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organizacional: a (des)organização solidária

ESQUEMA 3.2 – Modelo Organizacional Matriz de Autogestão Função Comercial Função Comercial

3.2 No país dos espelhos: a organização autogerida como antítese da organização capitalista

3.2.1 Reconversão capitalista: o lugar da heterogestão

As empresas capitalistas re-significam e trans-formam as soluções originadas de iniciativas dos trabalhadores fazendo-as funcionar a seu favor. A este fenômeno designa-se “reconversão capitalista” (GUTIERREZ, 1988), e, também, “recuperação capitalista” (BERNARDO, 1991). A reconversão ou recuperação inclui toda gama de iniciativas operada na luta dos trabalhadores, bem como as instituições aí criadas (BERNARDO, 1991).

A formalização que caracteriza a gestão capitalista ou heterogestão tem seu conteúdo definido por processos desta espécie. A adoção de “grupos semi-autônomos” na empresa heterogerida é uma operação desse tipo: absorve a organização dos ‘grupos informais’ emergentes da própria situação de trabalho, e encampa a capacidade de reflexão e discussão coletiva, originada da ação política fora da fábrica (BERNARDO, 1991). “A idéia de comissões de fábrica foi colocada a serviço da produção tradicional sem nem sequer mudar de nome” (GUTIERREZ, 1988, p. 17). A formalização re-significa o conteúdo dessas práticas, reconvertendo-as em instrumentos úteis para a acumulação. Ao realizar este desvio de finalidade, a heterogestão trans-forma o conteúdo das práticas dos trabalhadores em meios, alienando sua finalidade original.

De acordo com Motta (1986), este processo caracteriza a dominação de tipo burocrática, em que a organização formal configura uma forma de poder. A dominação é a realização do poder na forma da organização, de modo a fazer parecer que os dominados adotaram para si o conteúdo da vontade dos dominantes. A dominação burocrática é aquela que “busca a

legitimidade no primado da regra racional estabelecida pela própria burocracia. Daí o formalismo constituir-se no seu aspecto fundamental” (MOTTA, 1986, p. 69). O núcleo da prática heterogestionária está nesta habilidade de formalização, cujo produto configura a organização capitalista.

Desenham-se, assim, os contornos da heterogestão como uma prática específica que combina a formalização com a exploração e alienação do trabalho. As ações de reconversão permitem acessar o conteúdo específico dessas práticas, ou seja, aquilo que é submetido à formalização. Esses conteúdos aparecem com clareza nas definições de “gerência” (BRAVERMAN, 1971) e “gestor” (BERNARDO, 1991).

O “problema da gerência” é, conforme Braverman (1971), o problema da reconversão na unidade produtiva, define-se pela crescente necessidade de capturar os saberes implicados no processo de trabalho. Na produção capitalista compra-se somente o tempo do trabalhador, e o contrato de venda não implica o ajuste da sua vontade às demandas de produtividade e máximo esforço. O tempo de trabalho vem esvaziado, exigindo o controle da gerência para aderir utilidade à força de trabalho, ajustá-la aos interesses capitalistas de produção de mais- valia. O trabalho humano produz as condições sociais e culturais para que o excedente seja produzido (BRAVERMAN, 1971, p. 58); no contexto capitalista, a mercantilização da força de trabalho torna isto um problema:

O que ele [o capitalista] compra é infinito em potencial, mas limitado em sua concretização pelo estado subjetivo do trabalhador... suas condições sociais gerais... as condições próprias da empresa e as condições técnicas de trabalho. [...] Tendo sido obrigados a vender sua força de trabalho a outro, os trabalhadores também entregam seu interesse no trabalho, que foi agora ‘alienado’. O processo de trabalho tornou-se responsabilidade do capitalista. (BRAVERMAN, 1971, p. 58-59).

