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O coletivo: a síntese (im)possível

CAPÍTULO 4. Imaginário e simbólico: labirintos e

4.1 O imaginário e o social-histórico

4.1.2 A lógica dos magmas

Castoriadis afirma que o indivíduo é um ser de representação e de invenção, e, em certo sentido, mais louco do que racional; “suas representações a todo instante e no decurso de sua vida – ou melhor, o fluxo representativo (afetivo-intencional) que um indivíduo é – são primeiro e antes de mais nada a forma de um magma” (CASTORIADIS, 1995, p. 365). Mas, que forma é esta?

A lógica tradicional – conseqüentemente, a linguagem comum – parece desprovida de recursos para descrever a realidade psíquica. A não-fixidez das representações as torna indefiníveis em termos dos princípios lógicos da identidade, não-contradição e terceiro excluído. As representações psíquicas ligam-se de muitas maneiras, mas são sempre marcadas pela relação de remissão: “toda representação remete a outras representações... as engendra ou pode fazê-las surgir” (CASTORIADIS, 1995, p. 367). Ainda que seja assim, a remissão entre elas escapa à identidade, inclui o terceiro (excluído), arrebenta a não-contradição; é um modo de ser estranho à tradição “conjuntista-identitária” 10, conforme Castoriadis. A ontologia da determinação produz uma desinterrogação sobre a indeterminação do ser, que nesse âmbito perde completamente o sentido. Desta insuficiência na elucidação dos processos imaginários nasce a proposta castoriadiana de uma lógica dos magmas.

O termo magma designa o modo de ser e a organização lógico-ontológica emergente da relação entre o psíquico e o social. A irredutibilidade lógico-biológica do psiquismo humano combinada à delinqüência das concepções sociais racional-funcionais motiva Castoriadis a propor uma maneira diferente “de pensar para poder compreender a natureza e o modo de ser

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Tradição “conjuntista identitária” é uma referência lógica formal tradicional, que, na concepção de Castoriadis, inclui a teoria dos conjuntos (CASTORIADIS, 2002, p. 407 e ss).

específico desses domínios, o psíquico de um lado, e o social-histórico de outro” (2002, p. 408).

A lógica dos magmas é a tentativa de fundar uma alternativa ao pensamento centrado no esquema primordial da lógica conjuntista-identitária: a determinidade. O resgate das dimensões caos e cosmos, presentes tanto na tragédia grega quanto na filosofia pré-socrática, orientam Castoriadis na busca pelos fundamentos de uma ontologia do social-histórico, e coincidem com “a descoberta do imaginário e seu papel na instituição da sociedade” (MACIEL, 1988, p. 147). Na filosofia ocidental, a presença do cosmos e a ocultação do caos são dominantes desde Platão; esta preferência pelo par determinação e cosmos revela uma decisão ontológica escondida sob as categorias tradicionais da lógica (CASTORIADIS, 2002, p. 415). O caos desaparece sob o véu da determinidade do ser, numa valência ordenadora do mundo que tem reflexos na dimensão política11.

O poder da lógica conjuntista-identitária explica-se pela necessidade funcional-instrumental das instituições sociais. O funcionamento de toda sociedade é dependente da determinação e da identidade para fazer presentes os significados socialmente instituídos e orientar o fluxo do imaginário radical na direção da instituição, das significações imaginárias sociais. Seria, entretanto, inaceitável pensar a determinação como dada de uma vez por todas, em especial no processo de instituição da sociedade, na sociedade instituinte, que é o processo tipicamente político em que normas, valores, linguagem, instrumentos, etc. são postos, instituindo o social.

Tais artefatos institucionais nunca estão postos de uma vez por todas, nunca são em última instância determinados ou necessários; são criações social-históricas da atividade imaginária da sociedade. Deve-se evitar a confusão entre a dimensão conjuntista-identitária necessária à instituição e a própria instituição da sociedade porque:

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A atividade política tem existência na sociedade como atividade instituinte, e é entendida como auto-posição do ordenamento social por uma sociedade. A democracia grega é o “gérmen” que define o âmbito da atividade política: “Entendo por política não intrigas de corte, nem lutas entre grupos sociais que defendem seus interesses ou posições (coisas que ocorreram em outros lugares), mas uma atividade coletiva cujo objetivo é a instituição da sociedade enquanto tal. É na Grécia que encontramos o primeiro exemplo de uma sociedade deliberando explicitamente acerca de suas leis e modificando-as. Em outros lugares, as leis são herdadas dos ancestrais, ou são dádivas dos deuses, quando não do único deus verdadeiro; mas não são estabelecidas, isto é, criadas pelos homens após discutirem e confrontarem, coletivamente, as leis boas e más” (CASTORIADIS, 2002, p. 299).

[...] a instituição da sociedade nunca pode reabsorver a psique enquanto imaginação radical – essa é uma condição positiva da existência e do funcionamento da sociedade. A constituição do indivíduo social não elimina, e não pode eliminar a criatividade da psique, sua auto-alteração perpétua, o fluxo representativo como emergência contínua de representações diferentes. (CASTORIADIS, 1995, p. 364).

Mas, a relação de inerência do humano ao social-histórico deixa-se antever no quid pro quo da instituição recorrente de ‘coisas’ e indivíduos sociais pela sociedade:

A instituição social-histórica da ‘coisa’ e de sua percepção é homóloga à instituição social-histórica do indivíduo, não somente na medida em que só há ‘coisa’, e tal coisa, para os indivíduos, mas também na medida em que o indivíduo, como tal, é uma ‘coisa’ cardial, necessariamente instituída também como tal pela sociedade. (CASTORIADIS, 1995, p. 365).

