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A pena de prisão perpétua estatutária na visão do Supremo Tribunal Federal

2. Os desafios para o cumprimento do Estatuto de Roma pelo Brasil questões materiais

2.3. Pena de prisão perpétua

2.3.1. A pena de prisão perpétua estatutária na visão do Supremo Tribunal Federal

O Estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815/80, em seu artigo 91, inciso III, estipula que não será efetivada a entrega do extraditando sem que o Estado requerente assuma o compromisso de comutar em pena privativa de liberdade a pena corporal ou de morte, ressalvados, quanto à última, os casos em que a lei brasileira permitir a sua aplicação. O artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição estabelece que não haverá pena “de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. Diante disso, para conceder extradição de estrangeiro para outro Estado, em razão de delito nele praticado, o ordenamento jurídico brasileiro exige a comutação da pena de morte em pena privativa de liberdade.

A princípio, a comutação não era, contudo, exigida quando se tratava da pena de prisão perpétua, conquanto esta também fosse vedada pelo ordenamento pátrio (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b”, da Constituição). Um julgado que reflete esse entendimento é a Extradição 426, anterior à Constituição de 1988112, quando afirmou o STF que, “em face da reiteração do texto legal, entre nós, por quase um século, claro e límpido no sentido da necessidade de comutação tão-somente das penas corporal e de morte”113, a extradição de indivíduo prescinde do compromisso de comutação da pena perpétua em pena privativa de liberdade com prazo máximo de trinta anos. Na ocasião, o ministro Sidney Sanches afirmou

111 BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Parecer n. 5.690 – PGR. Roberto

Gurgel. Verifica-se, todavia, a fragilidade do argumento, uma vez que o local do cumprimento da pena não é suficiente para alterar suposta inconstitucionalidade da norma que a prevê. Não resolve, por exemplo, eventual situação brasileira enfrentada pelo Tribunal Penal Internacional em que seja possível o cumprimento da pena no País.

112 A Constituição anterior (artigo 150, § 11) também vedava a pena de prisão perpétua: “Não haverá pena de

morte, de prisão perpétua, de banimento, nem de confisco. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação militar aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de função pública”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967.

113 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição 426/EUA. Tribunal Pleno. Requerente: Governo dos Estados

Unidos da América. Extraditando: Russell Wayne Weissel. Relator: Ministro Rafael Mayer. DJ de 18 de outubro de 1985.

que “o parágrafo 11 do artigo 153 da Constituição Federal (de 1967), a meu ver, visou impedir apenas a imposição das penas ali previstas (inclusive a perpétua) para os que aqui tenham que ser julgados. Não há de ser pretendido fora do país”114.

Em 1991, já sob a égide da Constituição de 1988, no julgamento da Extradição 507, que tratava de situação em que o extraditando fugiu para o Brasil durante o cumprimento da pena de prisão perpétua, o STF deferiu o pedido de cooperação internacional sem qualquer ressalva quanto à pena de prisão perpétua, reiterando o entendimento perfilhado anteriormente. No referido julgado, o ministro Marco Aurélio, acompanhando o ministro Ilmar Galvão, relator para o acórdão, afirmou não encontrar, na legislação em vigor, qualquer preceito que autorizasse “o deferimento de pedido de extradição com cláusula restritiva, como que a se transportar, para o direito do Estado requerente, um preceito da nossa ordem jurídica”115. Também deferindo a extradição sem ressalvas, o então presidente do STF, ministro Sidney Sanches, afirmou que “a Constituição, quando proíbe a aplicação de pena de prisão perpétua, obviamente está se referindo aos brasileiros e nacionais, quando aqui são julgados. E não aos que são julgados noutro País”116.

Também no julgamento da Extradição 669, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a imposição das penas privativas de liberdade, tais como abstratamente definidas na legislação de New Jersey, traduz opção judicial peculiar ao ordenamento jurídico daquele estado-membro da União norte-americana. Assentou, então, que “não se pode impor, no plano das relações extradicionais entre estados soberanos, a compulsória submissão da parte Requerente ao modelo jurídico de aplicação de penas vigente no âmbito do sistema normativo do estado a quem a extradição é solicitada”117.

