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organizacional: a (des)organização solidária

ESQUEMA 3.2 – Modelo Organizacional Matriz de Autogestão Função Comercial Função Comercial

3.2 No país dos espelhos: a organização autogerida como antítese da organização capitalista

3.2.2 O lugar da (auto)gestão: o outro lado do espelho

A terceira figura da transição – o antagonismo – é a mais incômoda. As práticas de reconversão que definem a heterogestão recusam o antagonismo, por meio do controle da diferença. O que é uma operação de reconversão senão um processo de seleção pautado pela inclusão/exclusão? O que representa a reconversão senão o descarte daquelas alternativas que de tão antagônicas comprometeriam o sistema de exploração?

As práticas de reconversão apontam o reconhecimento seletivo da diferença enquanto alteridade, naquilo que permite incluir e/ou excluir, dados os limites do sistema. Esta função tem como característica ser o operador de toda inclusão/exclusão, ocupa um lugar específico que é aquele do poder e controle, fora e acima da organização, de onde se enuncia o re- conhecimento. Mas, se a operação seletiva promove as mudanças na forma da organização resguardando os limites do sistema, isto é, de sua reprodução nos moldes capitalistas, ela poderia potencialmente promover as mudanças para qualquer outra forma ou molde organizacional.

O paradoxo é que hetero-gestão e auto-gestão se ligam indissociavelmente porque ambas são práticas gestionárias. A diferença parece ser um poder discricionário de quem ocupa o lugar da gestão. De maneira que será preciso entender o significado de se ocupar este lugar específico, para verificar a possibilidade deste poder discricionário ser re-reconvertido, dando ensejo à organização autogestionária.

A gestão é o limite positivo da forma da organização: limite positivado do antagonismo no seio da organização social. Esta função de regulação da diferença, e manutenção de uma variabilidade suportável pela organização, representa, ao mesmo tempo, a possibilidade de reformá-la, recriá-la ou reinventá-la, ainda que dentro de certos limites. Tem-se, então, um lugar de convergência entre heterogestão e autogestão, tanto uma quanto outra paga seus tributos a isto que aqui se chama gestão: o lugar do poder e controle de onde se enuncia o que é e o que não é ‘organização’.

A heterogestão tem uma clara vantagem quando assume a forma da exploração. Isto lhe permite inventar um lugar de poder para fixá-lo: um ponto de onde uma voz soberana possa

falar para permitir e proibir, ou, mais exatamente, definir o desenho da organização, seu recorte e fronteiras, o que é nela incluído e o que dela é excluído. A autogestão, ao contrário, precisa negar uma enunciação como tal, ela não é nunca uma enunciação definitiva.

Este problema deriva da forma resultante do exercício do poder democrático na organização. Como define Lefort (1987), o poder democrático legítimo assenta em dois princípios aparentemente contraditórios: (1) o poder emana do coletivo (povo); (2) esse poder não é de ninguém (LEFORT, 1987, p. 76). Decorre daí que o lugar do poder – o lugar do soberano – não pode jamais ser ocupado; na impossibilidade de haver uma voz transcendente de comando, seu lugar deve permanecer sempre vazio. Não há aqui contradição, o que aparece é o caráter simbólico do poder: à medida que se delimita o espaço político, aparece a não coincidência do poder com os conflitos que o originam – este processo de simbolização, que opera o recorte do signo político, está na raiz da separação entre sociedade civil e Estado. Numa democracia, o problema da forma da organização social e das relações sociais que aí se instituem nunca se resolve completamente, e essa efervescência é o motor do processo democrático.

A distância estrutural entre poder e conflito está na origem de toda possível legitimação democrática – de toda lei aceita e sancionada pelo coletivo – e esta distância é habitada pelo antagonismo. É o antagonismo que se manifesta quando se abriga o vazio no lugar simbólico do poder; isto é, o problema da simbolização do poder democrático legítimo é a própria impossibilidade de simbolizá-lo, no sentido de torná-lo positivo a ponto de reificá-lo.

