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03.01 – A Festa Grande da Piedade de 1912

Em 1912, uma semana antes das Festas, que, nesse ano, se realizaram de 27 a 29 de Abril, O Sul176, «Semanário Republicano – Defensor dos Interesses da Região», lamentava: «Diziam-nos que em qualquer, dos três dias de festa haveria um bodo aos pobres, e a nossa alma radiosa de intenso júbilo por tão louvável iniciativa; todavia, o programa não faz menção de tal, o que nos leva a crer que a comissão atendeu mais a missas e matinas, para regabofe do clero, que a matar a fome aos desprotegidos da sorte; a mais santa e a mais pura das religiões!»177.

Após as Festas O Sul dedicava uma larga reportagem às mesmas. Começava por dizer: «Concorrida por muitas mil almas a procissão de domingo [28 de Abril], reduzido, porém, à expressão mais simples o elemento oficial e de preponderância da vila, que brilhou pela ausência»178. O regime político tinha mudado. A Monarquia tinha dado lugar à República. E, agora, não era comum ver políticos locais republicanos incorporarem a solene procissão. A Lei de Separação tinha trazido a laicidade à administração pública local. Religião e política andavam, agora, separadas. E não raras vezes de costas voltadas.

Mais à frente, o colaborador d’O Sul reportava o sermão efectuado no adro da ermida, à chegada da procissão, da seguinte forma: «Entusiástica, como nos anos anteriores, a condução da imagem para a ermida, em cujo adro o padre Luiz Manuel Vieira (pároco de São Clemente, em Loulé) pregou, não perdendo, a ocasião profícua de alfinetar a liberdade e o regime, embora velando a frase, por temor de graves

175 Sobre este assunto ver: ALEIXO, João Romero Chagas, «As Festas da Piedade de 1912:

Programa, Relatos e Desacatos (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1701, de 1 de Novembro de 2010, p. 15 e, igualmente, ALEIXO, João Romero Chagas, «As Festas da Piedade de 1912: Programa, Relatos e Desacatos (2.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1702, de 15 de Novembro de 2010, p. 15.

176 O periódico O Sul foi fundado a 24 de Março de 1912. No seu cabeçalho apresentava a

inscrição «Semanário Republicano – Defensor dos Interesses da Região», para, a partir de 2 de Junho de 1912, passar a designar-se por «Semanário Republicano Evolucionista – Defensor dos Interesses do Algarve». «Foi, no seu tempo, um dos jornais mais bem colaborados da imprensa algarvia. Era intrinsecamente um periódico republicano, que, pouco depois da sua fundação, abraçaria a política do Partido Evolucionista, contrabalançando com ‘O Heraldo’, afecto ao Partido Democrático de Afonso Costa, de quem era directo adversário. Na verdade, ‘O Sul’ foi um dos mais polémicos e controversos semanários farenses dos princípios do novo regime republicano» in José Carlos Vilhena MESQUITA, História da Imprensa do Algarve, volume I., op. cit., pp. 487-489.

177 Cf. «Senhora da Piedade», in O Sul, n.º5, ano 1, de 21 de Abril de 1912, p. 2. 178 Cf. «Senhora da Piedade», in O Sul, n.º7, ano 1, de 5 de Maio de 1912, p. 2.

consequências»179. Mas nem tudo tinha decorrido de forma tão tranquila. O mesmo jornal denunciava dois episódios ocorridos no decorrer da Festa. O primeiro: «a agressão feita ao digno Delegado do Procurador da República, Sr. Dr. Joaquim Crisóstomo da Silveira Júnior, e ao Sr. Dr. João de Brito Farrajota, quando, na tarde de domingo, à hora do sermão, passeavam tranquilamente, de chapéu na cabeça a muitos metros de distância da multidão que cercava o púlpito, e quase fora do Largo da Liberdade, onde muita outra gente se encontrava igualmente de chapéu na cabeça, o que tudo demonstra à evidencia o propósito de vexar aqueles cavalheiros, espíritos liberais profundamente odiados pelos ultramontanos»180. O segundo: «a falta de respeito ao hino nacional e o selvático assalto feito à filarmónica União Marçal Pacheco, que o executava, quando, na noite de domingo, ao terminar o arraial, se dispunha a recolher à casa do ensaio»181.

Por sua vez, O Heraldo182 dava, também ele, conta de alguns incidentes acorridos na Festa Grande. Segundo o correspondente do periódico em Loulé, a Festa Grande desse ano tinha servido «de pretexto para a política talássica dar mais uma vez uma triste nota dos seus mesquinhos processos». E continuava: «Para que se veja quanto é grande o desejo de afrontar os velhos republicanos desta vila, basta dizer que nas ornamentações da referida festa predominaram as cores azul e branca […]». Denunciado, de seguida, que se não tivesse sido a «enérgica intervenção do nosso prezado amigo e correligionário sr. Manuel Contreiras Júnior, a bandeira nacional teria sido propositadamente içada ao contrário, para servir de escárnio e irrisão aos inimigos da República». De seguida, relatava o incidente protagonizado por um popular, que O Heraldo apelidava de «fanático», que tirou «violentamente o chapéu» da cabeça do sr. procurador geral da República que assistia, «coberto», ao sermão no largo da Liberdade. Mais à frente, o articulista interrogava-se duplamente: «Que diz a isto o sr. ministro da

