• Nenhum resultado encontrado

No processo de aproximação do campo da pesquisa, busquei estabelecer uma relação de confiabilidade, familiaridade e afetos mútuos com os sujeitos sociais da pesquisa. Do meu lado – ou da perspectiva das ciências sociais que pratico –, quero enfatizar que ao assumir essa postura entendo que a inserção do pesquisador no espaço social dos sujeitos pesquisados, deve ser iniciada a partir de uma comunicação não traumática. Consciente dessa premissa, o pesquisador busca a superação, ainda que parcial, da distância social e cultural que o separa de seus entrevistados atentando-se, em meu caso, às especificidades do objeto em estudo.

Tal postura implicou que eu adotasse uma vigilância epistemológica redobrada quando foram levadas em consideração as muitas pré-noções sobre a prostituição, parte significativa delas de natureza moral, ideológica e religiosa, bem como os perigos da “observação superficial” que estão relacionados – utilizando a terminologia adotada por Marcel Mauss (1993) – às “dificuldades subjetivas”.

Mauss (1993) chama atenção para os riscos do “preconceito moral” orientando, com isso, que se deve evitar “julgar porque se sabe, porque se viu”, ou seja, não se deve acreditar que se sabe tudo simplesmente porque se observou. Dessa forma, ele recomenda que o cientista social deva colocar em

44 dúvida os fatos observados e ouvidos evitando, com efeito, atitudes de “espanto” e “exaltação” diante do que se observou superficialmente, bem como saber escolher os testemunhos. Diante dessas considerações preliminares, esse antropólogo e etnógrafo francês, recomenda que se busque sempre clareza e sobriedade na coleta e análise dos dados o que significa primar pela – conforme as suas palavras – “objetividade tanto na exposição quanto na observação” (MAUSS, 1993, p.11).

Dentro desses limites, busquei realizar a pesquisa de campo apoiado em procedimentos metodológicos e técnicas de coleta de dados que privilegiaram este estudo de caráter qualitativo. A sua especificidade reside no fato de o campo empírico de estudo consistir nos espaços de sociabilidades frequentados por homens, os quais foram abertos paralelamente à implantação dos canteiros de obras que contavam inicialmente com mais de 30 mil operários envolvidos na construção de duas hidrelétricas na região Amazônica. A inserção no campo de pesquisa foi marcada por inúmeras dificuldades que levaram a alterações tanto no recorte empírico do objeto quanto nas metodologias utilizadas.

À medida que as obras de construção das hidrelétricas foram avançando, o campo da pesquisa modificava-se trazendo outras questões que exigiram a reestruturação do objeto em estudo. De imediato, constatou-se que a dinâmica do mercado do sexo na Amazônia brasileira caracteriza-se pela frequente circulação de trabalhadoras sexuais entre diferentes locais de atração de mão de obra masculina (grandes obras e empreendimentos, zonas garimpeiras, áreas portuárias e festas regionais). As questões macrossociológicas relacionadas à prostituição, exploração sexual e grandes empreendimentos na Amazônia brasileira já não se mostravam tão evidentes quando ocorreu a primeira entrada no campo da pesquisa em junho de 2014, levando em conta o estágio adiantado das obras de construção das UHEs.

Um dos primeiros desafios esteve relacionado à instabilidade do objeto empírico. Nesse sentido, constatou-se que as mulheres inseridas na prostituição (muitas delas de diferentes localidades geográficas) deslocavam-se com certa frequência em busca de lugares com maiores possibilidades de clientela. Entre elas, uma parcela significativa retornava periodicamente a seus locais de origem em visita aos seus familiares (muitas vezes levando quantias de dinheiro

45 acumulado durante as temporadas de trabalho). Na mesma proporção em que ocorriam os deslocamentos das mulheres e a mobilidade dos operários homens das usinas para outros canteiros de grandes obras, constatou-se que os bares de prostituição e boates vinculados à prostituição eram abertos, fechados e/ou mudavam de proprietários/as.

Diferente de outras capitais da região Norte do Brasil como Manaus/AM Belém/PA, Rio Branco/AC onde há associações13, de profissionais do sexo em Porto Velho as prostitutas não estão organizadas em torno de coletivos políticos, o que dificultou o acesso e a adesão das trabalhadoras sexuais à pesquisa. Do mesmo modo, à época do início das pesquisas de campo não havia Organizações Não Governamentais (ONGs), associações ou órgãos governamentais realizando trabalhos direcionados especificamente às prostitutas, havendo apenas na segunda fase da pesquisa de campo, um trabalho realizado por uma pastoral da Igreja Católica em Jaci Paraná.

As religiosas dessa pastoral ofereciam cursos de qualificação profissional (bijuterias, bordados em sandálias e automaquiagem) para mulheres bolivianas em situação de prostituição nesse distrito próximo a UHE Jirau. Mas que, na verdade, trata-se uma ação de uma pastoral católica vinculada à corrente feminista radical contrária a qualquer forma de prostituição.

A inexistência de associações de profissionais do sexo e ONGs, desenvolvendo trabalhos com prostitutas na cidade de Porto Velho, de fato, parece ser um indicador do incipiente empoderamento político das mulheres pesquisadas em relação às informações acerca da regulamentação do trabalho sexual no Brasil e demais questões relacionadas à suas práticas (situação confirmada durante as entrevistas). Um contexto que se refletiu principalmente nas dificuldades de adesão à pesquisa, considerando que a inserção inicial de pesquisadores no campo de estudos sobre prostituição ocorre habitualmente a partir da articulação com associações, organizações de profissionais do sexo14.

