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organizacional: a (des)organização solidária

2.2 Solidariedade sem culpa: a idealização

É evidente que o cooperativismo não foi inventado por brasileiros, que há uma história, que a resistência ao capitalismo foi marca do movimento operário, que a autogestão faz parte disso, etc. Aqui se releva a especificidade dos acontecimentos sociais e históricos referidos como ES. A proposta é pensá-los de outra forma, para que aquilo que têm de singular possa ser iluminado pela análise.

As indicações de Lechat (2002; 2006) dão conta de certos antecedentes mais recentes e importantes. A Europa viveu um surto de empreendimentos da “economia social” na crise econômica da década de 1970; entre 1977 e 1985, surgiu uma série de empresas geridas por trabalhadores, foram criadas inúmeras cooperativas de trabalhadores por toda a Europa (LECHAT, 2006, p. 5). Uma literatura acoplada a este fenômeno das organizações “sociais” movimentou a Europa e os EUA, mas também a América Latina, e primeiramente o Chile (LECHAT, 2002; 2006). Foi assim que o conceito de “economia de solidariedade” veio parar no Brasil em 1993, concomitantemente à crise ocasionada pela neo-liberalização da economia brasileira (OLIVEIRA, 2007). O autor chileno comunista-cristão Luis Razeto foi pioneiro ao publicar um artigo sobre “solidarismo econômico” no Brasil, relatando experiências em que uma racionalidade econômica diferente condiciona “traços constitutivos e essenciais de solidariedade, mutualismo, cooperação e autogestão comunitária” (LECHAT, 2002, p. 130).

Paul Singer relata em entrevista à Bitelman (2008) que seu primeiro contato com o que veio a se chamar ES aconteceu em 1996, numa reunião convocada pela CUT para discutir alternativas econômicas, em que foi convidado por ter publicado um artigo sobre o assunto no jornal Folha de São Paulo. De acordo com Bitelman (2008), o texto de Luis Razeto foi apresentado a Singer por um dos participantes dessa reunião. Uma curiosidade revelada nessa entrevista diz respeito à criação da designação “Economia Solidária”, que apareceu numa

reunião da campanha eleitoral de Luíza Erundina à Prefeitura de São Paulo, quando se decidiu a inclusão da ES no programa do Partido dos Trabalhadores. É o que conta Singer:

Eu estava reinventando, sem saber, o clube de trocas. Expus isso na campanha, na reunião eu me lembro que Aluísio Mercadante era o coordenador da campanha (e candidato a vice)... quando eu apresentei essa idéia − na minha cabeça eu tinha inventado, eu não sabia nada − ele gostou e falou: ‘... Isso é uma boa idéia, vou colocar isso no programa (de governo) sim, você está certo!’. Aí ele me disse: ‘como é que você chama esse negócio que você está propondo?’, eu falei: ‘Aluízio, eu não pensei nisso ainda’. Aí ele sugeriu: ‘Por que você não chama isso de Economia Solidária?’ Agora, eu tenho a impressão de que ele não inventou, ele já sabia, algo já estava acontecendo com esse nome na América Latina. De onde é que ele soube eu não sei... Mas de qualquer forma eu achei boa idéia e assim ficou o nome. (BITELMAN, 2008, p. 50).

Impulsionado por este contexto, o desenvolvimento teórico da ES acontece, no Brasil, somente em meados dos anos 1990. Trabalhos seminais esparsos de Paul Singer, Marcos Arruda e Luis Inácio Gaiger são as primeiras publicações de que se tem notícia (LECHAT, 2002, 2006). Os três autores reúnem-se pela primeira vez em um debate no seminário “Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia”, na Universidade Católica de Salvador em 1999, publicado em livro no ano seguinte (KRAYCHETE, LARA e COSTA, 2000).

A partir de então, um pensamento teórico relativamente estruturado e sistemático vem se construindo. O que caracteriza esta reflexão é uma argumentação em torno dos conceitos de solidariedade, cooperação e autogestão. A idéia central é o pressuposto de que estes princípios estejam inscritos nas práticas dos trabalhadores, sem problematizá-los:

Existe indiscutivelmente forte afinidade entre as classes trabalhadoras e os princípios que regem a economia solidária. Nem todos os trabalhadores rejeitam o capitalismo, mas a maioria deles o faz e por isso quando se associa para produzir comprar ou vender, o faz sob formas solidárias. (SINGER, 2000, p. 14-15).