Considerando a afirmação de que o indivíduo é fluxo representativo afetivo-intencional, antes de mais nada, sob a forma de um magma (CASTORIADIS, 1995, p. 365), entende-se a inequívoca presença do imaginário radical sob o imaginário social, sustentando a criação na instituição, sem eliminar seu caráter racional-funcional. A lógica dos magmas objetiva oferecer suporte à tese da instituição imaginária da sociedade como criação, propondo, sob a forma fluida do magma, sua potencialidade na assunção de formas organizadas. Para além das tentativas de formalização (CASTORIADIS, 2002, p. 416-428), um magma pode ser entendido como uma massa produtora de formas organizáveis que nunca é redutível às formas organizadas que produz ou potencialmente virá a produzir; não-reconstituível por estas mesmas formas que virtualmente contém e produz, um magma representa um tipo de indeterminação habilitada a instaurar a determinação, sem reduzir-se a ela.

Um magma é aquilo de onde se pode extrair (ou: em que se pode construir) organizações conjuntistas em número indefinido, mas que não pode jamais ser reconstituído (idealmente) por composição conjuntista (finita ou infinita) destas organizações. Dizer que tudo o que se dá permite que daí se extraia (ou aí se construa) organizações conjuntistas, é o mesmo que dizer que se podem sempre fixar, no que se dá, termos de referência (simples ou complexos). (CASTORIADIS, 1995, p. 388-9).

A lógica dos magmas assenta sobre a “inerência recíproca” da auto-criação, remete à circularidade inerente a tudo que se auto-institui. É uma lógica da auto-posição enquanto negação de uma origem transcendente, que tenta contornar o problema ontológico da anulação

da criação pela determinação, propondo um fundo de indeterminação (caos, sem-fundo) para fugir da ameaça de uma circularidade como eterno retorno do mesmo.

A imersão completa num universo conjuntista-identitário impediria uma ruptura qualquer com o já dado: “um sujeito completamente inserido em um universo conjuntista-identitário, longe de poder modificar qualquer coisa nele, não poderia sequer saber que está preso a tal universo” (CASTORIADIS, 2002, p. 435). A identidade e a determinidade sufocam toda imaginação e criação, instaurando a mais completa heteronomia. Daí a necessidade de outra lógica para fundar o imaginário e a instituição, que englobe e exceda a lógica identitária, sem o que nada poderia adquirir outra forma ou ser organizado diferentemente.

O argumento de Castoriadis é cristalino: “... tudo que pode efetivamente ser dado – representação, natureza, significação – é segundo o modo de ser do magma”. O fato de a instituição social-histórica do mundo ser também instituição da lógica identitária, organização conjuntista num primeiro estrato, não a esgota; “ela é sempre também e necessariamente instituição de um magma de significações imaginárias sociais” (CASTORIADIS, 1995, p. 390).

O modo da inerência recíproca marca o pensamento de Castoriadis e o habilita a construir problemas que põem em questão o pensamento herdado conídico12. Este conceito é estratégico para sua reflexão porque possibilita atribuir caráter ontológico ao tempo, no sentido forte de fazer-ser. “A temporalidade é pensada como fonte última ou horizonte da criação” (CIARAMELLI, 1989, p. 96). Descartar a idéia de uma origem transcendente atemporal é colocar a criação humana como equivalente de uma temporalidade originária: o ato criador é um ato inaugural, o que se deve à qualidade específica de tudo que é pelo tempo, ao caráter próprio do tempo. O tempo é inseparável daquilo que se faz pelo tempo, “não há tempo puro” (CASTORIADIS, 1995, p. 229). Conceber o tempo abstratamente é pensá-lo como iteração do idêntico, um eterno vazio equivalente a uma paralisação, a própria negação do tempo:

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Em francês “ENSsembliste-IDentitaire” dá origem ao acróstico “ensidique”, cunhado por Castoriadis; a tradução para o português, por analogia ao acróstico de “CONjuntista-IDentitária”, resultou em “conídico” (ver CASTORIADIS, 2007).

O tempo, como ‘dimensão’ do imaginário radical (portanto, como dimensão tanto da imaginação radical do sujeito enquanto sujeito, como do imaginário social-histórico) é emergência de figuras outras (e, especialmente, de ‘imagens’ para o sujeito, de eidé social-históricas, instituições e significações imaginárias sociais, para a sociedade). É alteridade-alteração de figuras e só é originária e nuclearmente isso. (CASTORIADIS, 1995, p. 229).

O imaginário aparece como uma abertura no tempo histórico, como uma eterna possibilidade do novo. A tese sobre a instituição imaginária da sociedade pode ser entendida como uma reivindicação de erigir a atividade humana (enquanto ação instituinte da sociedade) em equivalente da temporalidade originária. A relação de inerência do humano ao social-histórico presentifica o sentido profundo das escolhas humanas, enquanto escolhas fundadoras da vida social, a ação humana como criação coletiva social-histórica é tomada na acepção política (forte) do termo.

Minha meta é que se passe de uma cultura da culpa para uma cultura da responsabilidade[...] O que tenho em vista são indivíduos capazes de assumir tanto suas pulsões quanto o fato de que pertencem a uma coletividade que somente pode existir enquanto coletividade instituída, que não pode existir sem leis, nem por acordo milagroso das espontaneidades[...] é porque deus está morto – ou porque nunca existiu – que não se pode fazer tudo. É porque não há outra instância que nós somos responsáveis. (CASTORIADIS, 2002, p. 107).