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O coletivo: a síntese (im)possível

CAPÍTULO 4. Imaginário e simbólico: labirintos e

4.1 O imaginário e o social-histórico

4.1.4 Práxis e Projeto da Autonomia

O retorno ao problema do social-histórico, agora pela via do projeto da autonomia, sinaliza uma questão incontornável: a questão da práxis. O problema de elucidar a transformação social no sentido de superar o estado de heteronomia, aclarar a ação política no sentido já citado de uma “atividade coletiva cujo objetivo é a instituição da sociedade enquanto tal” (CASTORIADIS, 2002, p. 299). Uma vez dentro do edifício castoriadiano, é de se esperar que uma solução teórica para o problema da heteronomia – a ambição de se colocar sobre o social-histórico resolvendo de uma vez por todas o problema – seja rechaçada. A tentação determinista é deixada de lado, neste e em todos os casos.

O pensamento de Castoriadis alinha a atividade humana criadora ao fazer-ser relativo a uma temporalidade originária; claramente separadas estão as atividades do fazer racional- funcional, posto que miméticas, combinatórias e não criativas stricto sensu. O caso da técnica é exemplar. Apoiada sobre um saber teórico, dado antecipadamente, que desenha um horizonte de previsibilidade para a ação, a atividade técnica se limita a colocar na realidade os meios dos fins visados, e estabelecer as causas que levariam aos resultados desejados em função do saber e em conclusão dos raciocínios que permite (CASTORIADIS, 1995, p. 91).

A técnica em si mesma se diferencia das técnicas particulares por não ser uma atividade racional, é um projeto inscrito na história, cujo futuro é impossível antecipar. Enquanto projeto, a técnica é a atividade humana que corresponde “... ao enunciado programático de Descartes: chegar ao saber e à verdade para ‘nos tornarmos mestres e possuidores da natureza’”, que é “a mais bela e concisa formulação do espírito do capitalismo...” (CASTORIADIS, 1995, p. 94; CASTORIADIS e COHN-BENDIT, 1981, p. 38).

A autonomia é também um projeto, posto na história pela “questão política par excellence” do juízo e da escolha entre diferentes instituições da sociedade, da existência de uma sociedade instituinte (CASTORIADIS, 2002, p. 298). A atividade humana inscreve-se definitivamente neste projeto sob a forma da práxis: “modalidade do fazer humano” que ao se distinguir do fazer em si, é “... atividade que considera o outro como ser podendo ser autônomo, e tenta ajudá-lo a aceder à sua autonomia” (CASTORIADIS, 1989, p. 494).

A aproximação castoriadiana é original, na práxis não se distinguem meios e fins. Há uma “relação interna entre o que é visado (o desenvolvimento da autonomia) e aquilo por que é visado (o exercício da autonomia), são dois momentos de um mesmo processo” (CASTORIADIS, 1995, p. 95). Se a técnica permite destacar a finalidade e o término da ação de sua mediação, a práxis é atividade sem fim, não existe para ela um limite derradeiro, pois ela não se deixa discriminar por um estado ou característica. Seria impossível reduzir a práxis ao cálculo, porque o cálculo é oposto à autonomia. Como atividade consciente, a práxis se apóia num saber fragmentário – porque não pode haver teoria exaustiva do homem e da história – e sobre um saber provisório – porque “faz surgir constantemente um novo saber... ao fazer o mundo falar numa linguagem ao mesmo tempo singular e universal” (CASTORIADIS, 1995, p. 95). Progridem em condicionamento recíproco elucidação e transformação do real, esta dupla progressão justifica a práxis, porém, a ação precede logicamente a elucidação, porque a última instância é a “transformação do dado” (CASTORIADIS, 1995, p. 96).

A impossibilidade de uma teoria absoluta se evidencia pelo caráter do saber que está em jogo. Não se trata de uma deficiência provisória superável por redução progressiva. A práxis é histórica, não se coloca como um horizonte, mas como um trabalho – o trabalho do projeto da autonomia. Esta “lucidez relativa” não significa precariedade, ou algo na falta de coisa melhor: a práxis é “... o outro lado de sua substância positiva, seu próprio objeto é o novo, o que não se deixa reduzir ao simples decalque materializado de uma ordem racional pré- constituída, em outros termos, o próprio real, e não um artefato estável, limitado e morto” (CASTORIADIS, 1995, p. 96). O sentido do projeto da autonomia define-se como:

[...] uma práxis determinada, considerada em suas ligações com o real, na definição concretizada de seus objetivos, na especificação de suas mediações. É a intenção de uma transformação do real, guiada por uma representação do sentido dessa transformação, levando em consideração as condições reais e animando a atividade. (CASTORIADIS, 1995, p. 96).

