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GAÚCHO, IDENTIDADE E A INVENÇÃO DE UMA TRADIÇÃO

Brignol (2002) defende que a partir da construção social da identidade deste gaúcho cristalizado, que anda a cavalo, usa bombacha e toma chimarrão, foram resgatadas e inventadas tradições que passaram a integrar a cultura regional.

Por tradição inventada entende-se, de acordo com Hobsbawm (1997, p. 09), como sendo “um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”. “São reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória” (Ibid. p. 10). Essa tradição é reproduzida e dada voz no imaginário regional, nas representações do regional. Seja o gaúcho considerado um símbolo regional, configurado como um tipo social representativo do Rio Grande do Sul que reconhece na constituição de uma linguagem um conjunto de representações verbais e não verbais que expressam ou significam o sujeito gaúcho pela instauração de um imaginário sobre o gaúcho ou pelo que a designação da palavra gaúcho remete e

refere atualizando-se. Reiteramos que muito de sua constituição é esclarecida sempre a partir deste tipo gentílico que teve suas características e costumes escolhidos e retomados para a instauração de tradições históricas reafirmadas pelo modo gaúcho de expressar a sua língua. Tradições essas, muitas vezes, inventadas para a manutenção desse símbolo ou o que a ele se remete.

O gaúcho reúne em si marcas dos vários mundos presentes nesse espaço, por ser um híbrido, um fronteiriço, resultado da mescla e de um contato permanente com o outro. Acreditamos que se possa pensar o gaúcho hoje como uma necessidade de permanência e de resistência identitária regional que a identifica e lhe confere um caráter excepcional. Esse gaúcho está ligado, assim, ao imaginário e às representações sociais que remetem à construção de uma identidade regional, alguém em quem as pessoas possam se referenciar e processar uma identificação (MACIEL, 2002, p. 198-199).

Segundo Pesavento (1993, p. 18), a construção de uma identidade regional procura “recuperar do passado elementos nobilizantes que configurem um quadro de tradições gloriosas, das quais todos se orgulham de partilhar e deter a herança”. Para ela, não é à toa que a Revolução Farroupilha tenha se estabelecido como carro‐chefe de uma historiografia dita tradicional, que não se baseia na pluralidade de vozes, mas na afirmação de valores estabelecidos por um grupo privilegiado e que se socializam para o conjunto da sociedade.

A Revolução Farroupilha teve incidentes de bravura, muitas batalhas, heróis, incidentes rocambolescos (a fuga de Bento...), gestos românticos (Garibaldi e Anita), inusitados (o barco Seival arrastado por terra até a Barra do Tramandaí) ou pitorescos (a lenda da velhinha, do cavalo e do muito falado Bento Gonçalves). De quebra, o Rio Grande lutava por uma causa justa – contra a opressão do Império –, e não foi derrotado na guerra, o que ressaltava seu valor militar. Mas – o que é mais importante – o incidente configura um dos principais ingredientes para o estabelecimento de uma identidade: a coesão social (Ibid., 1993, p.19).

No presente trabalho, consideramos a produção de um discurso sobre o gaúcho como um processo que se constitui de dizeres sobre esse tipo social e que se transformam na história e na memória coletiva. Por isso consideramos o discurso

sobre como um lugar de memória (conjunto de dizeres do e sobre o gaúcho) que

guarda traços e vestígios da memória. A noção de discurso sobre proposta por

Orlandi (1990, p. 37) é a de que ele funciona como “uma das formas cruciais da

o ‘discurso sobre’ é um lugar importante para organizar as diferentes vozes (dos discursos de)”, caracterizando-se então como lugar próprio para o funcionamento da polifonia.

Essas representações de gaúcho, presentes nos mais diversos discursos,

entre eles, o historiográfico, o nativista, o literário, o tradicionalista, trazem representações sobre o sujeito gaúcho enquanto integrante de determinado grupo social. Desse modo, o cruzamento desses discursos nos mostra a produção de um discurso sobre o gaúcho atrelado a um sentimento de pertencimento a um lugar, a uma cultura, a um modo de ser.

O discurso sobre tem ainda características próprias de um discurso que produz efeitos de sentidos contraditórios, pois, ao mesmo tempo em que ele funciona na recuperação de uma memória (organizando elementos próprios do

discurso de26), ele corre o risco de reduzir essa memória a um acúmulo de informações sobre o passado. Se, por um lado, o discurso sobre o gaúcho atesta sua fundação; por outro, se estabelece como um lugar de interpretação, pois o

discurso sobre já constitui um gesto de interpretação sobre o que representa ser

gaúcho em um determinado momento sócio histórico. O fato é que estamos diante do discurso sobre o gaúcho, como já dissemos, produzido pelo outro (PETRI, 2009), do lugar do outro e que produz efeitos de sentidos. Podemos observar na constituição desse discurso, a presença de alguém que toma a voz do outro, ou seja, temos nesse discurso a presença de uma voz escrita com um sentido, o outro que toma a voz do gaúcho e fala pelo gaúcho constituindo sentidos e como Ludmer

(2012) referindo-se a uma linguagem nos diz: “la voz ‘gaucho’ en la voz del

gaucho27”.

El uso de la voz “gaucho” en la voz del gaucho implica un modo determinado de construcción de esa voz. El género explora el sentido de la palabra “gaucho” sometiéndola a reglas precisas: marcos, límites, interlocuciones, tonos, distorsiones y silencios. El sentido de esa voz es su construcción y a la vez su interpretación (Id., 2012, p. 39)28.

26

Segundo Petri (2009, p. 10) o discurso de é o “discurso produzido por um gaúcho que viveu a história e contribuiu para a construção da figura mitológica que hoje conhecemos, aquele sujeito rude, rural, dito como ‘não civilizado’ tem uma ‘história’ que é contada pelo outro”.

27

A voz gaúcha na voz do gaúcho.

28 O uso da voz “gaúcha” na voz do gaúcho implica um modo determinado de construção dessa voz.

O gênero explora o sentido da palavra “gaúcho” submetendo-a a regras precisas: marcas, limites, interlocuções, tonalidades, distorções e silêncios. O sentido dessa voz é sua construção e ao mesmo tempo sua interpretação.

Essa voz constituída por um sentido nos leva a refletir sobre que lugar deve ocupar esse sujeito gaúcho reconhecido e definido a cada vez que essa voz é produzida em uma situação discursiva determinada. “Cada vez la voz del gaucho “habla” o “canta” en los textos y cada vez ocupa el lugar que se le asigna en la alianza” (Ibid., p. 140)29

. Tal aliança se configura como uma relação de forças poéticas e políticas entre vozes e sentidos, produzida por enunciados do gênero. Esses enunciados funcionam na forma de um discurso sobre que representa o “ser gaúcho” em um determinado momento sócio histórico.