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1. Os reflexos da inconstitucionalidade do Estatuto de Roma do Tribunal Penal

1.2. Os reflexos da inconstitucionalidade do Estatuto de Roma: um tema atual e necessário

1.2.3. O caso Hassan Ahmad Omar Al Bashir (Petição n 4.625)

O Brasil, como signatário do Estatuto de Roma, tem o dever de cooperar e, consequentemente, de afastar ou ao menos enfrentar todos os possíveis óbices a esta cooperação. Não faz sentido o País ratificar um tratado e, depois, pautado em escolhas nem sempre legítimas, simplesmente deixar de cumpri-lo. No Supremo Tribunal Federal, pende de

julgamento a Petição n. 4.625, que, sem dúvida, consiste em uma oportunidade concreta de se aprimorar o debate sobre as questões aqui colocadas e para que o Brasil, ou ao menos o Poder Judiciário, demonstre suas reais intenções em relação ao Tribunal Penal Internacional.

Com fulcro no artigo 89, § 1º, do Estatuto de Roma e em cumprimento à decisão proferida pelo Juízo Preliminar I, em 4 de março de 2008, no âmbito do Caso Prosecutor v.

Omar Hassan Ahmad Al Bashir (ICC-02/05-01/09-3), o TPI formulou pedido de cooperação

internacional e auxílio judiciário com vistas a obter a detenção, para posterior entrega àquela Corte, de Omar Hassan Ahmad Al Bashir, Presidente da República do Sudão. Segundo o pedido, acusa-se o investigado de ser penalmente responsável, enquanto autor indireto ou coautor indireto, pela prática de crimes contra a humanidade e de guerra, previstos nos artigos 7º e 8º do Estatuto de Roma, cometidos na região de Darfur, no oeste do Sudão, entre março de 2003 até, pelo menos, 14 de julho de 2008. Para o Juízo Preliminar I, a detenção de Omar Al Bashir é necessária para garantir seu comparecimento ao Tribunal, bem como para evitar que obstrua ou ponha em perigo o inquérito em curso e continue cometendo os crimes dos quais está sendo acusado.

O ministro Celso de Mello, relator da Petição n. 4.625, entendeu conveniente a prévia manifestação do Ministério Público Federal e destacou a relevância de se discutir as incompatibilidades do Estatuto de Roma com o ordenamento jurídico brasileiro. Dentre as questões suscitadas, mencionou eventual inconstitucionalidade das regras que dizem respeito à: (i) possibilidade de entrega da pessoa reclamada, ao Tribunal Penal Internacional, pelo Governo do Brasil, considerado o que dispõe o artigo 5º, inciso XLVII, “b”, da Constitução; (ii) admissibilidade, pelo Estatuto de Roma, da imposição da pena de prisão perpétua; (iii) imprescritibilidade de todos os crimes previstos no Estatuto de Roma; (iv) impossibilidade de invocação, por Chefe de Estado, de sua imunidade de jurisdição em face do Tribunal Penal Internacional; (v) descrição dos denominados core crimes e das penalidades respectivas, em contraponto com o princípio da legalidade; (vi) imprescritibilidade dos crimes sujeitos à competência material do TPI. Essas questões, além de outras, são objeto de estudo nesta dissertação.

A Procuradoria-Geral da República, em 9 de agosto de 2013, emitiu parecer pela procedência do pedido, reconhecendo a constitucionalidade e plena recepção do Estatuto de Roma, “tendo em vista o disposto nos artigos 1º, III; 4º, II e IX; 5º § § 2º, 3º e 4º da Constituição Federal e no artigo 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”54. O

54 BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Parecer n. 5.690 –PGR. Roberto

pedido de cooperação ainda não foi julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal e está concluso ao ministro relator para julgamento, desde 19 de agosto de 201355.

O que se percebe, todavia, é que, diante da pendência de apreciação pela Corte Constitucional brasileira do primeiro pedido de entrega do TPI e da ausência de uma resposta concreta do País à Corte, mesmo passados aproximadamente quatro anos da recepção do pedido pelo Brasil, torna-se ainda mais relevante e premente a discussão da compatibilidade do Estatuto de Roma com o ordenamento jurídico brasileiro. Na verdade, acredita-se que a demora na apreciação do pedido, de certo modo, favorece a tomada de uma decisão mais sóbria sobre a questão, uma vez que, ao longo destes anos, observou-se uma evolução nos debates que envolvem temas sensíveis ao reconhecimento ou não da constitucionalidade do Estatuto de Roma, não apenas no âmbito interno como na esfera internacional.

