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5 UM ESPAÇO ENUNCIATIVO: CONSTITUIÇÃO DE UMA LINGUAGEM

5.2 DA CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

À medida que fomos desenvolvendo este trabalho, fomos descortinando e elucidando questões sobre nosso objeto de pesquisa, o que nos levou a um recorte que evidenciou a repetição de um discurso constituído e sustentado a partir de três elementos simbólicos recorrentes na constituição da linguagem gauchesca: o amor,

se enuncia tanto nos dizeres na língua como sobre a língua e constitui um dizer (um acontecimento) sobre o gaúcho que é um dizer no qual a linguagem gauchesca se constitui e significa na sua especificidade.

Nosso corpus não se compõe somente de uma produção sobre essa língua que está organizada e sistematizada em gramáticas, dicionários, glossários ou obras literárias, mas compõe-se de um discurso na linguagem gauchesca, língua fluida, representada na escrita, no discurso publicitário. Procuramos demonstrar como cada textualidade constitui um acontecimento de linguagem, do mesmo modo que observamos o funcionamento da noção de língua pela enunciação em suas relações com as formas de identificação do sujeito gaúcho.

Assim, para este trabalho, tomamos como objeto de análise materialidades produzidas no que estamos considerando linguagem gauchesca, constituída e representada em diferentes textualidades do discurso publicitário. O corpus foi organizado a partir de recortes que evidenciavam a recorrência e a repetição de um discurso que se sustenta no “amor pelo Rio Grande, no orgulho e na tradição”, recorrentes em textos de um arquivo organizado ao longo dos quatro anos do doutorado. O discurso publicitário está identificado no conjunto de anúncios

publicitários impressos de jornais locais, da cidade de Santa Maria/RS – Diário de

Santa Maria e regional, da cidade de Porto Alegre/RS – Zero Hora – Correio do Povo, publicados e coletados durante as comemorações da Semana Farroupilha,

especificamente o dia 2053 de setembro dos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016 e que

corresponde a constituição de uma linguagem gauchesca, considerando o funcionamento da palavra tradição, bem como de duas formas linguísticas relacionadas à tradição: tradições e tradicional, nos enunciados recortados de textos que representam essa linguagem. A linguagem construída nos textos busca aproximar o leitor utilizando uma linguagem, que é um dizer sobre o Rio Grande do Sul e que remetem a uma questão territorial, do Estado, ao que é gauchesco.

A escolha pela data ocorreu em virtude da mesma ser uma data simbólica que rememora fatos da história do Rio Grande do Sul e de seus habitantes e reforça o tipo social gaúcho a cada 20 de setembro com coberturas que retomam todas as características que compõem essa identidade cultural heterogênea. O fato da

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Data comemorativa no Rio Grande do Sul em que é celebrada a Revolução Farroupilha, movimento ocorrido entre os anos de 1835 a 1845 e que teve origem na insatisfação de estancieiros do Rio Grande do Sul em relação à excessiva centralização política imposta pelo governo central e no sentimento de que a província era explorada economicamente pelo resto do Brasil.

escolha da palavra tradição como elemento constitutivo da linguagem gauchesca foi determinante para a seleção do corpus analisado. Ressaltamos que iremos considerar os anúncios publicitários enquanto textos, que reunidos formam um conjunto de textualidades, constituídos pelos enunciados escritos e pelas imagens que os integram.

Entre os textos publicados nessa data e nesses anos, foram escolhidos para compor nosso recorte analítico aqueles que apresentavam enunciados que traziam a palavra tradição escrita, e também aqueles em que os sentidos dessa palavra se faziam mais presentes, observando a frequência em que a palavra tradição se repetia nos textos, trazendo pela língua em funcionamento, o resgate de uma memória e a rememoração de um passado, atribuindo-lhes um significado, ou seja, aqueles em que a temática amor, orgulho e tradição eram mais recorrentes, permitindo, desse modo, analisar o movimento de sentido da palavra dentro desses textos que representam a linguagem gauchesca. Logo, constituímos um conjunto de textualidades composto por nove textos a partir dos quais desenvolvemos nossa análise.

Em relação aos anunciantes, os mesmos são constituídos por diferentes empresas de distintos ramos: indústria de alimentos, instituição bancária, empresas comerciais, casa de produtos gauchescos, a própria instituição do jornal, loja de materiais de construção, marcas de bebida e órgão do governo municipal.

Nesses textos observamos a presença de um enunciador que toma o lugar do sujeito gaúcho e que se apoia na linguagem gauchesca para comunicar e transmitir a sua mensagem. Logo, esse enunciador deixa de ser o sujeito jornalístico representado pelo jornal e que se dirige a um enunciatário específico, para assumir o lugar de enunciador gaúcho e enunciar da posição de gaúcho. O publicitário, enquanto sujeito jornalístico se coloca no ponto de vista do gaúcho, não do gaúcho sul-rio-grandense, mas do gaúcho como um tipo social que simboliza a identidade e a cultura regional.

O discurso publicitário reforça e enaltece o gaúcho que é rememorado e mantido pelos Centros de Tradições Gaúchas. É o gaúcho idealizado e celebrado na Semana Farroupilha. Por isso, nem todo sul-rio-grandense se caracteriza como o tipo social gauchesco representado nos textos publicitários, visto que muitos não cultivam as tradições específicas do gaúcho, como frequentar o CTG, andar pilchado (vestido com as roupas características do gaúcho) ou tomar chimarrão. A tradição,

quando estamos nos referindo ao Rio Grande do Sul, é designada para um tipo social específico que não coincide com o sujeito sul-rio-grandense, mas com aquele que especificamente cultua as tradições dentro das normas, do tradicionalismo gaúcho, que adota os hábitos da cultura local e alimenta pela rememoração esses hábitos. Assim, o discurso publicitário se apropria da palavra tradição para rememorar uma data comemorativa ao tipo social, ao gaúcho e à cultura gauchesca para simbolizar todo um universo que significa o que é ser gaúcho. Dessa forma, podemos dizer que 20 de setembro é uma data que celebra muito mais que a Revolução Farroupilha. Celebra uma relação identitária do sujeito gaúcho com o seu lugar, a sua terra, a sua cultura com a sua identidade regional.

Portanto, as questões que este trabalho propõe estão ancoradas na Semântica do Acontecimento (conceito a ser desenvolvido no próximo item) e nas reflexões sobre como a linguagem gauchesca, representada em diferentes textos, em um mesmo espaço de enunciação, e constituída a partir do funcionamento da palavra tradição nesta linguagem, pode significar (designar) diferentemente. Bem como, explicitar de que maneira a palavra tradição determina esse sujeito enunciador gaúcho, a partir de uma memória na qual se organizam e projetam

relações de sentido. Assim, pretendemos analisar como a palavra tradição se

articula e se reescreve estabelecendo distintas relações com outras palavras e com outros enunciados, a fim de compreender o que designa e que sentidos ela mobiliza no conjunto de textualidades que estamos analisando.