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O coletivo: a síntese (im)possível

CAPÍTULO 4. Imaginário e simbólico: labirintos e

4.1 O imaginário e o social-histórico

4.1.5 O simbólico: significação e instituição social

Se a autonomização do simbolismo é o sintoma par excellence da heteronomia social, é preciso lembrar que, na proposição castoriadiana, o simbólico é o que estabiliza o fluxo das significações imaginárias, em dado contexto social-histórico. A essência do imaginário moderno aparece como a estabilização da instituição social-histórica capitalista, apresentando-se como inquestionável ou dogmática. É disto que se trata: símbolos alçados à condição de dogmas, verdade inquestionável.

Não é por acaso que Castoriadis considera a religião um modelo para se pensar a instituição das sociedades – as exceções (já conhecidas, Grécia e mundo ocidental moderno) são consideradas rupturas imperfeitas e incompletas do modelo religioso. Em geral, as sociedades manifestam um “cerne religioso” em sua instituição (CASTORIADIS, 2002, p. 391).

Há um vazio de sentido implicado na auto-instituição social: toda sociedade é necessariamente um edifício apoiado sobre fundações magmáticas – um fundo de indeterminação é o irradiador das significações sociais, e isto suscita dúvidas a todos. Como pensar a sociedade independentemente de uma origem? Como explicar a origem desta sociedade? Como superar a ilusão ontológica (da determinidade de ser)? Eis o sentido do “cerne religioso” presente em (quase) toda instituição social: a construção de um sistema de significações é o alicerce da existência de uma sociedade, mas a questão a respeito do fundamento de todas as significações criadas é sempre uma incógnita:

[...] por mais fina, sutil e poderosa que seja a significação, sua apreensão das coisas e do mundo – o ser – exigiria para se completa, que este estivesse fixado definitivamente, de um extremo a outro de uma vez para sempre... acabado, terminado, determinado, identitário. Mas, o mundo – o ser – é

essencialmente Caos, Abismo, Sem-Fundo. Ele é alteração é auto- alteração... a significação sempre corre o risco de se deparar sem apoio perante o Caos, de não poder remendar os rasgos de seu recobrimento do ser. (CASTORIADIS, 2002, p. 388).

A significação surge do sentido dado ao mundo na instituição da sociedade. As questões da origem, fundamento, e finalidade têm resposta na própria sociedade: ela tem origem em si mesma, a sociedade é auto-criação. Mas, é preciso recobrir o indeterminado, o Caos, para criar o mundo das significações sociais, este mundo que não tem “razão de ser” a não ser a de esconder sua própria origem, na impossibilidade de fazê-la desaparecer completamente.

A auto-criação des/aparece sob o manto da existência social, os mecanismos de encobrimento manifestam a ambigüidade de apresentar/ocultar o Caos, que é a modalidade de relacionamento da humanidade com a indeterminação que a envolve e a contém (CASTORIADIS, 2002, p. 390). O que a instituição da sociedade busca continuamente afirmar é “que o ser é significação e que a significação social faz parte do ser. Tal é o sentido do cerne religioso da instituição de todas as sociedades conhecidas...” (CASTORIADIS, 2002, p. 391).

Castoriadis entende que a instituição da sociedade é, de maneira inconsciente, fundadora de uma ontologia – particular, do ponto de vista social-histórico. Ao dar sentido às coisas, a sociedade determina o que é cada uma delas, inserindo-as num sistema de relações. Cria-se assim um mundo correlativo às significações imaginárias desta sociedade e que delas depende. “Mas, o mundo tout court não se deixa reduzir a esta dependência” (CASTORIADIS, 2002, p. 392). O diferente emerge e surpreende, abalando o sistema de relações, o lugar das coisas é ameaçado pelo desconhecido. O retrabalho das significações é permanente porque é impossível recobrir o Caos – qual a solução?

A ‘solução’ aqui tem sido entrelaçar origem do mundo e origem da sociedade, significação do ser e ser da significação. É esta a essência da religião: tudo o que existe se torna subsumível às mesmas significações (mesmo quando um princípio do mal se opõe a um princípio do bem... o segundo permanece sendo o pólo privilegiado ao qual o primeiro toma, por negação, o seu sentido). (CASTORIADIS, 2002, p. 392).

O fenômeno é semelhante na sociedade moderna, cuja instituição se pretende afastada da religião. Uma dimensão “quasi-religiosa ou pseudo-religiosa” faz o entrelaçamento (das

origens) ser dado no interior e por meio da “racionalidade” das “leis da natureza” e das “leis da história” (CASTORIADIS, 2002, p. 392). A re-ligação religiosa ou pseudo-religiosa tem duas faces. De um lado, homogeneíza o mundo, enterra a indeterminação quando torna o ser extenso desde sua origem, assegura à significação um porto seguro. De outro lado, cria uma “ontologia unitária” consubstancial à heteronomia da sociedade, reivindica uma origem extra- social da sociedade e postula a negação da auto-instituição social.

