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Tipificação dos crimes previstos no Estatuto de Roma pelo ordenamento jurídico

2. Os desafios para o cumprimento do Estatuto de Roma pelo Brasil questões materiais

2.4. Princípio da legalidade

2.4.1. Tipificação dos crimes previstos no Estatuto de Roma pelo ordenamento jurídico

Ainda em relação ao princípio da legalidade, outro tema discutível é a necessidade de a legislação brasileira também tipificar os crimes descritos no Estatuto de Roma.

A questão pode ser vista como um desdobramento da falta de universalidade de vários tratados de direitos humanos, da falta em muitos países, inclusive no Brasil134, de

131 Com arrimo no artigo 75 do Código Penal, fixou-se como pena máxima a reclusão por 30 (trinta) anos para os

delitos de genocídio, contra a humanidade e utilização indevida de insígnias ou emblemas distintivos, permitindo-se para os dois primeiros um aumento de um a dois terços da pena quando o crime for cometido por autoridade ou agente público ou mediante concurso de pessoas.

132 A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), em

sentença de 24 de novembro de 2010, responsabilizou o Brasil a tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas, entre outras medidas. O parágrafo 287 da sentença da Corte IDH instou o Brasil a seguir com a tramitação dos Projetos de Lei mencionados (301/2007 e 4.038/2008) e ratificar a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas. No parágrafo 285, a Corte IDH afirmou que os projetos de lei não atendem por completo ao padrão interamericano porque correspondem à definição de crime contra humanidade posta no Estatuto de Roma, ou seja, de atos sistemáticos ou generalizados cometidos como parte de um ataque contra a população civil. Diferentemente, segundo a Corte IDH, a adequada tipificação deve incluir: a) a eliminação de instituições jurídicas como a anistia e a prescrição; b) a eliminação da competência da justiça militar; c) a investigação da totalidade das condutas das pessoas implicadas, e d) a determinação das sanções proporcionais à gravidade do crime.

133 BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Parecer n. 5.690 – PGR. Roberto

Gurgel.

134 Sobre o tema, destacam-se a decepcionante regulamentação no direito interno brasileiro do crime de tortura, a

denúncia pelo Brasil da Convenção n. 158 da OIT, sobre garantia no emprego, e a criticável Emenda Constitucional n. 45/2004. CANÇADO TRINDADE. Antônio Augusto. Memorial em Prol de uma Nova Mentalidade quanto à Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Internacional e Nacional. In: 51 Boletim da

aplicabilidade direta da normativa destes últimos no direito interno dos Estados partes e de mecanismos permanentes de execução das sentenças de tribunais internacionais de direitos humanos, das insuficiências das medidas de prevenção e de seguimento, das insuficiências da compatibilização das normas de direito interno com os tratados de direitos humanos, da persistência preocupante da impunidade e da alocação manifestamente inadequada de recursos humanos e materiais aos órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos135.

Esse o contexto, no ordenamento pátrio, a repressão de crimes internacionais encontra-se limitada quase que exclusivamente ao crime de genocídio, previsto na Lei n. 2.889/56 e nos artigos 208, 401 e 402 do Código Penal Militar, e ao crime de tortura, previsto na Lei n. 9.455/97. Ressalte-se, todavia, que, embora os crimes elencados no Estatuto se assemelhem a essas figuras criminais já contempladas no ordenamento pátrio, delas se distinguem na medida em que pressupõem condições e contexto especiais para sua caracterização.

Além disso, o Brasil ratificou as Convenções de Genebra de 1949, que estabelecem a ilicitude dos crimes de guerra, e manifestou adesão a outros tratados internacionais que se referem a tais crimes.

O Estatuto de Roma, ao prever o princípio da complementariedade, dispõe que a jurisdição do TPI terá lugar somente quando faltar aos Estados capacidade ou vontade de perseguir e punir penalmente os criminosos. Ocorre que, segundo Adriano Japiassú, essa ausência de capacidade pode ser traduzida em ausência de normatividade adequada para a punição dos crimes internacionais136. Dessa forma, pode-se afirmar que o Estado parte que não criminaliza tais condutas internamente está obrigado de fato a adaptar sua legislação nacional ao Estatuto, pois é impossível a punição de condutas criminosas previstas somente em tratados internacionais, mas não em lei interna.

