sua dignidade, intimidade e serenidade, bem como assegurar a genuinidade da prova, em termos então requeridos pelo Ministério Público.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

o efeito directo e o primado, há que relembrar, a partir de N.PIÇARRA, “Nos 50 Anos...”, p. 120, que “o

acordão Van Gend en Loos marca o início da transformação do reenvio prejudicial num instrumento de fiscalização jurisdicional do cumprimento, pelos Estados-Membros, das obrigações que lhes incumbem por forma do direito da UE” (cfr. ainda N.PIÇARRA, “A justiça constitucional..”, p. 479). Para uma

análise do referido Ac., bem como dos Acs. Costa contra ENEL e Simmenthal, o Autor, ibidem. Ainda D. FREITAS DO AMARAL e N.PIÇARRA, “O Tratado de...”, p. 27, identificando o reenvio prejudicial como “pedra angular do sistema jurisdicional da UE, ao abrigo do qual se estabeleceu a sólida cooperação, embora por vezes não isenta de tensões, entre o TJ e os tribunais nacionais”.

318 Para uma visão recente sobre a incidência negativa, identificada enquanto “decriminalisation”, V.

MITSILEGAS, EU Criminal Law...Europe, p. 73 e 74; cfr. ainda, quanto a este ius non puniendi, a análise

supra, ponto 1.

319 AcTJ, 16.6.2005, Pupino (C-105/03). Vejam-se ainda as Conclusões da AG J. Kokott, apresentadas

em 11.11.2004.

320 Tratava-se da DQ do Conselho de 15.3.2001 relativa ao estatuto da vítima em processo penal

Não obstante as objecções dos Governos italianos, francês, sueco, britânico e francês321, o Tribunal considerou que o princípio da interpretação conforme se impunha também relativamente às decisões-quadro adoptadas no âmbito terceiro pilar, pelo que o órgão jurisdicional de reenvio, ao aplicar o direito nacional, e chamado a proceder à sua interpretação, estava obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do teor e da finalidade da DQ em causa; isto por forma a atingir o resultado visado por esta última. Ou seja, o Tribunal explicitou no âmbito do terceiro pilar, nas palavras de DIOGO

FREITAS DO AMARAL e NUNO PIÇARRA, “um dos corolários do princípio do primado,

que é o princípio da interpretação conforme do direito nacional em conformidade com o direito da UE e, concretamente, com as decisões-quadro adoptadas nos termos do artigo 34.º, n.º 2, alínea b), do TUE”322.

O Tribunal limitou (ou reiterou) o alcance da interpretação conforme “pelos princípios gerais de direito, nomeadamente os da segurança jurídica e da não retroactividade”, que designadamente se opõem a que a obrigação de interpretação conforme possa conduzir a desencadear ou a agravar a responsabilidade criminal (§ 44 e § 45)323. Todavia, considerou que “as disposições que são objecto do presente pedido de decisão prejudicial não têm por objecto a extensão da responsabilidade penal da interessada, mas o processo e os meios de produção de prova”; assim concluindo, com base numa implícita distinção entre regras processuais e substantivas, que não se suscitariam problemas relacionados com a violação do princípio da legalidade.

O Ac. Pupino tem dois significados muito relevantes.

Por um lado, ao estabelecer o princípio da obrigatoriedade da interpretação do direito nacional em conformidade com as decisões-quadro, por analogia com o princípio de idêntico conteúdo estabelecido para as directivas324, o TJ procurou uma “bridge

between the pillars” 325 com relevância constitucional. A questão perdeu interesse                                                                                                                

321 Os Governos intervenientes ressaltavam a diferença substancial entre a directiva e a DQ

designadamente quanto ao consagrado não efeito directo desta última, mais “insistindo nomeadamente no carácter intergovernamental da cooperação entre os Estados-Membros no quadro do título VI” (§ 26).

322 D.FREITAS DO AMARAL e NUNO PIÇARRA, “O Tratado de...”, p. 12, em nota. Os Autores advertem

todavia que o Título VI do TUE, no contexto do ex-terceiro pilar, levantava “obstáculos inultrapassáveis a que o seu direito prime sobre o direito dos Estados-Membros em termos idênticos ao direito comunitário, ao excluir expressamente o efeito directo dos actos jurídicos vinculativos que enumera”.