Esse entendimento do Supremo encontra amparo no artigo 91 da Lei n. 6.815/80, em que não há restrição, em nenhuma das hipóteses que disciplina, ao deferimento de pedido de extradição em função da possibilidade de aplicação da pena de prisão perpétua. Dessa

114 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição 426/EUA. Tribunal Pleno. Requerente: Governo dos Estados

Unidos da América. Extraditando: Russell Wayne Weissel. Relator: Ministro Rafael Mayer. DJ de 18 de outubro de 1985.

115 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição 507/Argentina. Tribunal Pleno. Requerente: Governo da

Argentina. Extraditando: Hugo Rodolfo Zito. Relator: Ministro Néri da Silveira. Relator para o acórdão: Ministro Ilmar Galvão. DJ de 3 de novembro de 1993. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324734. Acesso em: 30 abr 2014.

116 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição 507/Argentina. Tribunal Pleno. Requerente: Governo da

Argentina. Extraditando: Hugo Rodolfo Zito. Relator: Ministro Néri da Silveira. Relator para o acórdão: Ministro Ilmar Galvão. DJ de 3 de novembro de 1993. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324734. Acesso em: 30 abr 2014.

117 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição. Extradição 669/EUA. Tribunal Pleno. Requerente: Governo

dos Estados Unidos da América. Extraditando: Mohammad Raslan Deeb. Relator: Ministro Celso de Mello. DJ de 29 de março de 1996. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324862. Acesso em: 4 mai 2014.

maneira, ainda que o Direito brasileiro não admita a pena perpétua, esse fato não configura óbice para efeitos extradicionais118.

Em 2004, o STF alterou o seu entendimento, no julgamento da Extradição 855, para condicionar a entrega do extraditando à comutação das penas de prisão perpétua em pena de prisão de no máximo trinta anos, em conformidade com o artigo 75, § 1º, do Código Penal. Na ocasião, ficou assentado que:

A extradição somente será deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando- se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais – considerado o que dispõe o art. 5º, XLVII, ‘b’ da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo – estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico normativa da Lei Fundamental brasileira. Doutrina. Novo entendimento derivado da revisão, pelo Supremo Tribunal Federal, de sua jurisprudência em tema de extradição passiva119.

Com o julgamento da Extradição 855, pode-se afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro passou a considerar a pena de prisão perpétua incompatível com o artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b”, da Constituição, a partir de uma interpretação que amplia o âmbito de incidência da garantia constitucional da vedação de penas de caráter perpétuo a pessoas sob processo de extradição. Todavia, a meu ver, como esse entendimento, que é o atualmente adotado pelo Supremo120, foi firmado em casos de pedidos de extradição, e não de pedidos de entrega121, a conclusão de que a jurisprudência do STF esteja no sentido da incompatibilidade da pena de prisão perpétua prevista no Estatuto do Tribunal Penal Internacional com o ordenamento jurídico brasileiro, é equivocada ou ao menos precipitada. Ainda não há, portanto, um posicionamento jurisprudencial do STF a respeito da compatibilidade do artigo 77 (1) (b) do Estatuto de Roma com a Constituição.

118 Nesse sentido manifestou-se a Procuradoria-Geral da República na Pet. n. 4.625. BRASIL. Ministério Público

Federal. BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Parecer n. 5.690 – PGR. Roberto Gurgel.

119 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição 855/Chile. Tribunal Pleno. Requerente: Governo do Chile.

Extraditando: Mauricio Fernandez Norambuena. Relator: Ministro Celso de Mello. DJ de 1º de setembro de

2004. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28Ext%24%2ESCLA%2E+E+855%2E NUME%2E%29+OU+%28Ext%2EACMS%2E+ADJ2+855%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=htt p://tinyurl.com/art7r7w. Acesso em: 30 abr 2014.

120 Nesse sentido: Ext 1.321, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, DJe 22/4/2014; Ext 1.306, Rel. Min.

Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 2/12/2013; Ext 1.278, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ 4/10/2012; Ext 1.250, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ 24/9/2012; Ext 1.188, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ 28/11/2011. Ext 1.151, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJe de 19/5/2011.

121 Sobre a distinção entre os institutos da entrega e da extradição confira a decisão do Ministro Celso de Mello