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2.4 A sexualidade na perspectiva do feminismo

2.4.1 A sexualidade como um dispositivo histórico de poder

Foucault demonstra como as concepções e experiências acerca da sexualidade dos indivíduos são o resultado de convenções culturais e mecanismos de poder, localizados historicamente, dos quais depende para existir. Ele reconhece, de fato, que a repressão fora uma evidência histórica, porém ela não consistia numa instrumento de análise do poder. Não haveria nenhuma sexualidade natural ou autêntica a recuperar, como nos alerta Oksala (1996) em sua leitura de Foucault, pois libertar a sexualidade de um conjunto de normas significava adotar outras que poderiam revelar-se, igualmente, imperativas e normalizadoras do sexo.

Nestes termos, a sexualidade, é definida por ele como um dispositivo histórico que produz um conjunto de efeitos sobre os corpos e comportamentos resultantes de uma rede de relações políticas complexas. Nestes termos (e em síntese):

A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não a realidade subterrânea que se aprende com dificuldade, mas a grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação do conhecimento, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, 2014, p. 115).

Desta feita, circunscrevendo às suas análises aos séculos XVII, XVIII e ao início do XIX, Foucault procura centrar-se na gênese e, sobretudo, na proliferação de discursos de saber/poder que convidavam a enunciar a sexualidade por meio de intuições como, por exemplo, a Igreja (confessionário), a escola (manuais

124 sexuais), o consultório médico (sexualidade saudável), a família conjugal e de saberes como a demografia, a medicina (psiquiatria, psicologia), a pedagogia, dentre outros saberes.

De acordo com a leitura foucaultiana, não é somente a “sexualidade normal” (heterossexual, monogâmica, sadia) que foi produzida, mas a figura do desviante sexual é produzida seja ela a representação do homossexual, da histérica, do masturbador, da ninfomaníaca, do pervertido. Desta feita, “o prazer erótico [o sexo] se transforma em ‘sexualidade’ à medida que a sua investigação produz textos, manuais e estudos que distinguem a ‘sexualidade normal’ de seus domínios patológicos” (GIDDENS, 1993, p. 30).

É relevante ressaltar aqui que Foucault localiza a gênese da sexualidade como um dispositivo poder no “dispositivo de aliança” que foi perdendo importância a partir do século XVIII. O dispositivo de aliança tinha a função de manter a lei com seu conjunto de regras (definindo o permitido e o proibido), cumprindo a função de estrutura reprodutora das tramas das relações dentro do corpo social.

Em termos de função estruturadora das relações sociais, esse dispositivo valorizava o matrimônio, as relações de parentesco e a transmissão de nomes e bens estruturando-se, sobremaneira, em torno de um sistema de regras que define o permitido e o proibido. Em face disso, ele mantinha uma relação estreita com a economia devido ao papel que podia desempenhar na circulação e transmissão de riquezas, enquanto o dispositivo de sexualidade passa a controlar o corpo que produz e consome (FOUCAULT, 2014).

Mas à medida que as estruturas políticas e os processos econômicos deixam de vislumbrá-lo como um instrumento eficiente de controle esse vai perdendo importância. Desse modo, como o dispositivo de sexualidade se desenvolve na célula familiar a partir do dispositivo de aliança a partir do século XVIII, “a família é o permutador da sexualidade com a aliança: transporta a lei e a dimensão do jurídico para o dispositivo de sexualidade; e a economia do prazer e a intensidade das sensações para o regime da aliança” (FOUCAULT, 2014, p. 118).

Daí, diferentemente do dispositivo de sexualidade, o que é pertinente para o dispositivo de aliança é o vínculo entre parceiros com status definido; uma vez

125 que para o primeiro, são as sensações corpóreas, “as qualidades dos prazeres, a natureza das impressões, por tênues e imperceptíveis que sejam” (FOUCAULT, 2014, p. 116). De forma comparativa, Foucault define ambos os termos:

Numa palavra, o dispositivo da aliança está ordenado para a homeostase do corpo social, a qual é sua função manter; daí o vinculo privilegiado com o direito; daí, também, o fato de o momento decisivo para ele, ser a “reprodução”. O dispositivo de sexualidade tem, como razão de ser, não o de reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global (FOUCAULT, 2014, p. 116).