323 E mais esclareceu que o princípio da interpretação conforme não poderia servir de fundamento “a uma

interpretação contra legem do direito nacional” (§ 47); definindo ser necessário que “o órgão jurisdicional nacional tome em consideração, sendo caso disso, o direito nacional no seu todo para apreciar em que medida este pode ser objecto de uma interpretação que não conduza a um resultado contrário ao pretendido pela decisão-quadro” (destaque nosso).

324 Assim N.PIÇARRA, “O espaço de...perspectivas”, p. 31. 325 E.SPAVENTA, “Opening Pandora’s Box...”, p. 24.

prático com a erosão dos pilares operada pelo Tratado de Lisboa, mas é importante, quando vista em conjunto com os Acs. Ambiente, para evidenciar a tentativa do TJ em lograr a “normalização” da competência penal comunitária, procurando diluir quando lhe foi possível as fronteiras entre os pilares. Nessa medida, entre os Acs. Ambiente e

Pupino, na sua estrutural divergência e no seu distinto grau de importância, logra-se

uma leitura comum.

Não nos parece que a referida leitura seja polémica, no sentido de que parece não existir dúvida de que num e noutro caso o TJ pretendeu superar as dificuldades associadas à fragmentariedade dos pilares; NUNO PIÇARRA refere os “impulsos racionalizadores e unificadores” do Ac. Pupino326, e também do Ac. Ambiente327.

No entanto, ambos os Acórdãos consentem interpretações ou valorações diversas a esse propósito. Por um lado, para além da invocação do referido argumento da fragmentariedade, pode negar-se a bondade intrínseca do ex-terceiro pilar, inclusivamente reconhecendo-lhe o défice democrático inerente à ausência de participação do PE, nessa medida aplaudindo as tentativas de superação pretoriana; mais assinalando que a matéria penal nunca esteve totalmente isenta de uma certa “comunitarização”. De um lado oposto, pode criticar-se o Tribunal por não ter levado a sério os limites do princípio da atribuição, não respeitando a vontade dos “donos do Tratado”; ou seja, por não ter actuado numa lógica de restraint que lhe era imposta pela estrutura intergovernamental rígida, mesmo que a espaços mitigada, do terceiro pilar (com as suas importantes regras, designadamente a da unanimidade do Conselho). Esses posicionamentos críticos serão postos em evidência, com mais detalhe, na Parte II, 3.º Capítulo (por referência, em especial, ao Ac. Ambiente).

O Ac. Pupino tem ainda importância pelo lado da questão penal propriamente dita: a relacionada com o alcance do princípio da legalidade. Com efeito, o Tribunal veio admitir que um acto de direito derivado (a DQ) pudesse dar lugar, por via da                                                                                                                

326 N. PIÇARRA, “Direito da União...”, p. 266: “O que precede ilustra bem o carácter fragmentado,

complexo e mesmo confuso do quadro decisório e normativo que é actualmente o do ELSJ, assim como a sua não correspondência a uma ‘lógica de construção eficaz’. Importa, por isso mesmo, analisar os impulsos racionalizadores e unificadores que têm vindo das próprias instituições da UE e, muito em especial, do Conselho Europeu e do TJ” – cfr., para essa análise, p. 266 e ss. Sobre a intervenção do TJ, o Autor refere-se em especial ao Ac. Pupino na perspectiva da questão do sistema de fontes (aproximação da eficácia jurídica da DQ daquela que dispõe a directiva). Em sentido algo paralelo, analisando o caso Pupino, A.MIRANDA RODRIGUES, “O Tratado de...”, p. 188, refere que esta “comunitarização”, afirmada pelo Tribunal, “favorece, indiscutivelmente, a realização efectiva do direito penal europeu, objectivo claramente pretendido pelo Tribunal, tendo em conta o seu défice de aplicação e a necessidade sentida de o superar”; veja-se ainda E.SPAVENTA, “Opening Pandora’s Box...”, designadamente, p. 24.

interpretação conforme, a uma possível releitura da norma processual penal nacional relativa à admissibilidade dos meios de prova328.

