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A partir desta imagem de gaúcho que vem se construindo ao longo do nosso trabalho, trazemos à baila o conceito de Formação Imaginária da Análise de Discurso. O estabelecimento desse diálogo teórico se torna necessário para que possamos apontar indícios sobre o modo como esse sujeito gaúcho está representado no discurso regional.

O conceito de Formação Imaginária30 (FI) seria aquele que viabiliza a

efetivação das relações sociais e que têm seu funcionamento garantido no discurso, enquanto um lugar onde se constituem as relações entre a situação (histórico-social) e a posição (ideológica) do sujeito, produzindo determinados efeitos de sentidos e silenciando outros.

Na Formação Imaginária os sentidos seriam produzidos por um certo imaginário, que é social e, por sua vez, resultado das relações entre poder e sentidos. E a ideologia seria a responsável por produzir o desconhecimento dos sentidos, através de processos discursivos observáveis na materialidade linguística.

As Formações Imaginárias são as relações de força e sentido que presidem todo o discurso: “a imagem que o sujeito faz dele mesmo, a imagem que ele faz de seu interlocutor, a imagem que ele faz do objeto do discurso. Assim como também o interlocutor tem de si, de quem lhe fala, e do objeto de discurso” (Orlandi, 2012, p. 15).

29 Cada vez que a voz do gaúcho “fala” ou “canta” nos textos e cada vez que ocupa o lugar que lhe é

atribuído na aliança.

30

Noção construída no interior do campo da Análise de Discurso de linha francesa e aqui tomada por nós para tratar da enunciação.

Esse imaginário que temos sobre o gaúcho é, então, uma representação que se construiu sobre o gaúcho e que não cessa de ser reinventada até hoje. Uma imagem de sujeito representativo do povo rio-grandense. Essa construção é realizada, tendo em vista um modelo ligado profundamente a terra, à defesa das fronteiras.

Afirmação de uma identidade que viria a caracterizar esse tipo humano, tanto na sua representação gentílica – do indivíduo ligado a terra – quanto do substrato ideológico que permeia o imaginário social (OURIQUE, 2007, p. 39). O sujeito gaúcho é, assim, fruto de múltiplas identificações, sejam elas imaginárias e/ou simbólicas.

Quando são feitas referências a um “tipo”, seja ele chamado de “característico” ou “social”, está-se referindo a um modelo, uma imagem cristalizada, fruto de um processo redutor que, ao generalizar determinados atributos (sejam eles imaginários ou não) simplifica a complexidade cultural do grupo ao qual esse “tipo” concerne, reduzindo a expressão identitária desse grupo a uma figura a quem são atribuídas determinadas características tidas como “definidoras” ou “identificadoras” do grupo e condensando, assim, ideias relativas a ele (MACIEL, 2001, p. 246).

Essa identidade se constrói em torno da figura símbolo do gaúcho, tal como se conserva no imaginário coletivo, instaurando o ideal construído no romantismo de uma comunidade livre, que vive no espaço de uma tradição comum (OURIQUE, 2007, p. 40-41). Quando falamos em gaúcho, podemos estar nos referindo ao homem ligado ao pastoreio ou aos nascidos no Rio Grande do Sul. Mas também pode ser uma figura emblemática, relacionada ao imaginário social da região. Ou seja, uma figura na qual são projetados valores e representações sociais que criam uma identidade comum a todos esses sujeitos: “ser gaúcho”, pretendendo sintetizar e expressar uma determinada imagem dos habitantes da região, transmitindo ideias e valores sobre como seriam (ou deveriam ser) os gaúchos. [...] A figura do gaúcho como representativa de uma identidade regional é elaborada a partir de uma busca pelo que seria o denominador comum, procurando o que diferencia, perdura e reúne (MACIEL, 2000, p. 79).

Tal imagem que consolida o homem gaúcho contribuiu para a formação de um modo gauchesco que expressa a identificação de cada sujeito no espaço sul-rio- grandense, efetivamente num espaço bem determinado: o campo (a campanha) gaúcho. Esse sujeito representa um tipo social resgatado nas suas origens, um

gaúcho do campo, que vive em seu mundo gauchesco e que representa pela linguagem o gaúcho e a história do Estado.

O sujeito se constitui, se define e se identifica através das línguas-culturas. Desse modo, o gaúcho se constituiu como legítimo representante de todo um grupo social. Essa visão identitária sobre o gaúcho histórico compõe o imaginário social

aceito pela comunidade gaúcha.É um modo de se ver como gaúcho.

