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04.02 – A influência andaluza na segunda metade do século XIX, princípio do

Outra das peculiaridades e especificidades da Festa em honra da Mãe Soberana é a maneira como a Virgem é «passeada» pelas principais artérias da cidade. Modo, esse, que não encontra paralelo em mais nenhuma procissão realizada de Norte a Sul de Portugal. Em Loulé, o andor de Nossa Senhora da Piedade «dança», em cima dos ombros dos Homens do Andor, ao ritmo das marchas processionais executadas no momento. Mas como é que terá surgido esta tradição? Quem a terá imposto? E quando?

Ao longo do século XIX a vila de Loulé recebeu sucessivas vagas de emigração407. Emigrados, na sua esmagadora maioria, da região do Andévalo andaluz408, nomeadamente dos pueblos vizinhos de Villanueva de los Castillejos e de El Almendro409. Ora, acontece que tal forma de processionar os andores é muito praticada (mesmo, comum) nos principais cortejos religiosos andaluzes, nomeadamente na procissão em honra da Virgen de las Piedras Albas410, padroeira desses dois pueblos do Andévalo andaluz. Deste modo, terá sido a numerosa comunidade andaluza que se fixou em Loulé, ao longo do século XIX, a influenciar este peculiar modo de transportar o andor da Virgem louletana. E assim permaneceu até hoje.

407 Ao longo do século XIX Loulé recebeu sucessivas vagas de emigração, proveniente da

Andaluzia. A primeira ter-se-á verificado entre 1810 e 1812, quando as povoações vizinhas de El Almendro e de Villanueva de los Castillejos se converteram em sede do Quartel-general e importante teatro de operações das tropas que actuavam na fronteira com Portugal. Uma segunda vaga de emigração ter-se-á desenrolado entre 1814 e 1833. Esta vaga parece que se ficou a dever à instável situação política e social vivida em Espanha, no reinado de Fernando VII (r. 1808 – 1833); que, anos mais tarde, levaria, mesmo, ao desencadear de uma Guerra Civil, travada entre liberais e absolutistas. À imagem do que se verificou também em Portugal. Em Espanha, durante essa primeira Guerra Civil, que passou à História com a designação de Primeira Guerra Carlista (1833-1840), registaram-se períodos alternados de dominância. Sendo assim, os andaluzes que emigraram para Loulé fizeram-no por uma das seguintes três razões: uns por serem favoráveis ao Antigo Regime, outros por serem liberais ou ‘afrancesados’ e outros, ainda, por deserção das tropas ou antes de serem incorporados nas mesmas.

Não existindo ainda nenhum estudo sobre a emigração andaluza para Loulé, ao longo do século XIX, sabe-se, porém, que em Janeiro de 1900 num casamento realizado em Vila Real de Santo António, pelo menos 125 (cento e vinte e cinco!!!) naturais ou descendentes de andaluzes, residentes na vila de Loulé e ligados ao comércio local, ofereceram prendas aos recém casados (cf. O Pregoeiro, n.º 92, de 8 de Fevereiro de 1900, pp. 1-3).

408 O Andévalo andaluz ou El Campo de Andévalo trata-se de uma comarca histórica situada na

província de Huelva, na Andaluzia. Geograficamente situa-se entre a Serra de Aracena e a fronteira com Portugal. Do Andévalo andaluz fazem parte os actuais quinze municípios: Alosno, Tharsis, Cabezas Rubias, Calañas, El Almendro, El Cerro de Andévalo, El Granado, Paymogo, Puebla de Guzmán, San Bartolomé de la Torre, Sanlúcar de Guadiana, Santa Bárbara de Casa, Valverde del Camino, Villanueva de las Cruces e Villanueva de los Castillejos.

409 Sobre este assunto, veja-se: MARTINS, Maria Isilda Renda, Loulé no século XX. 1.º volume,

Da decadência da Monarquia à implantação da República, [s.l.], edições Colibri e Câmara Municipal de Loulé, 2001, pp. 234-239.

