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A “LÍNGUA” DO GAÚCHO NO DISCURSO SOBRE O GAÚCHO

4 A LÍNGUA (GEM) E O ESPAÇO REGIONAL

4.1 A “LÍNGUA” DO GAÚCHO NO DISCURSO SOBRE O GAÚCHO

Os primeiros estudos dialetológicos que surgiram no Rio Grande do Sul trouxeram subsídios para os registros da língua portuguesa falada no Brasil. Até então, os trabalhos feitos sobre a questão do gaúcho traziam uma perspectiva dialetológica e sociolinguística na área da linguagem.

Segundo Sturza (2006), com o fim da Revolução Farroupilha na metade do século XIX, o cenário intelectual é efervescente, com publicações de estudos linguísticos em diversas áreas. Nesta época, começam a surgir estudos sobre o vocabulário sul-rio-grandense com o objetivo de registrar o léxico do falar do gaúcho. O primeiro vocabulário surge, conforme Laytano (1981), com Antônio Álvares Pereira Coruja em 1852, chamado Coleção de Vocábulos e Frases Usados na

Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, com expressões e vocábulos usados

pelos gaúchos. Coruja afirma que o “linguajar gaúcho” recebeu influências espanholas e indígenas.

Após a publicação desse vocabulário, mais três autores viriam a contribuir com os estudos sobre a língua do gaúcho: J. Romaguera Corrêa -1898, Roque Callage -1926 e Luiz Carlos de Moraes -1935. Esses vocabulários nascem com a preocupação de registrar aspectos desta linguagem. Em 1964, todos esses vocabulários são agrupados por Walter Spalding em um único volume. De acordo com Sturza (Ibid.), “a reunião dos vocabulários sul-rio-grandenses é do ponto de vista da produção intelectual um marco para a História das Ideias Linguísticas, sobretudo por sua importância no registro da lexicografia do vocabulário gaúcho”. A partir da reunião desses estudos, tem início uma diversidade de pesquisas linguísticas sobre a linguagem e o modo de falar gaúcho, o que a autora denomina de “Discurso Fundador do Linguajar Gaúcho”.

São obras publicadas no século XIX a partir de uma linguagem do Rio Grande do Sul e que são demarcadas pela especificidade regional que as constitui. É neste momento que se dá a fundação de um modo de dizer sobre a língua do gaúcho. Essa língua se distingue, sobretudo por uma gama de léxicos regionais, de uso específico do gaúcho, constitutiva da heterogeneidade da Língua Portuguesa do Brasil.

Enquanto discurso, essas obras instrumentalizam a língua portuguesa pela diferença. Logo, buscamos interpretar o modo como se constituiu, nesse espaço regional, uma discursividade sobre a Língua Portuguesa falada no Rio Grande do

Sul, de modo a compreender como esse conhecimento linguístico produzido a partir dos primeiros registros escritos sobre o modo de falar do gaúcho contribuiu para a constituição da linguagem gauchesca.

Através desses estudos, conforme Sturza (2006) origina-se um discurso sobre a língua, que busca, através das influências linguísticas na linguagem gauchesca, caracterizar uma identidade e uma forma de expressar-se que permite a conservação da cultura gaúcha e que constitui um discurso específico que assinala o tipo social do homem gaúcho e a linguagem por ele utilizada, tornando-se um símbolo identitário de toda uma região.

Esses estudos abrem novas perspectivas, consubstanciam hipóteses, imprimem outros sentidos para os estudos dialetológicos que então começavam a surgir no Rio Grande do Sul, trazendo subsídios para os registros da própria língua portuguesa falada no Brasil.

Essas obras foram mobilizadas por considerar o discurso sobre a língua inclusive como uma produção de conhecimento linguístico que destaca uma língua do gaúcho, na qual os sul-rio-grandenses nela reconhecem e definem sua identidade enquanto sujeitos históricos e habitantes de certo espaço geográfico periférico e tido por bárbaro, nos primórdios da ocupação e colonização do território.

Esses estudos sobre o gaúcho e sobre o seu falar apresentam uma rica diversidade de referências, descrições e representações de um sujeito social que foi convertido em personagem: o gaúcho-rio-grandense, seu modo de vida, suas características físicas e psicológicas, seu ambiente sociocultural e sua história, além de possibilitarem uma representação da linguagem a que nos propomos estudar, funcionando como um espaço de produção do conhecimento linguístico.

De acordo com Bunse (1969, p. 9), estes vocabulários nascem de uma preocupação em registrar aspectos do “linguajar gaúcho”, pois as características da vida social campeira, representadas pela figura do gaúcho, contribuíram para criar uma situação peculiar que se reflete numa literatura regional, e que, em muitos aspectos, difere da dos outros estados do Brasil com suas tradições culturais bem mais antigas, naturalmente teve reflexos na língua, e não faltam estudiosos que chamam a atenção sobre o “linguajar do gaúcho”.

Pelos estudos linguísticos que reúnem, esses vocabulários são considerados a partir de uma perspectiva sociolinguística como referência para os estudos sobre a variedade linguística do português do Rio Grande do Sul. São fundamentais para a

história social e cultural do Estado, sobretudo por sua importância no registro da lexicografia regional. Fundam um discurso sobre a língua e significam na constituição de uma linguagem gauchesca.

Consideramos essas obras significativas para os estudos da linguagem na medida em que contribuem para a instauração de uma discursividade sobre a língua e por consequência parte do que entendemos por linguagem gauchesca. Essas obras são tomadas como fontes de registros linguísticos importantes para a caracterização dessa linguagem.