Ao partirem desta indiscutível afinidade, a maioria dos autores se coaduna na crença dos efeitos desejáveis e positivos da ES, uma vez que se trata de uma tradução daquilo que os próprios trabalhadores realizam por suas ações. O fenômeno é tratado como essencialmente bom e como uma “causa” a defender. A ES é apresentada como projeto ético-político capaz

de edificar uma nova ordem mundial, mais justa e igualitária para beneficio das futuras gerações.

É assim que Luis Inácio Gaiger (2004) – dizendo-se preocupado em avaliar “com propriedade” os problemas da ES e calcado na experiência concreta do Rio Grande do Sul – abre em tom de manifesto um artigo intitulado “A Economia solidária e Projeto de Outra Mundialização”:

Nestes últimos anos, a economia solidária revelou-se pródiga em encontros – de ativistas e de organizações dos diversos quadrantes do globo – em que se formularam proposições visando abrir caminhos para o avanço da solidariedade, como princípio ético-político e como esteio concreto de uma nova mundialização. O apoio unânime a essa desejada confluência se expressou particularmente nas edições do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. No contexto de uma nova consciência mundial quanto aos efeitos deletérios do capitalismo e ao fracasso das soluções de corte neoliberal, em brindar progresso material e liberdade aos povos, a economia solidária é projetada em cena como peça de resistência e como ensaio de outro projeto de sociedade, de uma globalização alternativa calcada na democratização da economia e na cidadania. [...] A economia solidária é considerada um passo concreto, indispensável para dar credibilidade e gerar intensa adesão social aos propósitos de uma nova arquitetura mundial, prova necessária para evitar apenas o oferecimento de uma ideologia mistificadora, de alternativas inaplicáveis [...] (GAIGER, 2004, p. 799-800).

Importante destacar que Gaiger é o principal pesquisador do Grupo de Pesquisa em Economia Solidária da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), e trabalha com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Este efeito halo atribuído à ES, por Gaiger, não é incomum, os exemplos podem ser multiplicados. “Autogestão, realização de um sonho” é o título sugestivo de um seminário organizado pelo Instituto de Políticas Alternativas para Cone Sul (PACS) e outras entidades, em Porto Alegre, no ano de 1994 (LECHAT, 2006, p. 12). Mesmo um autor respeitado como Paul Singer descreve a experiência da autogestão como “redentora”:

Irmanar-se com os iguais, insurgir-se contra a sujeição e a exploração constituem experiências redentoras. Quando reiteradas, modificam o comportamento social dos sujeitos. Entre as empresas solidárias, a autogestão se pratica mais autenticamente quanto mais os sócios forem militantes sindicais, políticos e religiosos. (SINGER, 2002a, p. 22).

A marca desta reflexão está no pressuposto indiscutível da forte afinidade “entre as classes trabalhadoras e os princípios que regem a economia solidária” (SINGER, 2000, p. 15). Esta afinidade autoriza a apresentação de conceitos imediatos, isto é, imediatamente conversíveis em dados da realidade. Assim, solidariedade, cooperação e autogestão aparecem como descritores da realidade dos empreendimentos da ES, sem serem antes escrutinados ou problematizados. Ganham o estatuto de conceitos auto-evidentes, isto é, funcionam como referências indiscutíveis das práticas espontâneas dos trabalhadores. Assim, numa inversão ideológica, esses conceitos podem ser entendidos como os princípios que regem “as classes trabalhadoras”?!

A dificuldade em tratar as proposições teóricas do campo da ES aparece nesta idealização das práticas encontradas nos empreendimentos. A distância entre teoria e realidade é apagada, as escolhas teóricas implicadas na seleção dos fenômenos estudados desaparecem. O conteúdo ideológico desse discurso se revela pela escolha de um campo semântico específico para descrever os fenômenos que abarca, ao mesmo tempo, a negação de que este campo semântico seja fruto de uma escolha ou de uma criação. Curiosamente, a afirmação de que a ES não é criação intelectual de alguém, aparece também como uma inversão.