410 Piedras Albas é a invocação canónica da Virgen padroeira dos pueblos andaluzes de El

Almendro e de Villanueva de los Castillejos. A sua ermida data do século XV e é composta por uma nave com tecto em abóboda, tendo, ainda, quatro janelas altas. A ermida situa-se no chamado «prado de Osma», mesmo em frente ao serro denominado por Cabeça del Buey, anterior povoação de Osma. Encontra-se rodeada por montes. A festa em honra da Virgen de las Piedras Albas inicia-se, anualmente, no Domingo de Páscoa. O ponto alto da romaria decorre, porém, na terça-feira seguinte ao Domingo de Páscoa, com a celebração da solene procissão em honra da Virgen de las Piedras Albas. A actual imagem da Virgen data dos anos Cinquenta do século XX, uma vez que a anterior imagem foi destruída durante a Guerra Civil de Espanha (cf. CORREIA, António Horta, Sebastian Ramírez (1828-1900). Subsídio documental para uma biografia, Vila Real de Santo António, edição da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, 2008, p. 12).

Essa influência, porém, não se terá feito sentir somente ao nível do transporte do andor. Os vários tipos de «Vivas!»411, gritados por populares à passagem da procissão, foram também por eles trazidos para Loulé. Tradição, essa, igualmente recorrente nas principais procissões andaluzas412. Em Loulé, no princípio do século XX, os «Vivas!» já faziam, desde há muito, parte intrínseca da Festa. Em 1915, numa reportagem sobre a Festa desse ano, podia-se ler o seguinte: «Apenas apareceu a muito querida imagem de Nossa Senhora da Piedade à porta da igreja toda aquela gente se descobriu e principiou a dar vivas à Mãe Soberana».

«Percorrida a vila volta-se ao largo de São Francisco. O pálio e o Santo Lenho recolhem à igreja paroquial e, depois de alguns momentos de descanso, rompe a filarmónica com o ordinário da Senhora da Piedade, levantam-se vivas à Mãe Soberana, à Mãe dos pobres, à Nossa Mãe e assim se galga em poucos minutos e no meio de um entusiasmo indescritível a distância que vai da vila à ermida de Nossa Senhora».

«As saudações à Virgem repetem-se constantemente e são correspondidas com verdadeiro delírio»413. E em 1917 era assim: «O amor e a devoção dos louletanos a Nossa Senhora da Piedade não podem encerrar-se em ocasião tão solene dentro dos peitos; precisam de exteriorizar-se, de expandir-se e eis a razão, porque os vivas à Mãe Soberana se ouvem de todos os lados e saem espontaneamente dos lábios daqueles que acompanham a venerada imagem à sua ermida»414.

No que diz respeito, especificamente, aos Homens do Andor eles possuem um conjunto de características que não existem em mais nenhuma procissão do nosso país. Possuem uma farda de trabalho específica, vestida somente para o transporte do andor415; a marcha do andor é orientada por dois Tochas (na Andaluzia estes homens

411 Os «Vivas!» mais recorrentemente escutados à passagem da procissão são os seguintes:

«Viva a Mãe Soberana!», «Viva a Nossa Senhora da Piedade!», «Viva aos Homens do Andor!» e «Viva a Musica Nova!».

412 Veja-se, a título de exemplo, as procissões celebradas em honra da Virgen de las Piedras

Albas, que se realiza em Villanueva de los Castillejos; a procissão em honra de la Virgen del Rocío, na aldea del Rocío (Almonte); ou as procissões em honra de la Virgen Esperanza Macarena e de la Virgen Esperanza de Triana, que saem para as ruas na madrugada de quinta para sexta-feira santa em Sevilha.

413 Cf. «Loulé», in Folha do Domingo, número XLI, de 25 de Abril de 1915, p. 3.

414 Cf. «Uma festa encantadora», in Folha do Domingo, n.º 146, de 29 de Abril de 1917, p. 1. 415 A farda de trabalho dos Homens do Andor é simplesmente designada por «roupa». Dela

fazem parte: calça branca, camisa branca, casaco preto, meias brancas, laço preto (na Festa Pequena) ou laço branco (na Festa Grande), luvas brancas de algodão e sapatos pretos, vestindo por cima uma opa branca, com cabeção azul. Antigamente, a farda dos Homens do Andor era ainda composta por uma cinta preta e por botas de elástico, em vez dos sapatos pretos que se usam hoje em dia.

chamam-se Capataces); e possuem um léxico próprio somente por eles falado, composto por mais de meia centena de termos técnicos e expressões utilizadas no decorrer da Festa416. Características tão incomuns de se encontrar em Portugal, quanto habituais nas procissões celebradas na Andaluzia417. É isso mesmo. Este conjunto de tipismos ou de modismos foi, também ele, trazido e introduzido na Festa pela comunidade andaluza que se fixou em Loulé ao longo do século XIX.