Na verdade, o que Foucault pretende demonstrar é que não houve uma ruptura substituição do dispositivo de aliança com a instalação do dispositivo de sexualidade a partir do século XVIII. Naquele momento, a família burguesa é o foco mais ativo da sexualidade onde os cônjuges são os principais agentes do dispositivo da sexualidade, dentro dessa estrutura “que no exterior se apoia nos médicos e pedagogos, mais tarde nos psiquiatras, e que, no interior, vem duplicar e logo ‘psicologizar’ as relações de aliança” (FOUCAULT, 2014, p. 120).

A leitura de Foucault de uma sequência de eventos históricos indica a fixação do dispositivo de aliança e do dispositivo de sexualidade no interior da família em geral. A análise dos eventos que deram causa, a tal dispositivo histórico44, permitiu o autor compreender: “que a família se tenha tornado, a partir do século XVIII, lugar obrigatório de afetos, de sentimentos, de amor; que a sexualidade tenha, como ponto privilegiado de eclosão, a família” (FOUCAULT, 2014, p. 118). Em torno desta análise, a de pensar no termo “dispositivo” aplicado à instância da sexualidade e, como sempre, ligado ao poder, seguindo uma perspectiva teórica de orientação feminista pós-estruturalista contemporânea, obtém-se segundo orienta Foucault, a produção de um objeto: o sexo.

De outro lado, o discurso que permeia a sexualidade (seja ele médico, pedagógico ou catequético) se deu inicialmente no âmbito do corpo, nos órgãos sexuais. Mas o discurso sobre o sexo aparece, de fato, como foco de interesse

44 Nesse sentido, o autor localiza a formação do dispositivo de sexualidade a partir de quatro grandes estratégias que tiveram início no século XVII que se desdobraram no século XIX: “sexualização da criança, histerização da mulher, especificação dos perversos, regulação das populações; estratégias todas que passaram por uma família que precisava ser encarada não como poder de interdição e sim como fator capital de sexualização” (FOUCAULT, 2014, p. 124).

126 somente após o século XVIII, onde segundo o autor, “a noção de “sexo” permitiu agrupar, de acordo com uma unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como princípio causal.” (FOUCAULT, 2014, p.168).

Vale lembrar que ao propor uma história da sexualidade, demonstrando a historicidade desse dispositivo, Foucault desconstrói a noção de sexo natural passando a inscrevê-lo no plano jurídico e político, levando a cabo a ideia de desnaturalização da sexualidade, lançado pistas para a compreensão do modo pelo qual convenções sociais permeiam os saberes e práticas sobre a sexualidade (PISCITELLI; GREGORI; CARRARA, 2003).

Nas relações de poder a sexualidade é um dos elementos dotados de enorme instrumentalidade utilizável em incontáveis manobras servindo às mais variadas táticas e negociações; ela funciona conforme técnicas móveis, poliformas e conjunturais de poder. Por exemplo, o uso instrumental do sexo, por motivação econômica; a sedução e a sexualidade e, sobretudo, a sensualidade, como ferramenta de persuasão. Desse modo, a sexualidade, então, segundo a abordagem foucaultiana, não seria um ímpeto natural e indócil a ser dominado pelo poder conforme indicava a “hipótese repressiva” ela é, antes disso, um dispositivo histórico, um conjunto de efeitos sobre corpos e comportamentos que são produzidos por uma rede de relações políticas complexas.

Nesse sentido, esse pensador pontua que esse dispositivo histórico de poder – importante para pensarmos seus efeitos sobre o corpo, o controle dos impulsos sexuais e, também, como um ponto de produção e difusão de poder – foi elaborado para e pela burguesia privilegiada, que buscava se autoafirmar através de discursos de verdade sobre seu sexo e dos cuidados com o corpo; difundindo-se, depois, pelo resto do corpo social, para controle de natalidade e moralização das classes populares, a partir de instrumentos diferentes, por exemplo, de uma política sexual expressa em manuais médicos, orientações pedagógicas, entre outras estratégias de poder (FOUCAULT, 2014).