Assim, se é certo que o pedido de cooperação internacional e auxílio judiciário tem natureza quase hipotética, haja vista que o Presidente sudanês não se encontra em território nacional e não há expectativa de que venha a realizar visita oficial ao Brasil futuramente, não menos certa é a importância do tema em debate, especialmente diante das circunstâncias de: o TPI ser dependente, para sua efetiva atuação, da cooperação dos Estados partes, dentre os quais está o Brasil; a constitucionalidade do Estatuto ser matéria controvertida em outros Estados partes que também têm o dever de cooperar com o Tribunal; peculiaridade e ineditismo do pedido, por ser o primeiro mandado de detenção contra um Chefe de Estado durante o exercício de suas funções emitido pelo TPI.

De mais a mais, não se pode ignorar a afirmação daqueles que entendem que, quando uma investigação do Tribunal Penal Internacional é fruto de representação apresentada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em atuação sob os auspícios do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o pedido de cooperação é obrigatório, em atenção ao comando do artigo 49 da Carta. Isso implica reconhecer que sua obrigatoriedade alcança não apenas os Estados partes, mas também os membros da ONU, e que é possível, inclusive, a aplicação de medidas sancionatórias ao Estado descumpridor56. Como o caso do Sudão, que

55 Folha de andamento processual disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2691069. Acesso em: 30 abr 2014.

56 Nesse sentido: Valerie Oosterveld, Mike Perry e John McManus. OOSTERVELD, Valerie; PERRY, Mike;

McMANUS, John. The Cooperation of States With the International Criminal Court. In: Fordham

International Law Journal, v. 25, n. 3, article 14, p. 765-839, p. 788-792, 2001. Disponível em:

http://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1834&context=ilj. Acesso em: 25 jun 2014. O Conselho de Segurança, desde março de 2005, vem reiterando ao Sudão o descumprimento do pedido de cooperação com o Tribunal Penal Internacional, inclusive por meio da imposição de sanções ao governo sudanês. Em fevereiro de 2013, as sanções impostas foram prorrogadas até 17 de fevereiro de 2014. Disponível em: http://www.onu.org.br/conselho-de-seguranca-da-onu-estende-mandato-sobre-sancoes-ao-sudao/. Acesso em: 25 jun 2014. No debate semestral do Conselho de Segurança, ocorrido em 3 de junho de 2013, sobre o

deu origem, no Brasil, à Pet. 4.625, foi remetido ao Tribunal Penal Internacional pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, com base nesse entendimento, deve ser reconhecida a possibilidade de o Brasil sujeitar-se a eventuais sanções do Conselho de Segurança, caso decida o País, com base no reconhecimento da inconstitucionalidade do Estatuto de Roma, descumprir a decisão do Tribunal e julgar improcedente a referida Petição. Para além da cooperação, existe, portanto, um problema de cumprimento de uma obrigação internacional.

seguimento da sua Resolução 1593, de 2005, o Procurador do Tribunal Penal Internacional, Fatou Bensouda, mais uma vez lamentou que o governo sudanês não estivesse cooperando com o TPI, contrariando, assim, as disposições da Resolução 1593. Disponível em: http://www.franceonu.org/france-at-the-united- nations/geographic-files/africa/sudan-and-south-sudan/article/sudan-and-south-sudan. Acesso em: 25 jun 2014. Antes disso, em 15 de abril de 2013, o Conselho expediu também carta à República de Chad e ao Estado da Líbia para que informassem o Tribunal Penal Interacional sobre a suposta visita do investigado àqueles Estados, em fevereiro de 2013. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Letter dated 15 April 2013 from the Secretary-General to the President of the Security Council. S/2013/229. 15 de abril de 2013. Disponível em: http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3- CF6E4FF96FF9%7D/s_2013_229.pdf. Acesso em: 25 jun 2014. Em 9 de abril de 2014, o TPI informou o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral das Nações Unidas do descumprimento da ordem de detenção e entrega de Omar Al-Baschir direcionada à República Democrática do Congo, durante a visita do acusado ao país, em fevereiro de 2014. Disponível em: http://www.icc- cpi.int/en_menus/icc/press%20and%20media/press%20releases/Pages/pr994.aspx. Acesso em: 26 jun 2014.