Deve-se referir que a numerosa comunidade andaluza a residir em Loulé (naturais ou descendentes) também fez parte de inúmeras comissões promotoras das Festas da Piedade. Esse facto é bem visível na década de 1910, quando várias comissões promotoras das Festas são constituídas, em grande parte, por emigrantes andaluzes (naturais ou descendentes) 418.

Por outro lado, refira-se que no final do século XIX a Sociedade Filarmónica União Marçal Pacheco, vulgo «Música Velha», começa a deslocar-se, com alguma frequência e regularidade, à Andaluzia, por forma a abrilhantar as festividades religiosas de vários pueblos andaluzes. A que se seguiu também a Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva, vulgo «Música Nova». Refira-se, igualmente, a existência na imprensa local e regional da época – décadas de 1900 e de 1910 –, de vários anúncios a excursões saídas de Loulé rumo a Sevilha por forma a acompanharem os tradicionais festejos da Semana Santa. Assim sendo, nos finais do século XIX, princípio do século XX, o intercâmbio Loulé (Algarve) – Andaluzia era efectuado em várias frentes.

416 Sobre este assunto veja-se o Dicionário Mãe Soberaneiro (O léxico falado pelos Homens do

Andor), que consta no Apêndice n.º 4.

417 Para uma melhor compreensão da temática relacionada com o ‘universo’ dos Capataces e dos

Costaleros nas procissões celebradas em toda a Andaluzia, em geral, e em Sevilha, em particular, consulte-se, por exemplo, as seguintes obras: AA. VV., Actas del II Congresso de Capataces y Costaleros, organización de la Antigua Archicofradía, Pontificia, Real e Ilustre Hermandad de Madre de Dios del Rosario, Fundación Sevillana de Electricidad, Sevilla, Octubre de 1996, Sevilla, Guadalquivir, 1998; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, Diccionario Cofradiero. Más de 3.580 expresiones de la Semana Santa de Sevilla, y outras de España, 3.ª edición aumentada, corrigida y actualizada, Sevilla, editoral Castillejo, 2002; MORENO RODRÍGUEZ, Rafael, y RÍOS BERMÚDEZ, Moisés, ¿Locos del Costal?, Aproximación psicológica al costalero, Sevilla, Abec editores, 2012; ROMERO MENSAQUE, Carlos José y LEÓN, José Domínguez, Breve historia de La Semana Santa de Sevilla, 1.ª edición, Málaga, editorial Sarriá, 2003; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, Léxico de Capataces y Costaleros: voces, modismos y giros propios, 3.ª edición, colecção Biblioteca Guadalquivir, Sevilla, Guadalquivir, 2003; e, ainda, ZAMORA, José Antonio, Momentos Semana Santa de Sevilla, 2.ª edición, Sevilla, Algaida editores, 2000.

418 Tomemos como exemplo a comissão promotora das Festas da Piedade de 1912. Nessa

comissão composta por cinco membros quatro deles eram descendentes de andaluzes: Bartholomeu Rodriguez y Rodrigues, Pablo Garcia Delgado, Pedro Gomes Marques e Ignácio Garcia Alvarez, sendo o restante membro o português António Martins Sancho, cf. «Festas em Loulé», in O Algarve, n.º 213, de 21 de Abril de 1912, p. 2, ou O Algarvio, n.º 6, de 28 de Abril de 1912, p. 3.

Todas as especificidades atrás descritas não existem em mais nenhuma procissão em Portugal, sendo, todavia, muito comuns de serem encontradas nas procissões mais importantes que se celebram na Andaluzia. Deste modo, deve-se concluir que a comunidade andaluza residente em Loulé teve um papel muito importante na importação de algumas destas características, eminentemente andaluzas, para a Festa da Piedade. O seu intuito era simples: uniformizar e normalizar algumas questões relacionadas com a Festa, com o objectivo final de dotá-la de um maior profissionalismo processional.