STEFANO MANACORDA refere, quanto a esta última questão, que “a

circunstância de a decisão ter ficado confinada ao âmbito do processo penal, assume uma aparenta valia tranquilizadora”329. Todavia, também refere que essa impressão de tranquilidade pode ser relativizada pela ideia de uma certa “fluidez das linhas de fronteira entre direito e processo penal” (pense-se no caso da prescrição). ELEANOR

SPAVENTA, por sua vez, em anotação ao Acórdão, assinala “as dificuldades encontradas

no estabelecimento de uma clara linha divisória entre o que agrava a responsabilidade criminal e o que não”330.

Ainda em 2005, o TJ proferiria o Ac. Berlusconi331, convocando, não um problema de interpretação conforme, mas de eventual desaplicação de normas

nacionais mais favoráveis ao arguido; de qualquer forma, estava subjacente a afirmação

do princípio do primado332.

Neste caso, também de reenvio prejudicial, tratou-se de questionar a compatibilidade do direito penal italiano com uma directiva relativa à protecção dos sócios e de terceiros no domínio de actividade das sociedades comerciais, que designadamente impunha aos EM a previsão de “sanções apropriadas” para a “falta de publicidade do balanço e da conta de ganhos e perdas”. A questão foi suscitada no âmbito de um processo penal promovido contra três cidadãos italianos por crimes relacionados com falsificações contabilísticas, estando em causa, simplisticamente, a tentativa do órgão jurisdicional de reenvio de “salvar” o processo crime, por via da desaplicação de nova lei. Com efeito, considerando a entrada em vigor de nova lei mais                                                                                                                

328 Assim, S.MANACORDA, “La garanzie penalistiche...”, p. 12. 329 Ibidem.

330 E.SPAVENTA, “Opening Pandora’s Box...”, p. 12 e 13. Por essa razão, a Autora afirma, embora em

geral aplaudindo o Ac. na vertente da aproximação da eficácia jurídica da DQ à directiva: “it would have been preferable for the Court to clearly state that the principle of consistent interpretation can never be used to the detriment of the defendant, regardless of the nature of the rules in question”.

331 AcTJ, 3.5.2005, Berlusconi e o. (C-387/02 e apensos).

332 Como refere N.PIÇARRA, “Nos 50 Anos...”, p. 120, “no ordenamento da União, os princípios do efeito

directo e do primado e o reenvio prejudicial formam um ‘trio inseparável’” (cfr. o Autor para aprofundada análise sobre cada um dos elementos do trio). Sobre o princípio do primado, refiram-se os clássicos: AcTJ, 15.7.1964, Costa/E.N.E.L. (C-6/64); AcTJ, 9.3.1978, Amministrazione delle finanze dello Stato/Simmenthal (C-106/77); AcTJ, 19.6.1990, The Queen/Secretary of State for Transport, ex parte Factortame (C-213/89). Cfr. ainda a Declaração n.º 17 anexa à Acta Final da Conferência Intergovernamental que aprovou o Tratado de Lisboa. Sobre o primado, designadamente sobre a sua génese, evolução, conteúdo e alcance, D.FREITAS DO AMARAL e N.PIÇARRA, “O Tratado de...”; ainda N.

favorável aos arguidos, tais novas disposições, ao converterem anteriores delitti em contravvenzioni, tinham por consequência impedir que os factos pudessem ser objecto

de procedimento penal, designadamente, mas não só, por força da sua prescrição333. Estava em causa – novamente simplisticamente, já que as questões prejudiciais suscitadas são complexas, cfr. § 37 a 41 – determinar se seria possível interpretar as novas disposições nacionais de acordo com o direito comunitário, maxime com a directiva supra referida e com o art. 5.º do TCE na esteira do Ac. Milho Grego (sanções

efectivas, proporcionadas e dissuasivas).