13 Na Região Norte do Brasil há um consolidado movimento de profissionais do sexo organizado em torno de associações (articuladas principalmente com organizações da região Nordeste), sendo eles: Ampsap – Associação de Mulheres Profissionais do Sexo do Estado do Amapá; GEMPAC – Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará, em Belém; As Amazonas – Associação das Prostitutas do Amazonas e também o Núcleo Rosa Vermelha, ambas em Manaus. 14 Os estudos de Barreto (2008, 2015), Tedesco (2008), Olivar (2013, dentre outros confirmam que a porta de acesso ao campo de pesquisa sobre prostituição são as associações e ONGs.

46 Tais questões dificultaram o estabelecimento de relações estáveis com as entrevistadas da pesquisa, exigindo que a cada entrada no campo fosse necessário novas aproximações de outros sujeitos. Nesse contexto, revelar a identidade do pesquisador buscando construir gradativamente certa empatia do grupo para conseguir a adesão, apreender as expressões do lugar e regras/códigos e retomar a pesquisa empírica foi algo constante. De modo que esse aprendizado tornou-se fundamental para a condução das conversas informais e das entrevistas, bem como para a compreensão dos diálogos e da aproximação de outros sujeitos.

Desse modo, nas diferentes etapas da pesquisa de campo a cada inserção nos lugares destinados à prostituição encontrei resistências e dificuldades de adesão à pesquisa que exigiram a minha presença desinteressada e gradual nos estabelecimentos. Mas aceitar a presença, interagir com o pesquisador não significava, fundamentalmente, que elas estavam dispostas a participar do estudo, compartilhando com esse as suas histórias e experiências com o trabalho sexual. Por vezes as aproximações por parte das mulheres aconteciam com interesses em estabelecer interações que pudessem resultar em “programas”.

Inicialmente, se o empreendimento da interação partisse do pesquisador, elas comportavam-se ora com indiferença ora como se estivessem interagindo com um cliente iniciando a conversação acionando o script: “Olá! Tudo bem?”, “Paga uma cerveja?” ou “Paga um refrigerante?”. Trata-se de um código local que sinaliza, sobretudo, o interesse do homem em iniciar uma conversação que possa resultar na contratação dos serviços da prostituta. Segundo a fórmula de Goffman (2013), tal performance pode ser lida como um dos elementos da encenação do programa.

À vista disso, a presença masculina em um local de prostituição era percebida com certa suspeita ao se constatar que esse sujeito não correspondia às expectativas dos papéis sociais de gênero masculinos. Por um lado, ir a locais destinados a sociabilidades masculinas, frequentá-los por dias seguidos, conversar com as prostitutas e não contratar serviços sexuais e/ou não consumir bebidas alcoólicas (ou pagá-las para as prostitutas) colocava em suspeição a identidade social do pesquisador/homem/sulista. Além disso, havia o “efeito

47 possivelmente negativo dos instrumentos de registro” (POUPART, 2008, p. 231) que naquela fase da pesquisa restringia-se ao caderno de campo.

Por um lado, com as constantes visitas aos estabelecimentos, a minha presença era confundida, a princípio, com a de agentes vinculados aos aparelhos estatais de repressão à exploração sexual. Tal situação ficou evidenciada pelo tratamento frio, às vezes descortês, recebido dos/as donos de estabelecimentos vinculados à prostituição, considerando que suas atividades são criminalizadas pelo Código Penal brasileiro.

Na posição de proprietários/as de estabelecimentos vinculados à prostituição, os/as comerciantes podem ser imputados no crime de “lenocínio” pelo CP. brasileiro, nos seus artigos 227 (favorecimento), 228 (facilitar, intermediar, impedir de deixar) e, também, manter casa de prostituição, “por conta própria ou de terceiros”, é tipificado como crime de exploração no artigo 229; e, quando se tratar da presença de menores de 18 anos em situação de “prostituição” configurar-se-á caracterização de exploração sexual (sendo menor de 14 anos é tipificado como estupro de vulnerável) prevista nos artigos 240 e 241-E do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por outro, a condição de estudante de pós-graduação declarada às entrevistadas não colocava em suspeição o lugar do “masculino” dentro de uma “casa de prostituição”. Em mais de uma oportunidade fui questionado e incentivado a interagir e consumir serviços e produtos (bebidas alcoólicas e sexo).

Tal experiência pode ser lida como um dado importante, considerando que há comportamentos (que podem ser traduzidos como “códigos” de masculinidades) e devem ser seguidos nos locais observados; por exemplo, jogar sinuca, consumir bebidas alcoólicas (e também pagar bebidas para as mulheres), interagir com as prostitutas, etc., práticas que parecem seguir lógicas próprias de espaços de sociabilidades frequentados por homens das classes populares.

Um fato ocorrido durante a primeira entrevista (conseguida após dois encontros para conversas informais) e registrado no diário de campo materializa o lugar do masculino nesses locais onde fui questionado durante uma entrevista: “Você não fica com mulher assim? Por que você não gosta?” A minha entrevistada não se dava por convencida de que o meu interesse por ela estava exclusivamente em suas experiências de trabalho sexual, mostrando-se incrédula

48 quanto à resposta acerca dos interesses de estudos. Há, por um lado, uma expectativa sobre as performances masculinas que compreendem também ao papel de cliente, por outro, os sujeitos sempre são convocados a se identificar com a identidade sexual e de gênero quando são interpelados (BUTLER, 1997). Tais questões suscitadas durante os trabalhos de campo motivaram essa discussão na qual objetivo não somente realizar uma reflexão acerca da relação do pesquisador com o “seu” objeto como, também, contextualizar a aproximação do campo e dos sujeitos da pesquisa.