Vê-se que o conceito sexualidade trazido por Foucault – adotado e discutido posteriormente por outros autores, especialmente as feministas pós- estruturalistas –, pode ser compreendido como um emaranhado de linhas que atravessa o indivíduo e a sociedade. A leitura desse emaranhado indica que a

127 vivência sexual adquire um significado único para cada indivíduo. Isto tem a ver, por um lado, como cada um se relaciona com o próprio corpo, desejos, experiências, fantasias, medos e necessidades. Por outro, é uma experiência histórica especialmente para as mulheres que têm em comum a vivência da sexualidade numa sociedade androcêntrica. Assim, a construção histórica de um modelo sexual feminino dominante androcêntrico considerado normal – cuja idealização se baseia no controle e na repressão (FARIA, 1998) – não consegue abarcar as experiências de todas as mulheres.

Há um conjunto de imposições sociais sobre a sexualidade feminina cujo objetivo principal é o de controlar o corpo da mulher. A regulação social da sexualidade feminina aparece na ideia de que o prazer é exclusivamente masculino (FARIA e NOBRE, 1998). Neste caso, os prazeres incomuns como, por exemplo, as práticas sexuais não convencionais devem ser suprimidas sob o risco de a mulher ser classificada como prostituta, já que às práticas “sexuais anormais” (sexo oral, sexo anal, inversão de posições, práticas ativas, etc.) não correspondem aos papéis reservados às esposas.

A leitura realizada aqui também confirma que a intersecção entre gênero e sexualidade produz categorizações que situam uma sexualidade normal e saudável em oposição a uma anormal e patológica. Torna-se relevante aqui abordagem foucaultiana porque consequentemente, estas categorizações levam a representações sociais precipitadas do trabalho sexual como algo inerentemente negativo. Em termos do trabalho sexual há uma vigilância constante sobre a sexualidade porque o fenômeno tem implicações no controle reprodutivo e na moralidade sexual mantida e, contraditoriamente, respaldada pela cientificidade.

Isto confirma que não se pode compreender a sexualidade dissociada da dimensão das relações de gênero que impõem maneiras hierarquizadas da vivência da sexualidade de homens e mulheres. Tal intersecção é altamente pertinente para a análise do trabalho sexual inserido na sua relação com as dimensões de gênero de Scott (1985), especificamente a dimensão dos símbolos culturais contraditórios, conforme foi abordado na primeira seção deste capítulo.

Os símbolos culturais materializam representações socialmente construídas das prostitutas como mulheres de vida fácil, sexualmente lascivas,

128 levianas, pecadoras, transgressoras das regras morais, destruidoras de lares, entre outras45. São representações construídas com base na conduta sexual da prostituta que é considerada inadequada em relações aos papéis sociais de gênero da “mulher direita”. Sob tais circunstâncias, a imagem estigmatizada da prostituta reforça o peso social da culpa sobre as mulheres que operacionalizam as suas práticas sexuais em termos econômicos.

Nesta direção, os efeitos da intersecção entre gênero e sexualidade sobre a identidade subjetiva da trabalhadora sexual podem ser apreendidos através das seguintes dimensões:

 da normatização das práticas sexuais legítimas como sendo aquelas vinculadas à reprodução e aos relacionamentos estáveis, por exemplo: a difusão pré-noções de que as prostitutas não querem filhos/as, quando os têm são péssimas mães ou os abandonam (sexo reprodução);

 da representação da maternidade que está implicada diretamente na feminilidade, por exemplo: a maternidade e os cuidados com as/os filhos/as são colocados como valores imprescindíveis para a realização plena da mulher (maternidade auto realização feminina);

 da institucionalização das relações afetivas que está vinculada intimamente à conjugalidade monogâmica, por exemplo: as prostitutas são representadas como mulheres que estão sempre disponíveis sexualmente, por isso quando estabelecem relacionamentos estáveis carregam o estigma de mulheres infiéis que não criam vínculos familiares (relacionamentos afetivos monogamia/infidelidade);

 da regulação social da prostituição que está relacionada à intervenções políticas que podem criminalizar/proibir ou

