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A interpretação semântica da estrutura

Capítulo 3 A arquitetura da gramática

3.6 A Sintaxe de Primeira Fase (Ramchand 2008)

3.6.3 A interpretação semântica da estrutura

No que diz respeito à interpretação semântica da estrutura em (56), os três subeventos se ligam por um primitivo combinatorial do sistema, representado por ‘!’, que indica uma relação de causa ou “leva a”.71 A regra geral de composição do evento é representada em (57) a seguir

(Ramchand, 2008a, p. 44), com base em Hale e Keyser (1993, p. 69).

(57) e = e1 ! e2: e consiste em dois subeventos, e1, e2 tal que e1 implica causalmente e2 Com base nessa regra, o exemplo (56) é representado como em (58) (Ramchand, 2008a, p. 43). Esse evento codifica, portanto, três subeventos.

(58) ‘desarmar-a-bomba’(e) onde e = e1 ! (e2 ! e3): [iniciação(e1) & processo(e2) &

resultado(e3)]

Nesse sistema, há dois tipos de predicados de evento, introduzidos em (59) (Ramchand, 2008a, p. 44).

(59) a. Estado(e): em que e é um estado

b. Processo(e): em que e é uma eventualidade que contém mudança interna

Apenas o núcleo proc é uma eventualidade que contém mudança interna. Tanto o núcleo init quanto o núcleo res são considerados estados. Disso decorrem dois aspectos importantes desse sistema. O primeiro é que a interpretação causal ou resultativa é reflexo da organização hierárquica dos núcleos. Essa ideia é captada da seguinte forma (Ramchand, 2008a, p. 44).

(60) Se 9 e1, e2[Estado(e1) & Processo(e2) & e1 ! e2], então, por definição, Iniciação(e1)

(61) Se 9 e1, e2[Estado(e1) & Processo(e2) & e2! e1], então, por definição, Resultado(e1)

De acordo com (64), se um estado (e1) leva a um processo (e2), então esse estado é

interpretado como a iniciação do processo. De acordo com (65), se um processo (e2) leva a

Ramchand (2011, p. 7), “[u]ma única relação mínima e natural entre subeventos (‘levar a’) dará conta da complexidade interna do evento (as interpretações de ‘causa’ e ‘telos’) e também da natureza específica da participação dos DPs nos eventos complexos assim formados”.72

O segundo aspecto importante diz respeito à representação da complexidade interna do evento. Como exposto anteriormente, o núcleo proc é uma eventualidade que contém mudança interna. Segundo a autora, esse núcleo é o cerne do predicado dinâmico. Logo, verbos estativos, por definição, não projetam proc. A ausência de proc, por sua vez, garante a ausência do núcleo res, já que este é complemento daquele (rever (55)). Disso decorre naturalmente que verbos estativos possuem estrutura menos complexa do que verbos não estativos, do ponto de vista do número de subeventos que possuem. Em (62a), segue a estrutura proposta por Ramchand (2008a, p. 56) para esse tipo de verbo, com base na qual provemos o exemplo em (62b).

(62) a. Eventualidade estativa b. Mimi adora atum

initP DP HOLDER init DP/NP RHEME initP Mimi init adora atum

Na ausência de proc, oINICIADORnão é interpretado como causa, mas como o portador

do estado (state holder). O núcleo init introduz um complemento remático, que, segundo Ramchand (2008), serve como parte da descrição do predicado (i.e., o rema codescreve o estado). Portanto, a interpretação dos participantes do evento segue naturalmente de diferenças estruturais. Há, segundo Ramchand (2008a, p. 42), “uma semântica combinatorial geral que interpreta a estrutura sintática de forma regular e previsível. Assim, a semântica da estrutura do evento e das relações dos participantes do evento é lida diretamente da estrutura, e não de

72“A single natural and minimal relation between subevents (‘leads to’) will account for internal event

complexity (the interpretations of ‘cause’ and ‘telos’) and also for the specific nature of the participanthood of those DPs in the complex events so formed”. De maneira geral, a autora segue a intuição de propostas anteriores, como a de Hale e Keyser (1993), que também trabalha com a ideia de decomposição lexical na sintaxe. No entanto, a autora observa que sua proposta assume uma decomposição mais articulada do que a desses autores.

informação codificada por itens lexicais”.73 Ramchand (2011 p. 12) concebe essa proposta

como “parte da agenda minimalista, que busca isolar as propriedades irredutíveis do sistema computacional que subjaz ao nosso conhecimento sobre a língua”.74

A autora adota a intuição geral da abordagem neodavidsoniana (discutida previamente em (38)), segundo a qual verbos são predicados de evento (e), e os participantes do evento se relacionam separadamente a essa variável, por meio de relações específicas, responsáveis por situar esses participantes em relação ao evento (e.g., ‘agente’ ou ‘tema’). Ramchand (2008a, p. 42) autodenomina sua proposta pós-davidsoniana: “uso o termo ‘pós-Davidsoniano’ para descrever uma visão neodavidsoniana sintática, por meio da qual núcleos verbais na decomposição do evento são descrições de eventualidades com uma única posição aberta para um sujeito predicacional”.75

