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2.3 O gênero como categoria de análise

2.3.1 A intersecção entre gênero e trabalho sexual

Uma contribuição central para esta investigação (levando-se em consideração a construção social das assimetrias de gênero), de acordo com o que foi discutido anteriormente, deve-se também ao estudo de Juliano (2005), particularmente o seu texto El trabajo sexual en la mira: polémicas y estereotipos. Nele, Juliano defende a legalização da prostituição como uma política que permitiria às mulheres que se prostituem o empoderamento necessário para enfrentar as dificuldades do trabalho sexual. Tal estudo é a evidência de que a falta de regulamentação da prostituição incide significativamente no aumento da vulnerabilidade e do estigma que é imputado sobre as trabalhadoras sexuais, especialmente daquelas que se dedicam à prostituição de rua.

Para Juliano (2005), compreende-se melhor o trabalho sexual quando ele é contextualizado e situado como o ponto máximo da estigmatização social. Os argumentos teóricos dessa feminista argentina radicada na Espanha há três décadas, são marcados pelos estudos de gênero quando ela busca discutir essa atividade e as implicações de seu estigma sobre a trabalhadora. Ao discutir sobre o peso social do estigma sobre o trabalho sexual observa, Juliano sublinha que:

A correlação inversa entre realização profissional e prestígio social que se dá em todas as tarefas tradicionais femininas, alcança a sua maior expressão no caso do trabalho sexual, onde as vantagens de ganhos médios ligeiramente superiores aos salários médios se anulam socialmente com o enorme incremento da estigmatização, que inclui a violência simbólica de negar as suas atividades as condições e dignidades de trabalho. Assim se situa uma opção de trabalho que não é delito, no mesmo campo de estigmatização que a sociedade reserva a delinquentes e às pessoas afetadas por drogadição (JULIANO, 2005, p. 82-83). (Tradução nossa)

O argumento da antropóloga também é o de que as vantagens econômicas percebidas pelas prostitutas em relação às demais modalidades de trabalho relegadas às mulheres das camadas baixas da sociedade como, por

111 exemplo, o trabalho doméstico e os setores de cuidados de crianças e idosos se anulam socialmente devido à estigmatização. A análise da autora aponta que a sociedade patriarcal reserva às mulheres diferentes papéis familiares e profissionais cuja valorização social vai da aceitação à recusa. Por isso, há um custo social infringido às mulheres que desempenham papéis sociais e profissionais socialmente pouco aceitáveis.

De acordo com isso, os papéis sociais prescritos às mulheres como, por exemplo, o casamento e a maternidade conflitam com o trabalho sexual assumido por algumas mulheres como alternativa de renda. Por este aspecto, a sua abordagem parece bem sugestiva por conceder peso equivalente à prostituição feminina como atividade onde se percebem as assimetrias de gênero. Assim, sublinhando justamente a dimensão normativa da construção social de assimetrias, Juliano afirma: “La fuerte discriminación social referente a la prostitución se apoya en las especificaciones de género imperantes en nuestra sociedad. Se han construido modelos de cómo deben ser lós hombres y cómo deben ser las mujeres, y esto determina lás expectativas, los premios y las sanciones” (JULIANO, 2005, p. 84).

Nesse mesmo sentido, Juliano (2003) evidencia que a desvalorização do trabalho sexual se mantém pela sua função pedagógica em relação às mulheres não prostitutas. O principal mecanismo de dissuasão dessa atividade é a violência simbólica, conforme sublinha a autora, que reflete em diversas formas de discriminação e rejeição social. No entendimento dela, esses mecanismos podem resultar também em violência física como, por exemplo, situações de maus tratos, cárcere privado e assassinatos. As diferentes formas de violências reservadas às mulheres que se afastam dos papéis sociais são o reflexo da estigmatização sobre a prostituição, pois, do ponto de vista das feministas de orientação marxista (especialmente as abolicionistas), “estabelecer barreiras entre umas mulheres e outras tem sido uma estratégia habitual do patriarcado” (JULIANO, 2005, p. 84).

À vista disso, retomando a questão dos papéis familiares e profissionais constata-se que os papéis de gênero têm garantido aos homens a apropriação não remunerada do tempo livre das mulheres dedicados aos serviços domésticos, ao trabalho reprodutivo e aos cuidados com a prole. Do mesmo modo, os homens têm acesso aos serviços sexuais das mulheres de forma ilimitada e gratuita, os

112 quais lhes são garantidos através de contratos matrimoniais ou de relacionamentos afetivos (PATEMAN, 1993). Assim, as prostitutas por utilizarem a sexualidade fora dos parâmetros estabelecidos pelos papéis de gênero, cobrando pelos serviços de natureza sexual, são tomadas como um contramodelo para as mulheres não prostitutas.