A ES nasce, portanto, de uma decisão de ordem teórica, política e ideológica, manifestando a escolha de certos fenômenos pré-existentes da economia popular e informal, e atribuindo-lhes determinadas características:

O que hoje é denominado de economia solidária ficou por décadas imerso [...] intelectuais brasileiros retiraram destes conjuntos amplos e heterogêneos que são a economia popular e a economia informal, empreendimentos econômicos que foram colocados em evidência por possuírem algumas características específicas, que podem ser resumidas pela qualidade da solidariedade existente entre seus sócios, com a sociedade e com a natureza à sua volta. (LECHAT, 2006, p. 10).

Estas escolhas foram feitas por meio de um processo em que certas concepções assumem o valor de descrições. A afinidade indiscutível cria conceitos indiscutíveis, talvez por isso as adjetivações sejam referências usuais na semântica da ES, indicando uma transformação qualitativa da realidade: “sócio-economia solidária”, “empresa solidária”, “empreendimento

solidário”, “cooperativa autogestionária”, etc. A adesão das qualidades vem por meio da adjetivação e sua correspondência com a qualificação do objeto real é tida como evidente.

Examinado do ponto de vista da análise das organizações, estes procedimentos conduzem a uma interpretação bastante específica da vida organizacional: as manifestações do vínculo social aparecem subordinadas à dominância da solidariedade, autogestão e cooperação. Ao mesmo tempo, há uma dificuldade inerente em localizar o significado desses termos.

O trabalho crítico simplesmente não acontece. Os autores hesitam em se posicionar criticamente diante do potencial, papel, função e viabilidade da ES. O desconcerto com que se enfrenta este problema se revela na afirmação de que é preciso “ser um pouco bobalhão, para não ser de todo pessimista” (GAIGER, 2000, p. 179). A noção de ES é depositária desta ingenuidade, o que torna possível uma teorização mais engajada e menos crítica:

[...] o próprio conceito de Economia Solidária carrega em si algo de projeção, algo de desejo... Nós idealizamos o que seria uma economia solidária e, depois, procuramos trabalhar nesse sentido... Eu acho que esses são conceitos ideais. Eles prefiguram, eles devem ter um papel heurístico. (GAIGER, 2000, p. 179).

Gaiger (2000) se mostra preocupado com este traço idealista, e alinha alguns equívocos a se evitar: (1) cuidar para que não se confunda realidade e desejo; (2) não se apropriar do conceito criado, fazendo-o instrumento de poder simbólico e político; (3) não elevar demais as expectativas, mantendo postura pragmática quanto às (não-)opções de inserção econômica dos sujeitos sociais; (4) discutir o sentido de viabilidade e eficiência para o caso da ES. As proposições teóricas da ES tendem, de fato, a propagar a confusão entre realidade e desejo e apropriarem-se da teoria como poder simbólico, a adotar uma postura não pragmática e idealizada quanto às possibilidades do projeto, e a manter o registro da empresa tradicional quando avaliam o sucesso dos EES.

Este último ponto é importante, pois permite entender de que maneira a solidariedade pode alcançar “valor heurístico”. Uma hipótese de Gaiger (2000; 2006) afirma que a solidariedade funciona como “vetor de eficiência”. Esta proposição foi construída a partir de “pesquisa no Rio Grande do Sul... com 16 cooperativas... de produção e serviços” (GAIGER, 2000, p. 182):

[...] esses empreendimentos nasciam e organizavam-se porque, por várias razões, havia uma necessidade imperiosa de encontrar uma solução. Pareceu a essas pessoas, num certo momento, que se associar e unir forças era o melhor caminho. Essa solidariedade tinha, portanto, por um lado, algo de imposto, de necessidade. Mas, por outro lado, tinha algo de escolha: sempre há algo de escolha também, não é? (GAIGER, 2000, p. 182).

