• Nenhum resultado encontrado

organizacional: a (des)organização solidária

QUADRO 2.2 – O HOMEM FINAL

2.5 A organização em questão (II): as empresas assumidas por trabalhadores (EAT)

A distância entre a vida dos empreendimentos e o intento teórico da ES é espantosa?! O problema mais grave é a oferta de um projeto radicado na criação de organizações ditas

solidárias, cooperativas e autogestionárias, sem a contrapartida de uma fundamentação sólida para esta “questão organizacional” (GUTIERREZ, 2004). A declaração de Paul Singer não deixa dúvidas:

O programa da economia solidária se fundamenta na tese de que as contradições do capitalismo criam oportunidades de desenvolvimentos de organizações econômicas cuja lógica é oposta à do modo de produção capitalista. (SINGER, 2002a, p.112)

A desinterrogação sobre a organização é cara à ES, mas muito mais cara aos sujeitos participantes dos projetos. No caso das empresas assumidas por trabalhadores é patente a desorientação produzida por uma concepção apriorística de organização, puramente intuitiva e definida com base num ideal normativo mal fundamentado. O fenômeno, as vivências e o aprendizado possibilitado pela construção do empreendimento são obscurecidos pelo ideário dominante. Imaginar que uma invenção do presente aconteceu há mais de um século ativa o perigo de pressupor que haja quase nada ou muito pouco a ser inventado. Os problemas se resolvem pelo engajamento, quando a organização padece, isto se explica porque o “verdadeiro” engajamento não ocorreu.

Por outro lado, as aproximações empíricas representam uma contribuição indiscutível para melhor compreender as organizações em gestação. As pesquisas revelaram contradições, ambigüidades e complexidade silenciadas pela problematização ingênua da solidariedade. Ficou patente a necessidade de situar o projeto da ES no interior do modo de produção capitalista, para não produzir equívocos de interpretação. As organizações aparecem como processos sociais em construção, cuja trajetória, sempre aberta e incerta, produz nos sujeitos uma combinação de intranqüilidade, esperança e criatividade. Enfim, é a humanidade dos empreendimentos que se manifesta com sua força usual quando entra em cena a questão organizacional.

Diante do fenômeno em discussão e para eliminar a polissemia, adota-se daqui por diante o termo Empresas Assumidas por Trabalhadores (EAT) como única designação para referenciar as formas alternativas de organização que constituem objeto da pesquisa desta tese: são empresas originadas por processos de crise ou falência e geridas pelos seus ex- trabalhadores, na condição de sócios. De acordo com as pesquisas sobre a sua realidade, as EAT parecem estar definidas mais pela ambigüidade do que pela certeza quanto à sua

natureza solidária, cooperativa ou autogestionária, isto é, podem ou não ser marcadas por vínculos sociais que remetam a estas três formas. Elimina-se, portanto, o pressuposto de que tais características estejam presentes desde o início nos empreendimentos.

A discussão precedente evidenciou a realidade ambígua e complexa das EAT, ao delinearem- se as contradições que perpassam sua organização e gestão. O núcleo problemático da questão organizacional manifestou-se em dupla face:

a.) Internamente, os impasses gerados pela estrutura herdada – padrões de trabalho, tecnologia, modelo de gestão, etc.;

b.) Externamente, a porosidade do empreendimento ao entorno capitalista, principalmente, o imperativo de gerar excedente através da produção de valores de troca.

Isto significa que a experiência real das EAT evidencia pontos vulneráveis de ‘contágio’ heterogestionário, para utilizar uma metáfora epidemiológica. Os aspectos que apareceram como especialmente críticos são três. Em primeiro lugar, a fragilidade com que se apresenta a gestão coletiva do empreendimento, resultando na captura da direção por grupos que coagulam uma “gestão de quadros”, beneficiados pela continuidade das práticas herdadas, devida à inserção no mercado. Em segundo lugar, a “naturalização” e “fetichização” da tecnologia que retardam o processo de adequação sócio-técnica (AST) à autogestão, cujo resultado se apresenta numa somatória de “auto-exploração” e baixa capacidade estrutural de geração de excedentes. A associação entre o patamar tecnológico da empresa e sua submissão à lógica mercantil faz o intento autogestionário ser contraditório e disfuncional à efetividade econômica da EAT, o que reflete processos de AST limitados ao repotenciamento do equipamento herdado. Em terceiro lugar, há a dimensão subjetiva do desgaste emocional, dado o alto investimento psíquico-cognitivo demandado pelo processo social de construção da organização. A dificuldade vivenciada envolve “exposição pessoal, atritos entre cooperados, conflitos de interesses que resultam em divisões do grupo, pressões sobre a administração...” (ESTEVES, 2007, p. 170). Manifestam-se sentimentos dúbios: o desejo de que interesses espontaneamente se harmonizem, o desejo de fazer coincidir o um e o múltiplo numa representação que recobre as diferenças do grupo com o signo “cooperativa”. A ilusão desta coincidência não tarda a se tornar evidente, ensejando sentimentos de desilusão com o projeto coletivo.

Conclui-se que a trajetória das EAT pode ser pensada, ela mesma, como empecilho à autogestão. A antiga empresa se faz presente como uma sombra. Não apenas o equipamento é herdado, mas a divisão do trabalho e do conhecimento, os hábitos e padrões. A tecnologia convencional funciona como um verdadeiro implante capitalista no seio das EAT. O equipamento é indissociável da dimensão cognitiva e comportamental, ações e decisões por ele implicadas estão no registro da lógica de acumulação máxima e super produtividade do trabalho, o que reflete alienação, monotonia e disciplina. Daí o repertório cultural dos sujeitos ser freqüentemente apontado como empecilho às práticas autogestionárias. Habituados ao trabalho parcelado e alienado, não lhes parecerão estranhas a estratificação entre direção e execução, as restrições disciplinares e relações autoritárias com as chefias, a filosofia da especialização, treinamento e segregação do conhecimento, etc. Enfim, os processos sociais da ‘nova’ empresa são herdeiros dos processos sociais da ‘antiga’ empresa.

Todas essas contradições apontam para o problema da transição. As EAT são organizações em transição, pois vivem a presença contígua de processos, práticas e regras oriundas tanto da heterogestão quanto da autogestão. As várias dimensões do empreendimento transpiram contradições ensejadas por esta convivência ambígua. É preciso examinar de que maneira esta transição poderia ser realizada, ou se, de fato, ela se realiza, ou, ainda, se a condição ambígua não é a condição de normalidade em empreendimentos com estas características. Quando escapamos das armadilhas ideológicas do ideário da ES, e enfrentamos a questão organizacional, muitas das dificuldades vividas pelos “agentes da ES” passam a ser as nossas, o que motiva novos questionamentos e mobiliza a reflexão.

CAPÍTULO 3. Organizações em transição: empresas