A forma com que a atividade operária se insere na organização capitalista é exemplar manifestação do projeto da autonomia16 na sociedade. Castoriadis identifica uma contra-

16

No texto de referência, “Teoria e projeto revolucionário” (Capitulo II de “A instituição imaginária da sociedade”), Castoriadis adota o termo “projeto revolucionário”, e não “projeto da autonomia”, mas os termos

gestão na organização dos processos de trabalho por “grupos informais”, em oposição à gestão oficial estabelecida pela direção. Nas fases de crise social, este mesmo fenômeno se torna agudo, e os operários passam a reivindicar aberta e diretamente a gestão da produção e tentam realizá-la – como aconteceu nos períodos revolucionários na Rússia, na Hungria, na Espanha, etc. (CASTORIADIS, 1995, p. 100). Esses fenômenos encarnam algo mais que o conflito interno à fábrica, pondo em questão a estrutura social fundada sobre a divisão do trabalho em dois momentos – direção e execução.

O caráter profundo da produção capitalista é o que se revela por estas tendências. “O sentido que elas encarnam define, para além da produção, um tipo de antinomia, de luta e de superação desta antinomia, essencial para a compreensão de um grande número de outros fenômenos da sociedade contemporânea” (CASTORIADIS, 1995, p. 101). A práxis dos trabalhadores é uma atividade de busca, cujo intento é a transformação da vida por meio do trabalho. Concretizar a gestão da organização pela coletividade dos que nela trabalham aponta para uma resolução global da heteronomia social: a direção da sociedade por ela mesma. O problema não se resume ao conflito interno à fábrica, nem à gestão econômica da produção, ele transborda para a sociedade:

[...] torna-se claro que... qualquer solução desse problema implica uma mudança radical na atividade dos homens em relação ao trabalho e à coletividade. Somos assim levados a colocar as questões da sociedade como totalidade e da responsabilidade dos homens. (CASTORIADIS, 1995, p. 103).

Pensar o conteúdo substantivo do autogoverno, da autogestão, da autonomia social significa enfrentar o problema de uma transformação profunda das “necessidades” em torno das quais se organiza o atual sistema. O movimento ecológico é a prova viva disto. A questão é delicada porque se trata de entender que autogoverno é indissociável de auto-limitação da sociedade. A limitação daquilo que se considera inaceitável da parte de seus membros, e “auto-limitação da sociedade ela mesma na regulamentação, regulação e legislação que exerce sobre seus membros” (CASTORIADIS e COHN-BENDIT, 1981, p. 48).

podem ser considerados sinônimos. Na trajetória de Castoriadis, uma mudança terminológica marca seu afastamento do pensamento marxista; por exemplo, “socialismo” dá lugar a “sociedade autônoma”; “alienação” tende a ser referida por “heteronomia”; toda semântica da revolução migra para uma referência ao projeto da autonomia (ver MACIEL, 1988).

O problema do direito (positivo e substantivo) se apresenta pela dificuldade de combinar uma sociedade fundada sobre regras universais substantivas, e, compatível com a diversidade da criação, dos modos de vida e dos diferentes sistemas de necessidades. Esta síntese não pode ser fruto da decisão de sábios, ela “sairá da própria sociedade, ou não saíra de lugar nenhum” (CASTORIADIS e COHN-BENDIT, 1981, p. 49). A auto-limitação é a construção da ponte entre a sociedade como totalidade e a responsabilidade dos homens, etapa crucial do projeto da autonomia:

Mantemos nosso julgamento, pensamento e ação, mas reconhecemos também seus limites. Reconhecer este limite é dar conteúdo pleno ao que, no fundo, dizemos: que uma política revolucionária hoje em dia é, em primeiro lugar e antes de tudo, o reconhecimento da sociedade ela mesma como fonte última de criação institucional. (CASTORIADIS e COHN-BENDIT, 1981, p. 50).