Essa discursividade a respeito da linguagem gauchesca vai se firmando pela existência de uma sequência de trabalhos, que passa a orientar e a determinar, em especial, um lugar de produção nos estudos linguísticos do Rio Grande do Sul. Esses estudos se destinam, sobretudo, a afirmar o regionalismo como espaço de pesquisa e reflexão (STURZA, 2006, p. 3) e constituem discursos sobre a língua e sobre o sujeito gaúcho que neles se representa. São, portanto, discursos que institucionalizam uma língua, um léxico como de um ou de outro lugar, revelando nuances de sentidos, diferenças e aproximações, compondo, juntos, a heterogeneidade constitutiva dessa língua (MEDEIROS; PETRI, 2013, p. 51).

São obras de grande importância pela produção de um saber sobre a língua, referendado no discurso da tradição, que reúne um conjunto de textualidades que constituem a linguagem gauchesca. A linguagem, nesse caso, se constitui como um conjunto de referência e de símbolos do que é o gaúcho enquanto tipo social.

Essas obras são consideradas como instrumentos linguísticos específicos para dar conta de descrever a língua portuguesa falada no Rio Grande do Sul. Esses instrumentos linguísticos trazem para dentro da língua os sentidos que lhe são dados na sua relação com o real, com a história. Essa relação significa a própria existência de um discurso sobre o gaúcho, sobre seu linguajar (Ibid., p. 19). Como coloca Petri (2009), trata-se da manutenção de saberes, da manutenção de uma história, de uma identidade dita como “gaúcha”, via especificidade linguística.

É importante trabalharmos, neste momento, com a definição de instrumentos linguísticos. Para tanto, buscamos suporte na História das Ideias Linguísticas, que inscrita em uma visão histórica das Ciências da Linguagem, concebe como

instrumentos linguísticos – gramáticas, dicionários, manuais, normas, etc. Segundo

Guimarães (1996, p. 127), “o estudo das ideias linguísticas no Brasil tem entre seus objetivos abordar a produção de tecnologias como dicionários e gramáticas que se

fazem no Brasil desde o século XVI”. Assim, de acordo com Nunes (2008), “os instrumentos linguísticos constroem uma unidade para a língua: seja a língua utilizada na catequese e colonização, o tupi romantizado do século XIX ou a língua nacional”.

A construção dessas tecnologias é parte da maneira como nossa sociedade se constitui historicamente, nos elementos de nossa identidade. Mais do que isso, esse é um lugar privilegiado de observação da forma como essa sociedade produz seu conhecimento em relação à nossa realidade (ORLANDI, 2002, p. 125).

Desse modo, um instrumento linguístico é o dispositivo que serve como elemento de referência para orientar uma língua, ou seja, a sistematização de um conhecimento produzido. Os estudos linguísticos no Rio Grande do Sul nascem pela diversidade linguística, produzindo-se um saber metalinguístico regional, mas que é também parte do processo de gramatização da língua portuguesa do Brasil.

Essa linguagem gauchesca ganhou um espaço institucionalmente constituído, estando cristalizada em inúmeras publicações de dicionários regionalistas, em vocabulários de termos gaúchos, ou ainda em glossários específicos que acompanham as obras (PETRI, 2008, p. 15).

A compreensão desse objeto de reflexão exige, por si, o estabelecimento de procedimentos metodológicos específicos. Trata-se de procedimentos que investigam a gramatização das línguas, isto é, a sua instrumentação por meio de dicionários, vocabulários, enciclopédias, gramáticas. (Ibid.p. 123).

Com isto tem-se que, ao tratar as ideias linguísticas, tratamos a questão da língua, da produção de um conhecimento sobre ela, assim como da produção de instrumentos tecnológicos (gramáticas, dicionários) a ela ligados e sua relação com o povo que a fala (ORLANDI, 2002, p. 124).

Estamos tratando de instrumentos linguísticos marcados pela especificidade de um grupo social, o que leva a língua, nesse caso, a funcionar como expressão maior de um grupo social tão específico (PETRI, 2009). Por isso, é necessário pensarmos nesses instrumentos que contribuíram para o processo de constituição e conhecimento do modo de falar gaúcho. Esses instrumentos linguísticos carregam as representações das relações sociais que se efetivam num espaço bem determinado: o campo (a campanha) gaúcho (Ibid., p. 30).

A produção desses instrumentos linguísticos, afeta a língua na medida em que organiza um conhecimento e propõe uma nova perspectiva de pensar essa língua.

Assim, tais obras rompem com a produção que até então havia sido feita na área da dialetologia regional e produzem um conhecimento novo sobre a língua, a partir da organização dos espaços de produção linguística da época. Do mesmo modo, os estudos linguísticos, na maneira como se institucionalizam e refletem sobre o ensino da língua, têm parte fundamental na produção dessa identidade de que estamos falando e que produzem, pela ciência e pela língua, o imaginário da sociedade nacional (ORLANDI, 2002, p. 17). Este aspecto linguístico, que trata da identidade linguística na constituição do Brasil, acabou sendo a base de um projeto mais amplo que resultou na exploração articulada da história da língua e do saber produzido sobre ela (Ibid.).

Tem-se então, a origem de uma produção de conhecimento linguístico a respeito do falar regional, resultando na produção de diferentes modos de dizer que foram constituindo outra materialidade linguística com seus diferentes discursos e diferentes modos de significar.