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O controle sobre o processo de trabalho precisa ser deslocado do trabalhador para o capitalista, a gerência tem aí seu problema constitutivo. Sua funcionalidade está no aprofundamento da alienação dos processos de trabalho, e na eliminação progressiva do protagonismo do trabalhador nestes processos.

Se a “gerência” tem função e existência radicada na unidade produtiva, os “gestores” definem-se por práticas relacionadas à generalização da mais-valia. João Bernardo (1991)

define esta como a função dos gestores: eles são responsáveis pela crescente inter-relação das unidades produtivas, que define os padrões de expansão e acumulação capitalistas – estes padrões são designados Condições Gerais de Produção (BERNARDO, 1986, p. 111). A função dos gestores tem seu conteúdo também definido pelos processos de recuperação capitalista, agora em dimensão consideravelmente maior.

As iniciativas de organização do trabalho, nascidas da resistência operária, são “recuperadas” pelas empresas capitalistas, até se tornarem fórmulas “absolutas”, amplamente adotadas e disseminadas (BERNARDO, 1986). Quando perdem seu caráter de vantagem relativa, novas formas de resistência ganham sentido dando inicio a um novo ciclo. A organização capitalista do trabalho se define por esta dinâmica, seus estágios sucessivos resultam da apropriação de instituições surgidas com as lutas operárias – que sofreram desgaste ou degeneraram e se burocratizaram, a ponto de serem recuperadas pelo capital (BERNARDO, 1986, p. 110).

A degeneração acontece porque há duas formas de recuperação capitalista. A primeira caracteriza “ciclos curtos de mais-valia relativa” (Bernardo, 1986), e consiste numa resposta imediata às reivindicações dos trabalhadores, anulando seu potencial de mobilização. Significa a redução do tempo de trabalho incorporado na força de trabalho, via aumento da produtividade por inovações pontuais, mecanização ou automação. Nesse nível, ocorre intensificação do controle sobre o processo de trabalho. Este é o campo das práticas da “gerência”, definidas por Braverman (1971).

A segunda forma de recuperação define os “ciclos longos de mais-valia relativa”, consistindo numa trava estrutural. O controle pela via do mercado é o controle da mais-valia na esfera da circulação-realização. A ilustração de Bernardo (1986) sobre este ponto descreve a operação do que foi definido como EAT:

Temos uma empresa, ou duas, ou três, quantas quisermos, onde os trabalhadores, mediante um processo de luta, ficaram com as instalações nas mãos e se vêem na necessidade de fazê-las funcionar. Mas, no resto da sociedade existe capitalismo. Esses trabalhadores estão a produzir para compradores que analisam o produto consoante critérios capitalistas de produtividade; estão a adquirir matérias-primas e maquinaria de vendedores que as produzem e distribuem consoante critérios capitalistas de produtividade. Então, das duas uma: ou os trabalhadores organizam a produção que têm nas mãos segundo novos critérios decorrentes das relações sociais de luta, coletivos e igualitários – mas, nesse caso o resultado é

completamente antagônico dos princípios de produtividade capitalista e, porque restritos a uma empresa ou uma região isolada ou a um único país, estes trabalhadores permanecem em inferioridade relativamente ao mercado mundial e são por ele sufocados; ou os trabalhadores se sujeitam aos critérios de produtividade capitalista – e nesse caso têm de reintroduzir a disciplina patronal na fábrica, as hierarquias, etc. (BERNARDO, 1986, p. 108).

A elevação da produtividade de cada unidade empresarial é crescentemente dependente da integração com as demais, o que torna cada vez mais crítica a operação independente de uma empresa, que descarte a integração, por qualquer motivo. A mais-valia não incide apenas pontualmente em cada unidade produtiva isolada, é um processo que se generaliza. As Condições Gerais de Produção definem os critérios gerais de produtividade consubstanciados nos padrões de produção e troca mercantil relacionados à generalização da mais-valia (Bernardo, 1986, p. 111). Este caráter integrador do processo de mais-valia é central ao capitalismo e caracteriza a prática dos “gestores”.