O capitalismo é o avesso disso, presentifica uma significação imaginária social central à sua instituição social-histórica: a expansão ilimitada do “domínio racional” (CASTORIADIS, 1992, p 20). O sentido da transformação intensa e permanente dos meios técnico-científicos, da interminável acumulação, da revolução tecnológica da produção, comércio e finanças está neste domínio imaginário. O critério da expansão ilimitada do “domínio racional” penetra a totalidade da vida social, fazendo do capitalismo um movimento de “auto-re-instituição” da sociedade, fechado sobre si mesmo:

Na acepção capitalista, o sentido da Razão está claro: é o “entendimento”[...] é o que eu chamo de lógica conjuntista-identitária, encarnando-se essencialmente na quantificação e conduzindo à fetichização do ‘crescimento’ por ele mesmo[... ]Tudo está convocado perante o tribunal da Razão (produtiva) e tudo deve demonstrar seu direito à existência a partir do critério de expansão ilimitada do ‘domínio racional’. (CASTORIADIS, 1992, p. 20).

A “razão” é posta como fundamento único e auto-suficiente da atividade humana, conseqüentemente, como seu fim. “A lógica conjuntista-identitária cria as ilusões da auto- fundação, da necessidade e da universalidade” (CASTORIADIS, 1992, p. 21). Mas, esta “razão” está sempre entre aspas porque é pseudo-razão, é “uma racionalidade artificializada tornada não só im-pessoal (não individual), mas in-humana (‘objetiva’)” (CASTORIADIS, 1992, p. 79). Tem-se a ilusão de que a razão se manifesta objetivamente na história e nas

próprias coisas, e esta perda das raízes sociais aponta para o sentido profundo do imaginário capitalista: a heteronomia, a crença de que “a potência material-técnica como tal é a causa ou condição decisiva da felicidade ou da emancipação humanas (imediatamente ou num futuro, desde já descontado)” (CASTORIADIS, 1992, p. 21).

A fé depositada no conhecimento técnico-científico torna-se similar à fé religiosa, reforçando a “potência crescente da tecnociência e o impoder manifesto das coletividades humanas” (CASTORIADIS, 1992, p. 77). O imaginário social torna-se autônomo e separado da sociedade que o engendrou; aparece como algo inevitável, e a respeito do que não há escolha.

Na tradição grego-ocidental, ciência e liberdade estão do mesmo lado, são indissociáveis da interrogação e da pesquisa racional (sem aspas). Assim como no caso da liberdade, a ciência potencialmente produz o bem e o mal; não é possível separar seus efeitos definindo-lhe um limite a priori. Para além das interdições óbvias, como a proteção da vida, o desejo de criar rotinas para limitar a ciência deriva da crença de ser possível à própria ciência por si mesma limitar-se. Manifesta-se assim o imaginário da neutralidade e objetividade, noutros termos, o imaginário da indiferença política: o desejo de fundar critérios indiscutíveis é a negação da interrogação permanente e da decisão provisória. Este é o núcleo da significação imaginária do pseudo-domínio da pseudo-razão, que orienta o desinvestimento da responsabilidade de refletir-deliberar e a conseqüente submissão à irracionalidade da não escolha.

O resultado é uma atividade conformada pela heteronomia, inspirada pelo factível e descomprometida com o desejável: “fazemos o que é possível fazer, trabalhamos no que se estima fazível, num prazo mais ou menos longo... o que é tecnicamente factível será feito regardless, como se diz em inglês, sem dar atenção a outra consideração” (CASTORIADIS, 1992, p. 82). O imaginário da heteronomia se expande pela inação, negativo da sociedade instituinte:

E aqui surge o que nos parece ser o traço específico, e mais profundo, do imaginário moderno [capitalista], o mais pleno de conseqüências e também de promessas. Este imaginário não possui carne própria, ele toma sua matéria de outra coisa, é investimento fantástico, valorização e autonomização de elementos que em si mesmos não dependem do imaginário: o racional limitado do entendimento, e o simbólico. O mundo burocrático autonomiza a racionalidade num de seus momentos parciais, o do entendimento, que não se preocupa com a correção das conexões parciais

e ignora a questão dos fundamentos, da totalidade, dos fins, e da relação da razão com o homem e com o mundo (é por isso que chamamos sua ‘racionalidade’ de pseudo-racionalidade); e ele vive, essencialmente, num universo de símbolos que, a maior parte do tempo nem representam o real, nem são necessários para pensá-lo ou manipulá-lo; é aquele que realiza ao extremo a autonomização do puro simbolismo. (CASTORIADIS, 1982, p. 191).