O Tribunal começou por considerar que “os direitos fundamentais fazem parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito o Tribunal de Justiça garante”, inspirando-se, designadamente, nas “tradições constitucionais comuns dos Estados- Membros”, sendo que “o princípio da aplicação retroactiva da pena mais leve faz parte [dessas] tradições constitucionais comuns” e por isso “faz parte dos princípios gerais de direito comunitário que o juiz nacional deve respeitar” (§ 66 a 69). Mais considerou o Tribunal, na esteira da sua jurisprudência reiterada, que “uma directiva não pode, por si só, criar obrigações para um particular e não pode, portanto, ser invocada, enquanto tal, contra ele”, especificando que, no contexto do processo penal, “o Tribunal de Justiça [já] precisou que uma directiva não pode, por si só e independentemente de uma lei interna adoptada pelo Estado-Membro para a sua aplicação, criar ou agravar a responsabilidade penal de quem a viole”. O Tribunal considerou in casu que afastar a aplicabilidade da (nova) lei nacional, globalmente mais favorável, significaria a aplicação de uma “sanção penal manifestamente mais pesada” para os arguidos.

O Tribunal, no caso Berlusconi, excluiu promover uma linha de interpretação que pudesse conduzir, através da desaplicação da nova lei, ao reconhecimento de uma situação claramente prejudicial aos recorrentes; a interpretação do princípio da legalidade sufragada revelou-se conforme com o direito constitucional designadamente italiano, não resultando evidente qualquer conflito. Diferente interpretação era sustentada pela AG J. Kokott, para quem “[o] órgão jurisdicional de um Estado- Membro é obrigado a criar as condições necessárias para assegurar o cumprimento das                                                                                                                

333 A modificação na qualificação da infracção tinha as seguintes consequências: i) a prescrição do

processo; ii) impossibilitava que as infracções conexas, como por exemplo o branqueamento de capitais, pudessem ser objecto de procedimento penal, pela necessidade de conexão a um delitto; iii) relativamente a um dos crimes, a prossecução penal ficava dependente de queixa de um sócio ou credor. Além do mais, os procedimentos passavam a estar limitados por uma nova circunstância relacionada com os impactos da falsificação nas contas (excluindo dos pressupostos da norma sancionatória as falsificações com efeitos económicos não significativos ou de menor importância).

exigências de uma directiva comunitária, sem que para isso seja necessária uma decisão prévia do tribunal constitucional nacional, deixando de aplicar uma lei penal mais favorável entrada em vigor após a verificação dos factos, se essa lei for incompatível com a directiva”334.

No recente Ac. Taricco335, e ainda que os casos não sejam absolutamente similares, o Tribunal adopta uma perspectiva diversa daquela adoptada no Ac.

Berlusconi; e segue, nesse caso, um raciocínio paralelo ao defendido pela AG J.

Kokott336. O Ac. Taricco, ao convocar o instituto da prescrição, vem demonstrar a dificuldade em acomodar várias interpretações do princípio da legalidade, fazendo ressaltar uma leitura a partir do “mínimo denominador comum”. O princípio da

efectividade ou eficácia é, nesse processo, elevado ao seu expoente máximo. E o conflito constitucional manifesta-se.

Um tribunal italiano, no âmbito de um processo penal de “IVA em carrossel”, confrontado com a lei italiana que prevê que o respectivo procedimento criminal se extingue por efeito de prescrição logo que decorra o prazo normal de prescrição acrescido de um quarto (ao invés da metade, tal como previsto para outro tipo de crimes), e convicto de que o sistema italiano não permitiria tomar uma decisão transitada em julgado antes de Fevereiro de 2018 (data-limite para a prescrição de todas

                                                                                                               

334 Cfr. as Conclusões da AG J. Kokott apresentadas em 14.10.2004. A.KLIP, European Criminal Law...,

p. 187, atendendo às particularidades do caso, questiona até que ponto o facto de o arguido principal ser também o líder político responsável pela alteração legislativa, não deveria ter conduzido a interpretação diversa. O Autor refere: “[i]f the accused himself brings about the change of law, one may doubt the objectiveness of the national legislature”. É um ponto interessante, mas o Autor avança para a seguinte interrogação algo provocatória: “[d]oes not such an extraordinary situation fall under the Nuremberg exception, as formulated in Article 7, paragraph 2 ECHR?”. Relembre-se que a Convenção dispõe, como excepção ao princípio da legalidade que “[o] presente artigo não invalidará a sentença ou a pena de uma pessoa culpada de uma acção ou de uma omissão que, no momento em que foi cometida, constituía crime segundo os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas”.