A heterogestão caracteriza-se, portanto, por práticas que combinam formalização, exploração e alienação do trabalho de modo a realizar, reproduzir e amplificar a organicidade dos processos produtivos capitalistas. As funções aqui designadas “gerência” e “gestores” são operadoras de um amplo e constante trabalho de reconversão e/ou recuperação de conteúdos práticos específicos gestados no campo de ação organizativa dos trabalhadores.

Apenas para ilustrar, empresto um exemplo muito esclarecedor oferecido por Cooke (1999), num artigo intitulado Writing the Left out of Management Theory, que estuda a maneira como as práticas da esquerda revolucionária russa e chinesa foram reconvertidas pela gestão capitalista. De acordo com Cooke (1999), a corrente teórica da Administração conhecida como Desenvolvimento Organizacional (DO) adota uma série de técnicas que têm origem nos regimes comunistas, entre elas estão a pesquisa ação, a dinâmica de grupos e a gestão da mudança de atitudes. A biografia de autores ligados a esta corrente revelou, além de visitas a países comunistas, ligações com intelectuais de esquerda. O caso mais radical é o de Edgar Schein, nos seus trabalhos encontra-se a defesa explícita da reconversão de práticas de lavagem cerebral, aprendidas com o maioísmo. Eis como Cooke (1999) descreve seu achado:

Em 1962, comparando a lavagem cerebral do Partido Comunista Chinês com ‘a reabilitação mental hospitalar, o treinamento para certos papéis profissionais, a preparação formal de uma noviça para ingresso no convento,

a doutrinação do executivo para entrar na empresa...[Schein] conclui: ‘Não estou fazendo esses paralelos com o sentido de condenar algumas de nossas próprias abordagens, ao contrário, meu objetivo é justamente o oposto. Estou tentando mostrar que os métodos chineses não são tão misteriosos, nem tão diferentes e tampouco horríveis [not so awful], desde que separemos o horror [awfulness] da ideologia comunista e olhemos simplesmente para os métodos. (COOKE 1999, p. 95).

O exemplo permite entender as especificidades da operação de formalizar, e como ela se combina com a instrumentalização, produzindo inovações em termos de exploração e alienação do trabalho, com a criação de novos meios para viabilizar a acumulação. Caracteriza-se, portanto, a heterogestão como prática tipicamente capitalista, porque ligada à universalização da mais-valia relativa. Na dimensão organizacional, sua função é controlar a manifestação da diferença, mantê-la nos limites da organização capitalista do trabalho, impedir a ruptura. Na prática, essas fronteiras são estabelecidas pela gerência ou gestores, de modo a manter o controle sobre a diferença, reproduzindo indefinidamente o processo de trabalho capitalista.

O ponto crucial aqui é entender que o estabelecimento das fronteiras da diferença, isto é, daquilo que será incluído e/ou excluído da organização constitui a substância da heterogestão. Assim, a proposta da autogestão como inversão da organização capitalista fará sentido se for extraída desta substância, por negação. Dada a equação ‘heterogestão = formalização + exploração e alienação’, a questão fundamental é saber se é possível negativar apenas um dos dois componentes da soma, sem prejuízo do resultado final: a autogestão.

Gutierrez (1988) construiu seu modelo pela via da inversão isolada do segundo termo da equação (exploração e alienação), por isso foi possível para ele defender a importância de um modelo formal. Entretanto, suas conclusões levam a crer que a formalização de um modelo é questionável, isto é, sua proposta pretende ser apenas uma referência, uma âncora cognitiva a partir da qual os sujeitos envolvidos no projeto de autogestão possam re-elaborar, re-formar, re-significar os conteúdos. Ou seja, operam a função de formalizar tal como gerentes e gestores, e, ao mesmo tempo, negam os conteúdos de exploração e alienação do trabalho desta mesma função. Nesses termos, parece haver um ponto comum entre heterogestão e autogestão dado pela função de formalização.