• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 Os adjetivos modais

2.3 As bases de afixação

Historicamente, o estudo dos adjetivos modais também envolve a tentativa de captar a (suposta) preferência selecional do sufixo por verbos; explicar se e como o adjetivo está relacionado à sua contraparte verbal; e determinar quais propriedades verbais são herdadas pelo adjetivo. Embora a maioria dos adjetivos modais seja de fato deverbal, o estudo dessas formações também abrange casos em que a base que serve de afixação é uma raiz, como pPOTARE, ou

um nome, como presidente.30 Chapin (1967, p. 181), por exemplo, registra algumas formações

desse tipo no inglês que teriam bases nominais, como knowledgeable (de ‘conhecimento’), fashionable (de ‘moda’), companionable (de ‘companhia’), impressionable (de ‘impressão’), fissionable (de ‘fissão’), actionable (de ‘ação’) e objectionable (de ‘objeção’). Essas questões, que envolvem determinar as possíveis bases de afixação e condições de seleção, não são triviais e, em geral, são discutidas em um contexto teórico mais abrangente.

Adjetivos modais, particípios e nominalizações são debatidos no âmbito da teoria gerativa desde pelo menos os anos 1970. O interesse por formações desse tipo se deve ao fato de que estas provêem evidências para a natureza das categorias lexicais e da divisão do trabalho da gramática na formação de palavras. Essa questão maior, subjacente a investigações específicas de fenômenos no nível da palavra, é o cerne do debate entre (e intra) teorias lexicalistas e não-lexicalistas para a formação de palavras. Nesse contexto, esta tese pretende prover uma análise que explique, afinal, como a gramática deriva os adjetivos modais. No âmbito da teoria gerativa, há diversos caminhos para responder a essa questão. A seguir, discutimos alguns.

Em um modelo lexicalista denominado morfologia baseada na palavra, Aronoff (1976) propõe a Hipótese da Base Única (Unitary Base Hypothesis) para tratar fenômenos da alçada da morfologia derivacional.31 Segundo essa hipótese, um sufixo “elege” exclusivamente uma base

30Em referência ao fato de não haver um verbo correspondente na língua, *potar ou *presidenciar. No primeiro

caso, o adjetivo potável (datação de 1562-1575) (Houaiss, 2009), é originado no Latim, potabilis, do verbo potare, ‘beber’. No segundo caso, o adjetivo presidenciável, bem como outros como prefeitável, reitorável, são possivelmente formados das respectivas bases nominais, em uma estrutura como ‘eleger/nomear presidente, prefeito, reitor’ (ver Basilio, 2002; Salles e Mello, 2005; Oltra-Massuet, 2014).

31Esse modelo, word-based morphology, concebe a formação de palavras a partir da aplicação de regras

de determinada categoria lexical. Para o autor, o sufixo -able do inglês realiza seleção categorial de verbos. Os contraexemplos nessa língua, em que a base do adjetivo é um nome, são tidos como evidência de um caso de homofonia. O inglês teria, então, dois sufixos homófonos com exigências selecionais categorialmente distintas, -ableV e -ableN. Segundo Aronoff (1976, p.

48), prova de que essa análise está correta é o fato de que os sufixos em questão apresentam “semântica muito distinta”: -ableV corresponde à leitura “capaz de ser + verbo no particípio”,

e -ableN, à leitura “caracterizado por X”, em que X é uma base nominal.

Wasow (1977, p. 335), também de uma perspectiva lexicalista, propõe que adjetivos em -able são formados com base em uma regra lexical passiva, que realiza a mudança categorial, de verbo para adjetivo, e externaliza o objeto direto do verbo.32 O autor argumenta, com base em

diversos exemplos, que esses adjetivos não são uniformemente associados à passiva sintática (transformação passiva), o que força o autor a propor uma análise em termos de derivação lexical.

Quanto à questão selecional discutida por Aronoff (1976), Basilio (2002, p. 57) aborda o que chamou de “fenômeno de extensão de base” no português para os adjetivos em -vel. O fenômeno em questão é o de casos como presidenciável, prefeitável, reitorável, entre outros, em que a base do adjetivo seria um nome, não um verbo. A autora observa que, apesar de a base não ser verbal, a regra de formação de adjetivos desse tipo tem função idêntica à regra que forma adjetivos deverbais, caracterizando “algo ou alguém como paciente potencial”. Basilio (2002, p. 58) observa que não são quaisquer nomes que formam adjetivos desse tipo, “mas apenas aqueles correspondentes a cargos ou funções”. Segundo a autora, “[e]ste particular nos indica que a disponibilidade para formações em -vel vem de um fator semântico, em oposição a fatores morfológicos ou sintáticos”.