Como observa Enriquez (1998), o pensamento castoriadiano pensa a religião como “idêntica” à sociedade. A religião é a resposta à incapacidade humana de afrontar o Caos e o Abismo, ela “... fornece um nome ao inominável, uma representação ao irrepresentável, um lugar ao ilocalizável. Ela corresponde à recusa dos humanos em reconhecer a alteridade absoluta, o limite de toda a significação estabelecida...” (CASTORIADIS apud ENRIQUEZ, 1998, p. 33). O que torna possível a unidade de uma sociedade – permitindo pensá-la como “esta” sociedade – é a unidade de seu mundo de significações, (CASTORIADIS, 1995, p. 404). O sem sentido é inaceitável para as sociedades, elas conferem sentido a si mesmas – se instituem – ao conferir este sentido determinado às coisas, a tudo que se lhes apresenta.

Entende-se a afirmação de que, em dado contexto social-histórico, o simbólico responda pela estabilização do fluxo das significações imaginárias: ele está no âmago das instituições, mediando as significações sociais. É na linguagem que se encontra, primeiro, o simbólico, pois na linguagem se dá a significação – as remissões de cada termo a outros termos, a possibilidade de novos arranjos e sentidos, etc. As instituições constituem o simbólico em segundo grau, porque implicam alguma destilação da linguagem.

Instituições só existem no simbólico e “constituem cada qual uma rede simbólica” (CASTORIADIS, 1995, p. 142). Toda instituição é organização social-histórica que existe mediada por sistemas simbólicos sancionados. Isto significa que há sempre uma valência associada aos símbolos – um “contrato de venda” é um símbolo que vale à medida que obriga as partes contratantes da transação. O simbolismo é inseparável do social-histórico, não apenas porque se vincula ao imaginário, mas também porque trabalha com o passado:

Todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes, utilizando seus materiais... Por suas conexões naturais e históricas virtualmente ilimitadas, o significante ultrapassa sempre a ligação rígida a um significado preciso, podendo conduzir a lugares totalmente

inesperados. A constituição do simbolismo na vida social e histórica real não tem qualquer ligação com definições ‘fechadas’ e ‘transparentes’ dos símbolos [como se supõe existir] ao longo de um trabalho matemático. (CASTORIADIS,1995, p. 147).

O simbolismo age “por diferença”, os signos emergem sobre “o fundo de alguma coisa que não é signo ou que é signo de outra coisa” (CASTORIADIS, 1995, p. 144, nota 6). Este jogo da diferença dinamiza o simbólico, movimenta suas fronteiras. A “escolha” de um símbolo “não é nunca nem absolutamente inevitável, nem puramente aleatória”, a referência ao real compõe o teor dos símbolos, que raras vezes podem ser totalmente convencionais (CASTORIADIS, 1995, p. 144).

Se o imaginário moderno “realiza ao extremo a autonomização do puro simbolismo”, é evidente que ele deva ser associado a uma manifestação localizada historicamente; é o imaginário social-histórico que abandona o homem aos símbolos – tomados por formas atemporais “verdadeiras” e “essenciais”, formas pré-determinadas (CASTORIADIS, 1995, p. 236). O imaginário moderno é este que apresenta a repetição e imitação como equivalente da vida em sociedade. O “cerne religioso” das instituições faz saltar aos olhos o efeito da instituição social do tempo, do qual a instituição imaginária moderna é apenas um momento. O social se faz como modo específico de temporalidade efetiva, “ele se institui implicitamente como qualidade singular de temporalidade” (CASTORIADIS, 1995, p. 252). Toda instituição social-histórica nasce por uma ruptura do tempo, a instituição necessita suspender o tempo, colocar-se fora dele, para recusar sua alteração, pondo como norma uma identidade imutável.

É possível “interpretar o encobrimento da alteridade, a denegação do tempo, o desconhecimento pela sociedade de seu próprio ser social-histórico como enraizados na própria instituição da sociedade tal como a concebemos, ou seja: tal como ela, até aqui, se instituiu” (CASTORIADIS, 1995, p. 251). O modo da sociedade se instituir caracteriza uma recusa de ver que ela se institui; a instituição, como tal, é a negação de sua própria invenção histórica: “a auto-destruição incessante da criatividade da sociedade e dos homens” como equivalente da vida em sociedade (CASTORIADIS, 1995, p. 252).