O desconforto com a solidariedade imposta é deixado de lado, porque “sempre há algo de escolha”?! Coloca-se, então, a questão de saber “se a solidariedade que levou à formação desses empreendimentos transforma-se num vetor de eficiência” (GAIGER, 2000, p. 182). Para buscar a confirmação da transformação em pauta, são enunciadas três proposições, “a título de hipótese”: (1) “quando existe uma prática de solidariedade prévia, que transcende os objetivos econômicos...”, ela amplifica e consolida o empreendimento; (2) estabelecendo-se as condições da primeira proposição, “... a continuidade da cooperação no trabalho torna-se, ela mesma, um diferencial; o solidarismo e a cooperação no trabalho propiciam fatores de eficiência, sendo então vetores específicos de viabilidade e competitividade dos EES”; (3) trata-se um conceito em construção, para refletir a racionalidade manifesta nos EES que apresentem sinais consistentes de viabilidade e evoluam para sua “auto-sutentação”: “é o conceito de solidarismo empreendedor” (GAIGER, 2000, p. 183-5).

Aqui se trata exatamente de fazer dos aspectos cooperativos a mola-mestra da eficiência econômica: sem solidariedade fica comprometida a eficiência; em sendo eficiente, o empreendimento persiste; e persistindo, reforça os seus elementos solidários. (GAIGER, 2000, p. 185).

A circularidade do argumento é comprometedora. Basta não haver solidariedade desde o inicio para que tudo seja falseado. Como não há problematização sobre a construção dos vínculos de solidariedade, tudo se passa como se ela estivesse posta desde o início. Ora, este não é um “princípio heurístico”, mas um princípio ontológico: dado que a solidariedade é...!

Mas, ainda que a solidariedade pudesse ser colocada como princípio ontológico, o argumento da operação eficiente dos EES revelaria um paradoxo, apontado por Wellen (2008). Ao não problematizar o conceito de eficiência operacional, orientado pela lógica de uma sociedade mercantil, a tese da eficiência solidária faz a solidariedade aparecer necessariamente transmutada em valor de troca, e as qualidades solidárias revestirem-se da forma mercadoria (WELLEN, 2008, p. 106). O perigo de fetichizar a solidariedade é iminente quando a

realidade aparece parcelada numa mistificação em que ocorre “uma supervalorização do singular a ponto deste tornar-se ilusoriamente independente do contexto social que lhe fornece sentido” (WELLEN, 2008, p.113).

Uma heurística do desejo acaba levando os teóricos da ES a construírem um conjunto de idealizações, mais ou menos indiferente aos problemas concretos vividos nos empreendimentos. O léxico da ES tem o intuito de conquistar território, criam-se demarcadores simbólicos para as práticas sociais da ES, de modo a qualificar suas distâncias em relação às práticas da economia capitalista. O desejo de que os EES não se convertam em empresas capitalistas se imiscui com argumentos formulados por racionalização, como na idéia de que a eficiência se deva a uma lógica operacional construída na base da solidariedade. Entretanto, devido à polissemia das designações propostas, a estratégia se explica menos pela clareza e mais pela militância teórica no campo da ES, num processo de identificação dos pensadores com os sujeitos sociais pesquisados3.

O pressuposto da solidariedade é estruturante para o pensamento da ES, tal como aparece na circularidade do argumento da eficiência solidária (GAIGER, 2000; 2006). Este círculo virtuoso aparecerá também na idéia de que participar de um EES é uma experiência transformadora para o ser humano. Vieira (2005) mapeou este aspecto, numa análise do discurso dos principais autores da ES, ele construiu duas figuras para nomear a categoria temática que encontrou: o “homem inicial” e o “homem final” (VIEIRA, 2005, p. 173-5).

O “homem inicial” é referência ao ser humano que vive no sistema econômico capitalista, tendo sua condição determinada por este sistema, impondo-se a ele como resultado de sua condição ser um homem necessitado, alienado, egoísta e irracional. O “homem final” é a referência àquele que vive já no sistema da ES, plenamente consolidado, cuja condição é de um ser saciado, solidário e amoroso. A seguir (Quadro 2.1 e Quadro 2.2) está resumido o conteúdo semântico dos adjetivos.

3

Contrariando as indiscutíveis certezas, o Atlas da ES (BRASIL, 2007) informa que a criação dos EES é pouco motivada por incitativos político-ideológicos. A motivação de maior freqüência é o desemprego, seguido de motivos ligados à renda, que somados chegam a 70%. Menos de 10% responderam estar motivados explicitamente por uma “causa” (ver tabelas na Seção 2.1.). A declaração dos motivos é uma resposta espontânea dos EES, com base em alternativas fornecidas em questionário.