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A jurisdição brasileira e o pedido de cooperação do Tribunal Penal Internacional

2. Os desafios para o cumprimento do Estatuto de Roma pelo Brasil questões materiais

2.2. As imunidades do indivíduo perante o Tribunal Penal Internacional

2.2.1. A jurisdição brasileira e o pedido de cooperação do Tribunal Penal Internacional

O conflito de Darfur, iniciado oficialmente em fevereiro de 2003, foi caracterizado pelo ataque de grupos darfurianos a postos do governo sudanês na região, em razão do abandono e do descaso do governo de Cartum, eminentemente árabe. Atualmente, o conflito armado na região oeste do Sudão ocorre entre os janjawid - milicianos recrutados entre os baggara, tribos nômades africanas de língua árabe e religião muçulmana - e os povos não árabes da região. O governo sudanês apoia os janjawid, por meio do fornecimento de armas, de assistência e da participação em ataques conjuntos ao grupo opositor.

Em decorrência desses acontecimentos, o Conselho de Segurança da ONU enviou ao Tribunal Penal Internacional, em 2005, a situação de violação de direitos humanos na região e deu ensejo à abertura de investigação contra o atual Presidente da República do

nacionais. Os casos apresentados ao Tribunal Penal Internacional só seriam recebidos se os Estados não perseguissem eles mesmos os indivíduos responsáveis, seja porque o sistema judicial interno esteja paralisado, seja porque os Estados não desejam perseguir eles mesmos os responsáveis, seja enfim porque os processos internos visam na realidade a destituir o acusado de sua responsabilidade penal”. ASCENSIO, Hervé. O Brasil e

os Novos Desafios do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 274. É importante destacar que o

princípio da complementariedade deve ser visto como um reflexo do interesse da comunidade internacional em ver fortalecidas a adesão dos Estados aos standards internacionais e a busca pelo desenvolvimento de mecanismos jurisdicionais internos, ou seja, o aprimoramento dos tribunais nacionais, que provoca uma conscientização interna e, ao mesmo tempo, global, acerca da necessidade da persecução penal dos crimes previstos no Estatuto de Roma.

83 “Art. 20 [...] 3 - O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos

também punidos pelos artigos 6°, 7° ou 8°, a menos que o processo nesse outro tribunal: a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.” BRASIL. Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002.

Sudão, Omar Hassan Ahmad Al Bashir, mencionada no item 1.2.3. do capítulo 1. Na fase preliminar do procedimento penal, por vislumbrar satisfeitos os requisitos e as condições a que se refere o artigo 58 do Estatuto de Roma84, o TPI expediu ordem de detenção e entrega do investigado e encaminhou o pedido de cooperação a todos os países signatários do Estatuto. A acusação é de ser o Chefe de Estado penalmente responsável, enquanto autor indireto ou co-autor indireto, pela prática de crimes contra a humanidade85 e de guerra86, previstos nos artigos 7º e 8º do Estatuto de Roma, entre março de 2003 até, pelo menos, 14 de julho de 2008.

De acordo com o Mandado de Detenção, há fundados indícios de que o investigado era, de fato, o Presidente do Sudão e o Comandante-Chefe das Forças Armadas sudanesas de março de 2003 a 14 de julho de 2008 e, a esse título, teria desempenhado um papel essencial ao coordenar, em conjunto com outros dirigentes políticos e militares sudaneses de alta patente, a elaboração e a implantação de uma campanha generalizada e sistemática contra parte da população civil de Darfur, pertencente principalmente aos grupos étnicos Fur, Masalit e Zaghawa. Para o Juízo Preliminar I, a sua detenção é, então, necessária para garantir seu comparecimento ao Tribunal e evitar que se obstrua ou ponha em perigo o inquérito em curso e continue cometendo os crimes dos quais está sendo acusado.

No Brasil, o pedido foi dirigido ao Embaixador do Brasil no Reino dos Países Baixos e, posteriormente, encaminhado pelo Itamaraty e o Ministério da Justiça ao Supremo Tribunal Federal, que recebeu o pedido como Petição (Pet. n. 4.625). Trata-se de um pedido, conforme já afirmado no item 1.2.3 do capítulo 1, de natureza meramente hipotética, visto que o Presidente sudanês não se encontra em território nacional. Inexiste, inclusive, qualquer expectativa de que venha realizar visita oficial ao Brasil futuramente.

84“Art. 58 - Mandado de Detenção e Notificação para Comparecimento do Juízo de Instrução: 1. A todo o

momento após a abertura do inquérito, o Juízo de Instrução poderá, a pedido do Procurador, emitir um mandado de detenção contra uma pessoa se, após examinar o pedido e as provas ou outras informações submetidas pelo Procurador, considerar que: a) Existem motivos suficientes para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal; e b) A detenção dessa pessoa se mostra necessária para: i) Garantir o seu comparecimento em tribunal; i) Garantir que não obstruirá, nem porá em perigo, o inquérito ou a ação do Tribunal; ou iii) Se for o caso, impedir que a pessoa continue a cometer esse crime ou um crime conexo que seja da competência do Tribunal e tenha a sua origem nas mesmas circunstâncias.” BRASIL. Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002.

85 Crimes contra a humanidade: atacar intencionalmente a população civil em geral ou civis que não participem

diretamente nas hostilidades e saquear um aglomerado populacional ou um local, mesmo quando tomado de assalto.

86 Crimes de guerra: homicídio; extermínio; deportação ou transferência forçada de uma população; tortura; e

violação, escravatura sexual, prostituição, esterilização e gravidez forçadas ou qualquer outra forma de violência sexual de semelhante gravidade.

O ministro Celso de Mello, no despacho de 4 de agosto de 200987, mencionou a importância de discutir as incompatibilidades do Estatuto de Roma com o ordenamento jurídico brasileiro. Especificamente sobre a imunidade dos indivíduos, o ministro registrou o já citado julgamento da Corte Internacional de Justiça concernente à decretação da prisão do Ministro das Relações Exteriores congolês, em que foi assentado que a ordem de prisão e sua correspondente circulação internacional infringiam o direito internacional, por implicarem desrespeito à inviolabilidade pessoal e à imunidade de que dispunha a autoridade estrangeira em face da jurisdição doméstica do Judiciário do Reino da Bélgica. Ressaltou, contudo, que o caso julgado pela Corte Internacional de Justiça se referia a situação diversa da tratada na Pet. n. 4.625, visto que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional não é estrangeira, mas internacional, e os institutos da extradição e da entrega são distintos. Observou, por fim, que, de acordo com o Estatuto de Roma, é irrelevante, para efeitos de persecução penal, a condição política do agente, que não poderá opor ao Tribunal Penal Internacional, ainda que se cuide de Chefe de Estado ou de Governo, a denominada sovereign immunity ou crown immunity, tal como estipula, expressamente, o artigo 27 da convenção multilateral.

O processo ainda não foi julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal e está concluso ao ministro relator para julgamento, com parecer do Ministério Público Federal, desde 19 de agosto de 201388. O que se percebe, contudo, é que, diante do pedido de entrega de um Chefe de Estado, como o Presidente do Sudão, em pleno exercício de suas funções, tornou-se ainda mais relevante a discussão acerca do artigo 27 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro.

2.2.2. A visão do Ministério Público Federal a respeito da imunidade prevista no