45O reflexo das desigualdades de gênero entre profissionais do sexo pode ser ilustrado com o exemplo da prostituição viril, onde os homens (garotos de programas e michês) são representados como símbolos de masculinidade e, ao contrário, não carregam a mesma carga de estigmas e preconceitos imputada às mulheres que se ocupam da prostituição; esta evidência é o resultado das condições de subalternidade social da mulher – em termos de gênero e liberdades sexuais – manifestada no trabalho sexual que se contrapõe ao modelo dominante de sexualidade.

129 regulamentar o trabalho sexual, por exemplo: a repressão estatal da prostituição pode fomentar tanto o surgimento de culturas de resistência de coletivos como submeter as trabalhadoras à situações de exploração econômica, ou, pode anular os aspectos que tornam a atividade interessante para muitas mulheres como, por exemplo, o anonimato, o caráter informal das práticas, a flexibilidade de dias e

horários de trabalho (estatuto legal

autonomia/criminalizar/proibir).

A família é a instituição que busca garantir que a sexualidade esteja em conformidade com os padrões de normalidade, ainda que se tenha assistido a uma verdadeira revolução sexual a partir de meados do século XX; momento em que a sexualidade passa a ser pensada como meio de emancipação da mulher. Aqui estamos considerando – a partir de Foucault – que o dispositivo de sexualidade tem a sua origem no dispositivo de aliança (com o qual se aliou originando uma nova ordem de poder na família), transferindo para essa instituição a economia do prazer e a intensidade das sensações.

À vista disso, as discussões teóricas de Foucault acerca do dispositivo de sexualidade articuladas às abordagens de gênero são uma chave importante para compreender as questões deste estudo; uma vez que o objeto empírico permite investigar um conjunto de sujeitos que compartilham, cotidianamente, em suas práticas, experiências de transgressão dos mesmos papéis sociais femininos atribuindo-lhes sentido. Desta forma, as representações da prostituta amalgamadas na intersecção entre gênero e sexualidade, produzem efeitos no modo como a trabalhadora operacionaliza suas práticas de trabalho sexual transgredindo papéis sociais de gênero. Tal questão diz respeito às mudanças contemporâneas na percepção dos sujeitos acerca da vivência da sexualidade46 e do erotismo.

46 Na leitura realizada acerca da sexualidade na modernidade, Anthony Giddens, no livro Transformação da Intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, traz contribuições que, em certa medida, complementam a abordagem foucaultiana ao ampliar a compreensão das principais transformações na ordem social moderna que, segundo ele, se manifestam no campo da intimidade. Giddens aponta para a revolução sexual assistida durante as últimas décadas, representando algo novo em termos de potencial de liberdade, onde as mulheres exerceram um papel muito importante na transformação da intimidade no campo de possibilidades de democratização da esfera pessoal. Isso quer dizer que a emergência do que ele chama

130 Nesse sentido, a abordagem acerca da sexualidade de trabalhadoras sexuais não se restringe exclusivamente ao ato sexual venal. Tomada aqui como um dispositivo histórico de poder, a sexualidade é permeada por inúmeras tradições e práticas sociais, familiares, jurídicas, científicas, morais e religiosas que se inter-relacionam às formas contra hegemônicas de sujeitos à margem dos padrões sexuais considerados normais.

A sexualidade abrange uma totalidade que alcança para além do corpo físico compreendendo relações afetivas, econômicas e culturais e, também, interesses recíprocos, realização de fantasias, percepções de mundo e liberdades individuais. Na próxima seção abordamos a noção de autonomia rediscutida pelo feminismo político e a sua articulação com as perspectivas que buscam identificar a capacidade de autonomia pessoal dos indivíduos tomando por base a capacidade do sujeito racional.