Um dos aspectos em que sua proposta se distingue da posição neodavidsoniana diz respeito ao que denominamos integridade do evento. Em (38), vimos que um argumento de evento (e) está associado a um item lexical, o verbo chutar. No sistema de Ramchand (2008a), esse evento é um macroevento que pode ter complexidade interna (i.e., subeventos), como representado em (57), em que e = e1 ! e2. Com isso, a noção de verbo (e de evento) aparece decomposta, não-íntegra. Os especificadores de cada subevento têm um papel determinado, a depender da posição hierárquica deste. Assim, os participantes do evento serão localizados com respeito a certas “porções” do evento, como mostrado a seguir (Ramchand, 2011, p. 15).76

(63) a. Sujeito (x, e) e Iniciação(e) acarreta que x é o INICIADORde e.

b. Sujeito (x, e) e Processo(e) acarreta que x é o SUBMETIDOao processo.

c. Sujeito (x, e) e Resultado(e) acarreta que x é o RESULTADO.

73“(...) there is a general combinatorial semantics that interprets this syntactic structure in a regular and

predictable way. Thus the semantics of event structure and event participants is read directly off the structure, and not directly off information encoded by lexical items.”

74“[I see the propolsals argued for in Ramchand (2008) as] part of a minimalist agenda, which seeks to isolate

the irreducible properties of the computational system that underlies our knowledge of language”.

75“I use the term ‘post-Davidsonian’ to describe a syntacticized neo-Davidsonian view whereby verbal heads

in the decomposition are eventuality descriptions with a single open position for a predicational subject.”

76“Subject (x, e) e Initiation(e) entails that x is the INITIATORof e. Subject (x, e) e Process(e) entails that x is

As denotações dos núcleos verbais propostos pela autora são apresentadas a seguir. Segundo Ramchand (2008a, p. 45), o uso da notação lambda é uma questão de “conveniência”: “[o] ponto crucial não são as denotações em termos da notação lambda, mas a ideia de que essa dimensão da semântica esqueletal pode ser construída de forma independente, meramente baseada na especificação da estrutura pura rotulada, na ausência de informação lexical enciclo- pédica”.77

(64) JresK = P x e[P(e) & res’(e) & Estado(e) & Sujeito (x,e)]

(65) JprocK = P x e9e1,e2[P(e2) & proc’(e1) & Processo(e1) & e = (e1 ! e2) & Sujeito

(x,e1)]

(66) JinitK = P x e9e1,e2[P(e2) & init’(e1) & Estado(e1) & e = (e1! e2) & Sujeito (x,e1)]

Cada um desses núcleos diz respeito a um subevento. A posição aberta a que a autora se refere é ocupada pelo sujeito de cada eventualidade. Como ilustrado em (63), o sujeito (introduzido pela variável x) dos núcleos res, proc e init é interpretado como RESULTADO, SUBMETIDO e INICIADOR, respectivamente. A notação init’, proc’ e res’ diz respeito ao

conteúdo lexical-enciclopédico que é “descarregado” pelos respectivos núcleos, dependendo do item lexical em questão que projeta (ver Ramchand, 2008a, p. 45). Nesse sentido, o conteúdo enciclopédico não afeta a combinação dos subeventos. A primeira fase é construída pela sintaxe sem interferência de informação conceitual ou enciclopédica, o que não quer dizer que essa informação esteja ausente. Ela está presente, mas é associada à estrutura sintática de maneira específica, por meio desses núcleos. Segundo Ramchand (2011, p. 35), “[o] léxico, nesse modelo, não é um módulo próprio, mas consiste em feixes de associações trans-modulares entre categoria sintática (que os liga ao sistema computacional central), informação conceitual (que os liga ao processamento cognitivo geral da informação) e informação fonológica (sobre a qual não tenho nada a dizer)”.78

77“The important point here is not the denotations in terms of lambda notation, but the idea that this dimension

of skeletal semantics can be built up independently merely from the specification of the interpretation of pure labelled structure, in the absence of lexical encyclopedic information”.

78“The Lexicon under this model is not a module in its own right, but consists of bundles of cross-modular

As denotações apresentadas anteriormente contemplam apenas os especificadores, ou seja, a relação que a autora denomina predicação (como discutido logo a seguir). No entanto, os núcleos init, proc e res também introduzem os chamados complementos remáticos (CAMINHOS

ouREMAS). Nesse caso, as denotações devem contemplá-los, como mostrado a seguir em (67)

(Ramchand, 2008a, p. 51). A variável y introduz um complemento do tipo caminho, que codescreve um processo.

