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A Jurisdição e a aplicação de princípios: a crítica de Habermas a Alexy

2. RACIONALIDADE E CORREÇÃO DAS DECISÕES JURÍDICAS NA

4.6 A Jurisdição e a aplicação de princípios: a crítica de Habermas a Alexy

Jürgen Haberm tece fortes críticas ao modo de compreensão metodológica do Tribunal Constitucional Federal alemão e à proposta de Alexy de conceituação de princípios jurídicos como mandamentos de otimização.

A chamada “doutrina da ordem de valores”, desenvolvida pelo próprio tribunal e dogmatizada por Alexy, implicaria uma compreensão metodológica com consequências de desgaste à racionalidade da atuação da jurisdição constitucional, bem como compromete à legitimidade das decisões judiciais.

Para Habermas, direitos não podem ser assimilados a valores e deve a sua aplicação ocorrer por meio da interpretação construtiva-já explicada neste trabalho. Ressalta que quando princípios colocam um valor esse mandamento não pode ser extraído da própria norma. O Judiciário, ao transformar princípios em mandamentos de otimização, tomam para si a competência que é própria do legislador, direcionando o comportamento obrigatório conforme a fixação de sua escolha valorativa. A compreensão de constituição como ordem de valores leva a uma autofixação da competência dos juízes de emitir legislação constitucional diante dos casos que se apresentam. A adaptação dos princípios a valores resultará na não mais a competência de aplicação normativas prevista constitucionalmente, mas em uma autofixação de competência através de uma autocompreensão metodológica.

Normas são mandamentos deônticos que fixam comportamentos. Princípios jurídicos fundamentam regras, as quais fixam o que se deve fazer. Valor, por sua vez, orientam o agir

de maneira teleológica e são próprios de outra forma de raciocínio prático que não a fixação dos comportamentos devidos num Estado Democrático de Direito que atribui competência à legislação política de emitir normas.

Segundo Habermas, “os valores configuram preferências tidas como dignas de serem desejadas em determinadas coletividades, podendo ser adquiridas ou realizadas através de um agir direcionado a um fim”204. Não possuem eles a validade deontológica das normas, as quais

carregam o sentido absoluto de uma obrigação incondicional e universal. Pode-se criticar a adequabilidade do padrão de valores de normas, mas isso não intervém em seu caráter lógico de aplicabilidade. A atratividade dos valores tem o sentido relativo de uma apreciação de bens, adotada ou exercitada no âmbito de formas de vida ou de uma cultura. Em sociedades plurais, na qual o ethos compartilhado se difundiu, o sentido relativo de uma apreciação de bens, adotada ou exercitada no âmbito de formas de vida ou de uma cultura, se torna ainda mais evidente.

As decisões valorativas exprimem aquilo que é bom para nós, que acordamos intersubjetivamente certa preferência e que seguimos aquela constelação de valor, ou o que é bom para mim. Segundo Habermas, “valores distintos concorrem para obter a primazia; na medida em que encontram reconhecimento intersubjetivamente no âmbito de uma cultura ou forma de vida, eles formam configurações flexíveis e repletas de tensões”205. É a

racionalidade do direito positivo que permite a domesticação das orientações axiológicas. Nas palavras de Habermas, “o direito definido através do sistema de direitos, é capaz de domesticar as orientações axiológicas e colocações de objetivos do legislador através da primazia estrita conferida a pontos de vista normativos”206.

Ademais, segundo Habermas:

“Do ponto de vista da análise conceitual, a distinção terminológica entre normas e valores somente perde seu sentido nas teorias que pretendem validade universal para os bens e valores supremos. (...) sob condições do pensamento pós-metafísico, elas não são mais defensáveis (...).Em teorias contemporâneas desse tipo, os pretensos bens ou valores universais assume uma forma a tal ponto abstrata, que é possível reconhecer facilmente princípios deontológicos, tais como dignidade humana, solidariedade, autorrealização e autonomia. A transformação conceitual de direitos e valores fundamentais significa um mascaramento teleológico de direitos, que encobre a circunstância de que, no contexto de fundamentação, normas e valores assumem papéis diferentes na lógica da argumentação. (HABERMAS, 2012, p. 319)

204

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 316.

205

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 317.

206

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 318.