179 Cf. ibidem. 180 Cf. ibidem. 181 Cf. ibidem, pp. 2-3.

182 O Heraldo apresentava-se, no cabeçalho, como sendo um «Bissemanário Republicano

Democrático». Fundado a 10 de Abril de 1912, publicava-se às quartas e aos sábados. Tinha uma conotação noticiosa e regionalista e, politicamente, era afecto ao Partido Democrático do Dr. Afonso Costa. Foram seus proprietários Carlos Augusto Lyster Franco e João Pedro de Sousa; ocupando o primeiro, igualmente, as funções de director e de editor do periódico. Publicaram-se, ao todo, 396 números, tendo a última edição sido publicada a 26 de Agosto de 1917 (cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume I, op. cit., pp. 311-322).

Justiça?»; «Não seria bom acabar de uma vez para sempre com estas manifestações de culto externo, tão férteis em provocar desordens?»183.

Ora, como seria de esperar, a agressão perpetrada contra o Delegado do Procurador da República, Dr. Joaquim Crisóstomo da Silveira Júnior, desencadeou uma onda de artigos publicados em quase todos os jornais da região. As opiniões dividiam-se. Se uns reprovavam a agressão; outros defendiam-na. Tudo dependia da linha editorial do periódico. No Ecos do Sul184 escrevia-se: «Em Loulé, até o próprio delegado do Procurador da República, foi violentado a tirar o seu chapéu, na ocasião em que passava em sua frente a Sr.ª da Piedade… É duro violentar-se um cidadão a cumprimentar alguém que não conhece… e o gesto selvagem das catolicíssimas bestas, está a pedir a justíssima sentença de trabalhos forçados, puxando perpetuamente aos varais de uma carroça…»185. Na Alma Algarvia186 podia-se ler: «- Procissão pela rua, sermões ao ar livre, e como o delegado do Procurador da República não quis tirar o chapéu, foi insultado e desrespeitado».

«- Mas como é que um ministro democrático, depois do caso da Chamusca187, ainda consente procissões pela rua?!»

«Vergonhoso, tudo isto»188.

Por outro lado, O Algarve189 contrapunha: «Aqueles senhores cidadãos, o primeiro ultra-católico, antes do 5 de outubro, como em tempo se mostrará, e o segundo

183 Cf. «Loulé», in O Heraldo, ano 1, n.º 10, de 11 de Maio de 1912, p. 3.

184 O periódico Ecos do Sul apresentava-se ao seus leitores como sendo um «Semanário

Democrata Independente». Foi fundado a 6 de Janeiro de 1912 e tinha a sua sede em São Brás de Alportel. Tratava-se de um semanário «republicano democrático, que se dizia independente, dedicado à propaganda e valorização das potencialidades da região» in José Carlos Vilhena MESQUITA, História da Imprensa do Algarve, volume II, op. cit., pp. 348-351.

185 Cf. «Intolerância religiosa», in Ecos do Sul, n.º 18, de 4 de Maio de 1912, p. 1.

186 A Alma Algarvia foi um «Semanário Republicano» fundado a 12 de Março de 1911. Sedeado

em Silves, mas com forte implantação regional, apresentava uma conotação fortemente noticiosa, regionalista e de marcada inspiração republicana. Mais tarde aderiria mesmo ao Partido Republicano Democrático, cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume II, op. cit., pp. 365-368.

187 O chamado «caso da Chamusca» foi o nome pelo qual ficaram conhecidos os graves

confrontos que decorreram na tradicional procissão dos Fogaréus, realizada na quinta-feira santa, dia 4 de Abril de 1912, nessa vila ribatejana. Os confrontos opuseram republicanos a católicos e saldaram-se num morto e em vários feridos que participavam na procissão, cf. MOURA, Maria Lúcia de Brito, op. cit., pp. 380-381.

188 Cf. «Uma vergonha», in Alma Algarvia, n.º 61, de 5 de Maio de 1912, p. 2.

189 O semanário O Algarve foi fundado a 29 de Março de 1908. A complementar o título vinha

republicano, por despeito, de 1907 a esta parte, por consequência um petiz histórico, um bebé de 6 anos de calção e peúgas, e encarregado de desmamar o primeiro que apesar de já ter dezoito meses, ainda… mama nos já flácidos peitos da República, entenderam que podiam afrontar impunemente sentimento religiosos desta vila tão extraordinariamente atestado no louco entusiasmo com que celebra a festa e na devoção que conserva à sua Mãe Soberana»190. Para, mais à frente, concluir: «E foi o caso que tendo os referidos e antipáticos cidadãos os chapéus na cabeça! com o ostensivo desrespeito pelas crenças de milhares de pessoas que assistiam ao referido acto religioso, o rapazio os correu e alguém obrigou o delegado a descobrir-se em nome do bom senso que ele e o seu companheiro não conhecem»191.