A respeito dos mesmos dados, Salles e Mello (2005) propõem “a reformulação de critérios semânticos em termos sintáticos”. Para as autoras, adjetivos como presidenciável derivam de uma estrutura causativa, exemplificada a seguir.

32Concretamente, o autor postula a seguinte regra: “-able

VA (II) = I”, em que V representa verbo; A, adjetivo;

(15) a. TORNARpedra ! petrificar ! petrificável

b. TORNARpresidente ! *presidenciar ! presidenciável

A forma *presidenciar é tida pelas autoras como morfologicamente inerte. Não obstante, o adjetivo em (15b) é possível, já que o input do sufixo não é necessariamente um verbo, mas a estrutura mais abstrata e complexa, ‘TORNAR presidente’.33 Esse tipo de análise está em

consonância com proposta de Lobato (2010, p. 54), segundo a qual, para formar um adjetivo em -vel, não é necessária “certa base verbal com argumento externo e interno, mas sim a interpretação da relação semântica em questão”. Assim, há a possibilidade de que a base do adjetivo seja nominal, desde que esta seja capaz de estabelecer com o sufixo relação análoga àquela estabelecida pela base verbal.34

De uma perspectiva não lexicalista, Oltra-Massuet (2010, 2014) propõe que há um único sufixo, -ble, que impõe dois requisitos à sua base: a presença de um argumento interno e a implicação de um originador — concebido de maneira ampla como agente ou causa.35 As

diferenças semânticas (e, como mostramos a seguir, sintáticas) seriam resultado da combinação do sufixo a diferentes estruturas que satisfazem os seus requisitos. Essas estruturas podem tanto ser verbos quanto raízes ou nomes (e.g., ministrable ‘ministeriável’; papable ‘papável’; presidenciable ‘presidenciável’). Crucialmente, os requisitos do sufixo não são categoriais, como, por exemplo, proposto por Aronoff (1976). Dessa forma, em princípio, certos nomes também seriam compatíveis com -ble.

Para concluir, retomamos uma das questões norteadoras propostas no Capítulo 1, no âmbito da discussão da formação de palavras, que diz respeito a quando o sufixo -vel se combina a raízes não verbais. Como discutido nesta seção, esse sufixo apresenta preferência por

33Salles (c.p.) ressalta que, nesses casos, o nome tem capacidade predicativa. Esse aspecto o distingue dos

demais nomes: reitor, presidente, prefeito são nomes que funcionam como epítetos (i.e., adjuntos atributivos).

34Lobato não explicita qual é essa relação semântica, mas assumo que seja semelhante à relação destacada por

Basilio (2002), de “paciente potencial”. O que importa, para efeitos da discussão proposta, é que Lobato não condiciona essa relação a determinada categoria lexical, o que abre a possibilidade de que adjetivos em -vel sejam formados com base em palavras de outras categorias.

35O componente causativo da proposta de Salles e Mello (2005) pode ser comparado ao originador da proposta

verbos, mas pode se combinar também a certas raízes não verbais. Nesta tese, não exploramos a ideia de sufixos homófonos, cada um com sua exigência selecional, como, propõe, por exemplo, Aronoff (1976). Trabalhamos na perspectiva de análises como a de Salles e Mello (2005), Lobato (2010) e Oltra-Massuet (2010, 2014). Nessa direção, partimos da hipótese de que há um único sufixo -vel que seleciona uma projeção verbal de Iniciação. Assim, o sufixo pode se combinar a raízes que se conformariam a estruturas verbais do tipo [init, proc, res], [init, proc], ou [init]. Como previamente estabelecido por Chapin (1967, p. 179): “[u]m NOME VERBalizável é um NOME que pode ser VERBalizado”.36 Essa questão se torna mais clara na

seção 2.7, na qual registramos algumas formações recentes em -vel no português que não são derivadas de bases verbais, mas do que se pode chamar de verbos potenciais nessa língua.