(67) JprocK = y x e[Caminho(y,e) & proc’(e) & Processo(e) & Sujeito (x,e)]

Hipotetizamos denotações similares para os núcleo res e init, nas quais a variável y introduz um complemento do tipo rema. Em (68), y codescreve um estado final do argumento resultado. Em (69), y é parte da descrição do estado em que se encontra o sujeito experienciador (cf. (62)).

(68) JresK = y x e[Rema(y,e) & res’(e) & Estado(e) & Sujeito (x,e)] (69) JinitK = y x e[Rema(y,e) & init’(e) & Estado(e) & Sujeito (x,e)]

Com base nesses princípios combinatórios, a autora é capaz de explicitar diferentes configurações sintáticas. Ramchand (2011, p. 17) representa a seguir o que denominou “cola” semântica recursiva (“Recursive Semantic Glue”).79

(70) a. ‘Leva a/ Causa” (!) relação entre os subeventos

b. ‘Predicação’ Merge do DP especificador

c. Identificação do evento (conjunção) Merge do complemento XP No que se segue, para ilustrar como esses princípios funcionam, apresentamos a amostra da derivação da primeira fase do verbo push do inglês (‘empurrar’), que codifica [init, proc], proposta por Ramchand (2008a, p. 61), tomando por base a sentença a seguir.80

information (which links them to the general cognitive processing of information), and phonological information (of which I have nothing to say about here)”.

79“[(21) Ramchand’s 2008 (Recursive) Semantic Glue (i) “Leads to/Cause” (!) Subevental embedding (ii)

‘Predication’ Merge of DP specifier) (iii) Event identification (conjunction) Merge of XP complement”.

(71) MariaDP2 empurrou o carrinhoDP1 initP DP2 (b) init empurrar procP DP1 (a) proc <empurrar> XP

O primeiro passo da derivação corresponde a (a) — tomando-se como referência a denotação em (67).81 Segundo, Ramchand (2008a, p. 61), uma vez que não há nenhum argumento do tipo

CAMINHO(PATH) especificado, o complemento do núcleo de processo, proc, é preenchido por

uma variável contextual, que a autora denomina Yc (a seguir, os destaques em negrito buscam

tornar as etapas mais fáceis de visualizar).

(72) JprocK = y x e[Caminho(y,e) & empurrar(e) & Processo(e) & Sujeito(x,e).(Yc) =

x e[Caminho(Yc,e) & empurrar(e) & Processo(e) & Sujeito (x,e)]

A etapa seguinte consiste no Merge do argumento DP com (a) (i.e., proc), formando procP. (73) JprocPK = x e[Caminho(Yc,e) & empurrar(e) & Processo(e) & Sujeito (x,e)].(JDP1K)

= e[Caminho(Yc,e) & empurrar(e) & Processo(e) & Sujeito (DP1,e)]

Com o subevento de processo formado, passamos para a etapa (b). Segundo Ramchand (2008a, p. 61), o item empurrar sofre Remerge, identificando o conteúdo do subevento de iniciação, com base em (70). Nessa etapa, o núcleo verbal init é interpretado como um evento iniciador ou causador do processo.

(74) JinitK(JprocPK) = P x e9e1,e2[P(e2) & empurrar’(e1) & Estado(e1) & e = e1! e2 &

Sujeito (x,e1)]( e[Caminho(Yc,e) & empurrar(e) & Processo(e) & Sujeito (DP1,e)])

= x e9e1,e2[Caminho(Yc,e2) & empurrar(e2) & Processo(e2) & Sujeito (DP1,e2)] &

empurrar(e1) & Estado(e1) & e = e1! e2& Sujeito (x, e1)]

Por último, para formar initP, um segundo DP sofre o Merge na posição de especificador do núcleo init (Ramchand, 2008a, p. 62).

(75) JinitPK = x e9e1,e2[Caminho(Yc,e2) & empurrar(e2) & Processo(e2) & Suj(DP1,e2)]

& empurrar(e1) & Estado(e1) & e = e1! e2& Suj(x, e1)](JDP2)K = e9e1,e2[Caminho

(Yc,e2) & empurrar(e2) & Processo(e2) & Suj(DP1,e2)] & empurrar(e1) & Estado(e1)

& e = e1 ! e2 & Suj(DP2, e1)]

Com a formação de initP, conforme a autora, tem-se um predicado de eventos com complexidade interna. Quanto ao fechamento existencial da variável de evento, este possivelmente ocorre em projeções mais altas. Segundo Ramchand (2008a, p. 200), a variável de evento é ligada por um núcleo aspectual: “[a] propriedade geral do núcleo Asp é ligar a variável de evento, e criar um predicado de tempos relacionado àquele evento”.82 Posteriormente, essa variável de tempo é

ligada por um núcleo T, que relaciona o evento ao tempo de fala de determinada maneira.83