Nesta linha de compreensão, a desvalorização da prostituição também é resultado de ações orquestradas pelo aparelho estatal através da articulação com os setores conservadores da sociedade civil e da Igreja. Primeiro pela ausência (e negação) de políticas que regulamentem as atividades e os setores de serviços vinculados ao trabalho sexual; segundo, através da criminalização expressa em legislações proibicionistas e abolicionistas, que impactam tanto nas prestadoras de serviços sexuais como nos agentes vinculados a elas. Nesses termos, ambas as situações alocam as trabalhadoras sexuais em posições antagônicas: ora são representadas como vítimas destituídas de vontades próprias, ora como criminosas que subvertem a ordem moral e institucional (família, Estado, Igreja).

A leitura de Juliano alude à importância de considerar a dimensão “normativa” de gênero que impacta sobre as trabalhadoras sexuais e tem implicações no déficit de proteção legal e institucional da atividade. Isto implica, por exemplo, na perda legal de direitos econômicos em termos de direitos e deveres previdenciários, bem como na falta de reconhecimento de suas atividades como trabalho regulamentado implicando na autopercepção negativa que a profissional do sexo tem da prostituição.

Por um lado, se não há reconhecimento social e, consequentemente, lhes é negada a regulamentação das atividades, perde-se a autonomia e a capacidade de organização política. Por outro, somente uma cobertura legal do trabalho sexual possibilitará o empoderamento das trabalhadoras e, por conseguinte, um avanço qualitativo nas condições de autopercepção das situações de exploração econômica de seu trabalho. Esta forma de pensar as implicações da falta de regulamentação da prostituição contribui para mostrar como as dimensões de gênero de Scott (1995) intersectam com o trabalho sexual possibilitando, desse modo, a compreensão dos modos como as trabalhadoras sexuais agenciam as suas práticas transpondo os limites da sexualidade para além dos papéis de gênero sublinhado, justamente, as dimensões subjetiva, institucional e normativa.

113 Também contribuiu para este estudo, a noção de “arquetípico viril” apontada por Juliano (2005) como uma estratégia relacionada à construção social das desigualdades de gênero. Tal estratégia funciona como um instrumento que molda os papéis sociais de gênero, garantindo aos homens certos privilégios em detrimento de um conjunto de obrigações prescritas às mulheres. A principal função desse dispositivo é descriminar a prostituta e os seus serviços, buscando garantir aos homens em relações convencionais o amor e os serviços sexuais gratuitos de suas companheiras.

Quando se deparam com as prostitutas que não dão amor e somente prestam seus serviços por um valor combinado, encontrar essa relação negociada mortifica seu ego, por isso buscam restabelecer simbolicamente o equilíbrio, depreciando e desvalorizando as suas interlocutoras na relação pactuada (JULIANO, 2005, p. 86). (Tradução nossa)

Numa relação monetarizada, a apropriação dos serviços sexuais por um tempo determinado ocorre através de um contrato, que quebra o monopólio masculino sobre a sexualidade de uma mulher. Tal relação situa o homem em uma posição desigual em relação à mulher com a qual ele estabelece um contrato sexual, a partir do qual são estabelecidas a modalidade, o tempo e o valor dos serviços que serão prestados.

Como se demonstrou, isso posto, a negociação dos serviços sexuais subverte a lógica da obrigação sexual da mulher, da apropriação e do acesso incondicional ao seu corpo feminino. Nesse intercâmbio, como não há espaço para conquistas, seduções e demonstrações de virilidade, o arquétipo viril é acionado pelos homens ao desqualificarem a parceira contratada e os serviços sexuais prestados. Desse modo, o gênero enquanto uma variável oferece uma importante contribuição para a análise das relações de poder que permeiam as interações sociais e prestações de serviços de natureza sexual estabelecidas entre as prostitutas, seus clientes e proprietários dos bares de prostituição.

Para investigar sobre articulação do trabalho sexual com as relações de gênero e sexualidade nas práticas das trabalhadoras sexuais, foi considerado o esquema sinóptico (Figura 2).

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Esquema sinóptico da intersecção entre as quatro dimensões das relações de gênero e o trabalho sexual

Figura 2: Esquema sinóptico da interseção entre gênero e prostituição feminina Fonte: Elaboração do autor, 2016.

Tal quadro foi elaborado a partir das quatro dimensões de gênero: simbólica (representações), normativa (leis, estatutos e normas), institucional (lócus das desigualdades) e a subjetiva (papéis de gênero) – conforme a idealização de Scott (1995).

As questões discutidas nesta subseção e ao longo da segunda seção enfatizam a categoria gênero com as suas dimensões normativas, enquanto um conceito de análise imprescindível para compreender as desigualdades que são produzidas no âmbito da prostituição feminina.

NORMATIVA (Leis e normas)

INSTITUCIONAL (Família, Estado, Igreja, etc.)

SIMBÓLICA (Representações do

feminino)

SUBJETIVA (Papéis sociais)

Criminalização ou vitimização; não regulamentação; negação de direitos sexuais e reprodutivos; reprodução dos papéis de gênero; fundamentalismo religioso e estatal;

115 Na próxima seção, prossegue-se a discussão trazendo a noção de sexualidade como um dispositivo histórico de poder para, posteriormente, destacar os efeitos da intersecção entre gênero e sexualidade sobre a identidade subjetiva da trabalhadora sexual.