Por isso Habermas critica a autocompreensão da jurisdição constitucional como realizadora, através de ponderações, de uma ordem de valores. Nesse sentido, Habermas tece os seguintes comentários:

Tal jurisprudência de valores levanta realmente o problema da legitimidade, que Maus e Böckenförde analisam, tomando como referência a prática de decisão do Tribunal Constitucional Federal. Pois ela implica um tipo de concretização de normas que coloca a jurisprudência constitucional no estado de uma legislação concorrente. (...)Ao deixar-se conduzir pela ideia de realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária. No caso de uma colisão, todas as razões podem assumir o caráter de argumentos de colocação de objetivos, o que faz ruir a viga mestra introduzida no discurso jurídico pela compreensão deontológica de normas e princípios do direito. A partir do momento em que direitos individuais são transformados em bens e valores, passam a concorrer em pé de igualdade, tentando conseguir primazia em caso singular. Cada valor é tão particular como qualquer outro, ao passo que as normas devem sua validade a um teste de universalização. Nas palavras de Denninger: ‘Valores só podem ser relativizados através de valores. Porém o processo através do qual valores são preferidos ou rejeitados escapa à conceituação lógica’. (...) Na medida em que um tribunal constitucional adota a doutrina da ordem de valores e a toma como base de sua prática de decisão, cresce o perigo dos juízos irracionais, porque, neste caso, os argumentos funcionalistas prevalecem sobre os normativos. (HABERMAS, 2012, p. 321 e 322)

Normas diferentes não podem contradizer umas às outras, pois ou algo é devido ou não é. Devem elas estar inseridas num contexto coerente, Porém o direito definido através do sistema de direitos, é capaz de domesticar as orientações axiológicas e colocações de objetivos do legislador através da primazia estrita conferida a pontos de vista normativos. Conforme explana Habermas:

Uma jurisprudência orientada por princípios precisa definir qual a pretensão e qual ação deve ser exigida num determinado conflito- e não arbitrar sobre o equilíbrio de bens ou sobre o relacionamento entre valores. É certo que normas válidas formam uma estrutura relacional flexível, na qual as relações podem deslocar-se segundo as circunstâncias de cada caso; porém este descolamento está sob a reserva da coerência, a qual garante que todas as normas se ajuntam num sistema afinado, o qual admite para cada caso uma única solução correta – entendido para Habermas

no sentido ordenador do procedimento hermenêutico cristalizado na figura de

Hércules, agora sob o paradigma discursivo, como já explicado neste trabalho. A

validade jurídica do juízo tem o sentido deontológico de um mandamento, não o sentido teleológico daquilo que é atingível no horizonte de nossos desejos, sob circunstâncias dadas. Aquilo que é o melhor para cada um de nós não coincide eo

ipso com aquilo que é igualmente bom para todos. (HABERMAS, 2012, p. 323) A alternativa da interpretação construtiva permite o encontro de incoerências na adequabilidade de valores incorporados na normatividade, sem que com isso uma instância não competente decida externamente qual preferência de bens lhe é mais atrativa e merece foro na normatividade que está a emitir.

No que pese esta divergência de posicionamento entre Habermas e Alexy, a teoria do discurso jurídico deste último é de utilização compatível por quem almeje a utilização do

paradigma discursivo para a argumentação da correção da decisão jurídica, com a ressalva, todavia, da divergência metodológica entre os autores, a qual provoca, para os adeptos da teoria de Habermas a rejeição de certos aspectos da teoria do discurso jurídico e do Constitucionalismo alexyano.

Cremos que a harmonização da teoria do discurso de Alexy com o posicionamento de Habermas é possível desde que se rejeite a conceituação de princípios como mandamentos de otimização, com sua aplicação operada por ponderação, bem como se reestruture a utilização das formas de argumentos jurídicos (cânones de interpreação) apontadas por Alexy. Em Alexy a interpretação da legislação se realizaria através dos clássicos cânones de interpretação e a escolha entre eles seria efetuada por ponderação. Em Habermas, embora nada impeça que argumentos por meio deles sejam emitidos, a interpretação do ordenamento assumirá os ares dworkinanos da interpretação construtiva. No próximo capítulo, realizaremos uma reflexão mais detida sobre a interconexão entre as teorias de Dworkin, Habermas e Alexy no tocante a racionalidade e correção da decisão jurídico. Passemos, agora, a ele.

5. UMA REFLEXÃO SOBRE A RACIONALIDADE E A CORREÇÃO DAS