Tramita no Congresso Nacional projetos de lei para implementação do Estatuto de Roma no ordenamento jurídico brasileiro. Destaco aqui, o projeto a cargo do Grupo de

135 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos

Humanos nos Início do Século XXI. In: CACHPAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo (org.). Desafios do

direito internacional contemporâneo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p. 207-321, p. 209.

Também sobre o tema, cf., e.g., CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. The Future of the International Protection of Human Rights. In: B. Boutros-Ghali Amicorum Discipulorumque Liber - Paix,

Développement, Démocratie, Bruxelles, Bruylant, v. 2, p. 961-986, 1998; CANÇADO TRINDADE, Antônio

Augusto. A Emancipação do Ser Humano como Sujeito do Direito Internacional e os Limites da Razão de Estado. In: 6/7 Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 425-434, 1998-1999.

136 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional – a internacionalização do Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 208-209.

Trabalho instalado pelo Ministério da Justiça, que traz, dentre outros, a tipificação dos delitos a serem julgados pelo TPI e a cominação das respectivas penas137.

É indubitável que a promulgação dessa lei permitirá o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Entendo, todavia, que a criação dos tipos penais definidos no Estatuto de Roma, por meio da referida lei, não é imprescindível, uma vez que a falta de tipificação no ordenamento jurídico brasileiro não configura obstáculo ao exercício da jurisdição primária pelo Brasil em relação a esses crimes. Com efeito, tendo sido o Estatuto de Roma ratificado pelo Brasil, os dispositivos nele constantes devem ser vistos como regras incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio.

O próprio projeto de lei mencionado acaba por trazer essa ideia, ao dispor em suas justificativas o seguinte:

(…) a revisão e adaptação da legislação brasileira nessa matéria não é uma condição de vigência do Estatuto de Roma no Brasil ou do decreto que o publicou, ao contrário do que por vezes se tem propalado, e sim uma medida a ser adotada no interesse do próprio País, de eliminar lacunas que poderiam atrair a jurisdição do TPI para questões que podem e devem ser julgadas por nossos juízes e tribunais138.

Ademais, o argumento pode ser inferido da decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 70.389, referente ao crime de tortura contra criança ou adolescente. Na ocasião, o ministro Carlos Veloso ressaltou que a definição de tortura está contida na Convenção das Nações Unidas contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 1984, aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n. 4, de 1989, e incorporada ao Direito Positivo Brasileiro pelo Decreto n. 40, de 1991. Nessa esteira, defendeu o ministro que o que está posto em tratados internacionais ratificados pelo Brasil deve ser tido como direito interno, ao dizer que “está no direito positivo brasileiro a definição de tortura. Não sei como seria possível, em nome de um formalismo excessivo, ou um apego excessivo à letra fria da lei, exigir mais do que está posto na Convenção, que é direito interno”139.

137 Projeto de lei publicado na obra: LORANDI, Adriana (coord.). Tribunal Penal Internacional: implementação do Estatuto de Roma no Brasil. Brasília, Ministério Público Militar, 2007. O projeto foi

recebido, em 2006, pelo Secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi. O documento prevê a adaptação da legislação brasileira para viabilizar a internalização do que a instância internacional determina. Foi elaborado por um grupo de trabalho integrado pelos Ministérios Públicos Federal e Militar, Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Itamaraty, AGU, Casa Civil e especialistas convidados e coordenado pela então Vice-Procuradora-Geral Militar, Adriana Lorandi.

138 LORANDI, Adriana (coord.). Tribunal Penal Internacional: implementação do Estatuto de Roma no Brasil. Brasília, Ministério Público Militar, 2007, p. 27-28.

139 STF: “EMENTA. [...] NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA - CONVENÇÕES

INTERNACIONAIS. - O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembleia Geral