A imagem de uma pátria unificada também é constitutiva do imaginário gaúcho, bem como o imaginário do brasileiro pernambucano ou amazonense, muito embora ela não seja a única. É a partir dessa imagem de que todos são iguais que irrompe o diferente, porque o gaúcho sabe-se diferente do pernambucano (e vice-versa): é o diferente emergindo no interior do mesmo. Nesse espaço de constituição linguística e cultural, alternam-se relações de identidade e de alteridade entre os sujeitos que são brasileiros, mas que também são gaúchos, ou pernambucanos, ou baianos, etc. Trata-se de se pensar o que é geral e o que é local, de se pensar o nacional e o regional, na produção dos efeitos de sentido (PETRI, 2008, p. 12-13).

Sentidos que se expressam por meio de uma “figura” emblemática integrante

do imaginário local. Enquanto “figura”, ela condensa em si uma série de

representações, traduzindo e expressando ideias, valores e julgamentos (MACIEL, 2002, p. 193).

Para entendermos como esse sujeito está representado no discurso regional é necessário também trabalharmos com a noção de Formação Discursiva (FD) da Análise de Discurso, que corresponde a um domínio de saber, constituído de enunciados discursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regulando o que pode e o que deve ser dito (PÊCHEUX, 1995, p. 160). É através da relação do sujeito com a FD que se chega ao funcionamento do sujeito nesse discurso.

O sujeito é afetado pela Formação Discursiva em que se inscreve, com a qual ele se (des) identifica e que o constitui como sujeito. Desse modo, a FD representa o lugar de constituição do sentido. De acordo com Orlandi (1999, p. 13), na Formação Discursiva o sujeito adquire identidade e o sentido adquire unidade, especificidade, limites que o configuram e o distinguem de outros, para fora, relacionando-o a outros, para dentro. É a Formação Discursiva que vai regular as relações do sujeito com o discurso e com os outros.

O sujeito gaúcho está identificado com uma Formação Discursiva que Petri

(2009) em seu artigo “A produção de sentidos “sobre” o gaúcho: um desafio social

no discurso da história e da literatura” denomina como “gaúcha”. Uma FD que é

dominante, heterogênea, pois emergem representações diversas desse sujeito gaúcho, e dotadas de fronteiras móveis. Então o sujeito gaúcho se representa nessa FD.

A Formação Discursiva é, enfim, o lugar de constituição dos sentidos e da identificação do sujeito. “É nela que todo sujeito se reconhece [...] e, ao se

identificar, o sujeito adquire identidade” (Ibid., 1995). Pode-se afirmar, juntamente

com Pêcheux, que “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos de seu discurso, pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 1995, p. 161). E Pêcheux é mais específico ainda ao afirmar que “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito)” (Ibid., p.163).

Ao considerarmos esses discursos representativos da linguagem gauchesca e que analisaremos na parte metodológica sob a perspectiva dos estudos enunciativos, encontramos um locutor que está inserido num lugar social, o lugar do gaúcho e, portanto, um enunciador que enuncia a partir do ponto de vista do gaúcho. Assim, evidenciamos a construção da representação de um tipo social projetado no espaço regional e que serviu de base para a formulação de uma identidade perpetuada nos dias de hoje e reafirmada em diferentes expressões culturais.

A figura do gaúcho circula na sociedade em geral; serve como modelo de comportamento e ao reconhecimento do grupo; faz parte da vivência das pessoas, pois, mais do que uma figura abstrata através da qual as pessoas jogam com as representações sociais, o gaúcho é encarnado pelas pessoas através de um movimento denominado de “gauchismo” o qual, por meio de uma série de atividades, permite a vivência da figura tal como existe no imaginário local. Assim, a figura do gaúcho que faz parte do imaginário local pode ou não corresponder ao que é o gaúcho da campanha ou o gaúcho histórico, mas ela faz parte da representação que os habitantes da região têm do gaúcho e serve de modelo, o que implica a representação de si mesmos enquanto gaúchos e a que desejam que os outros tenham deles enquanto gaúchos (MACIEL, 2002, p. 193-194).

Temos assim, através dessas representações discursivas, a configuração de um tipo social que representa uma imagem do gaúcho e que emerge numa

construção imaginária evocada para significar a identidade desse sujeito gaúcho. De acordo com Oliven (2002, p. 167), a referência constante a elementos que evocam um passado glorioso, como a vida em vastos campos, a presença do cavalo e a virilidade e a bravura em enfrentar o inimigo fazem parte da construção social da identidade do gaúcho brasileiro.

Esses discursos sobre o gaúcho atribuem sentidos que constituem um imaginário sobre o sujeito gaúcho e se propõe à manutenção de costumes e tradições. A imagem do gaúcho que se configura nos discursos representados pelas textualidades que exemplificamos nas análises se mostra como uma imagem dispersa e fragmentada, reinventada incansavelmente no imaginário social sobre o gaúcho. Portanto, temos a desconstrução da evidência de que existiria somente uma única imagem de gaúcho presente nesses discursos.