335 AcTJ, 8.9.2015, Taricco e o. (C-105/14). Para análises do Ac., cfr., entre outros, S.MANACORDA, “La

prescrizione delle...”; S. MANACORDA, “Le garanzie penalistiche...”; F. GIUFFRIDA, “The Limitation

Period...”; M.TIMMERMAN, “Balancing effective criminal...”; E.BILLIS, “The European Court...”.

336 Cfr. as Conclusões da AG apresentadas em 30.4.2015. A AG começa por questionar de forma muito

clara: “[o] direito da União impõe que os tribunais dos [EM] não apliquem determinadas disposições do seu direito interno sobre a prescrição de crimes para garantirem uma efectiva punição dos crimes fiscais?” (cfr. § 1). A AG responde à questão, nos seguintes e conclusivos termos: “[u]m regime nacional de prescrição do procedimento que, por razões sistémicas, conduz, em numerosos casos, à impunidade dos responsáveis pelas fraudes em matéria de imposto sobre o valor acrescentado, é incompatível com os referidos preceitos do direito da União [art. 4.º, n.º 3, do TUE, art. 325.º do TFUE, Regulamento n.º 2988/95, Directiva 2006/112/CE, art. 2.º, n.º 1, da Convenção PIF]. Esse regime não deve ser aplicado pelos órgãos jurisdicionais nacionais nos processos criminais pendentes”.

as infracções)337, dirigiu ao TJ um conjunto de questões destinadas a aferir da compatibilidade da lei italiana com o direito europeu.

O órgão jurisdicional de reenvio questionava em concreto se o “artigo 160.º, último parágrafo, do Código Penal, na parte em que, no caso da interrupção do prazo de prescrição, prevê apenas que este seja acrescido de um quarto da sua duração [inicial], permitindo assim a prescrição dos crimes e consequentemente a sua impunidade, não obstante o exercício tempestivo da acção penal”, (i) é contrário à norma que tutela a concorrência, (ii) traduz uma forma de auxílio de Estado concedido pela República Italiana, (iii) traduz uma isenção adicional (de IVA) relativamente às que estão taxativamente previstas na Directiva n.º 2006/112 ou (iv) viola o princípio das finanças públicas sólidas. Na opinião do órgão de reenvio, seria possível garantir a aplicação efectiva do direito da União “na hipótese de lhe ser permitido não aplicar as disposições nacionais em causa”, ou seja, as normas sobre prescrição.

A argumentação central do TJ encontra-se na resposta à terceira questão (cfr. § 34 e ss.), partindo da consideração de que está em causa, em substância, saber se um regime nacional como o descrito redunda, ou não, em dificultar a efectiva luta contra a

fraude em matéria de IVA no EM em causa, de uma forma incompatível com a

Directiva n.º 2006/112, bem como, de uma forma mais geral, com o direito da União. A resposta do Tribunal, consubstanciada na declaração final do processo, enuncia-se da seguinte forma:

“Um regime nacional de prescrição de infracções penais, como o estabelecido (...), que previa, à data dos factos do processo principal, que o acto que determina a interrupção da prescrição no quadro de procedimentos penais relativos a fraudes graves em matéria de imposto sobre o valor acrescentado tem o efeito de prorrogar o prazo de prescrição em apenas um quarto da sua duração inicial, é suscetível de violar as obrigações impostas aos [EM] por força do artigo 325.º, n.os 1 e 2, TFUE, caso esse regime nacional impeça a aplicação de sanções efectivas e dissuasoras num número considerável dos casos de fraude grave lesiva dos interesses financeiros da [UE] ou