Na democracia, o recorte político assenta sobre esta impossibilidade. A aparente contradição é que o poder só ganha positividade quando se exercer por algo/alguém, mas, ao mesmo tempo, este algo/alguém é sempre incompleto, e, mais do que isso, impossível de ser completado: é somente um signo do poder – sua representação, à medida que toda representação tampona uma falta (ZIZEK, 1991; 1996). Não é uma contradição que aparece aqui, mas uma indeterminação: a impossibilidade do político recobrir a totalidade do social. É por isso que, no contrapé da democracia, o poder totalitário é aquele que deseja eliminar a distância e apagar todo vestígio de antagonismo: um povo-uno que coincide com um poder-uno – uma voz que enuncia: “a sociedade sou eu” (LEFORT, 1987, p. 78-84).

No totalitarismo, a forma ganha estatuto político e se mostra como forma de dominação. A democracia é a negação desta forma de poder, e, talvez, a negação do poder formal. Tem-se a instanciação permanente do poder, sem garantias formais absolutas, como aquelas bem conhecidas da tradição, carisma, e também do direito enquanto instituição inquestionável: trata-se de uma legitimidade sem permanência, dito de outro modo, uma legitimidade permanentemente renovada e questionada. Não há coagulação da forma de autoridade, por isso, tem-se a impressão de que o poder fica sem forma.

A analogia entre autogestão e democracia é, nesse sentido, muito esclarecedora. Na autogestão, o lugar da gestão é impossível de positivar, não pode ser ocupado realmente, sob pena de se cair na armadilha da heterogestão. Isto não quer dizer que não seja, de fato, possível que numa organização autogestionária alguém ocupe este lugar, mas o ocupante será severamente sabatinado e questionado: o vazio é um vazio simbólico, não efetivo. Dito de outro modo, é preciso ter o cuidado de nunca perder de vista que o exercício do poder autogestionário é sempre da ordem da representação, e que ninguém ocupa seu lugar de fato. Isto quer dizer que autogestão significa um esforço sempre renovado de esvaziar o lugar do poder, de impedir aí uma ocupação efetiva qualquer. Estamos no âmago da formalização, ou seja, do problema do lugar simbólico do poder, do político inscrito na forma da organização:

[...] a existência de um poder suscetível de obter a obediência e a fidelidade generalizadas implica certo tipo de divisões e de articulações, e ao mesmo tempo um certo tipo de representações, em parte explícitas e, em maior parte, implícitas, concernentes à legitimidade da ordem social. [...] Esse trabalho de legitimação ocorre, é operado pelos detentores do poder... Mas, antes de apreciá-lo, é necessário decifrar as condições que o tornaram possível, perguntar-se em cada caso dado que mudanças nos princípios de legitimidade, que remanejamento no sistema de crenças, no modo de apreensão da realidade permitiriam que uma nova figura de poder se desenhasse. E dizemos ‘figura’ para dar a entender que “é da essência do poder fazer-se ver e tornar visível um modelo de organização social”. (LEFORT, 1987, p. 79, grifo meu).

Entende-se, portanto, que o lugar da gestão coincide com este lugar do poder, de onde se desenha a forma de toda organização social. Forma que é sempre um recorte limitado pelo antagonismo inerente a toda organização. O poder é, então, a qualidade da gestão em que radica toda a possibilidade de reinvenção, seja ela uma reconversão capitalista ou uma re- reconversão autogestionária. O que aparece como diferença radical na reinvenção autogestionária é, por assim dizer, a constante democrática, que leva à desilusão com o poder.

É a eterna presença da precariedade e limites da própria forma da organização, que é sempre uma forma política a ser legitimada, mas, ao mesmo tempo, tem sua legitimidade sempre interrogada.

A autogestão inverte a heterogestão porque elimina a ilusão de um poder capaz de apagar o antagonismo, constrói o lugar propriamente político da gestão como lugar de um simples exercício de poder, submetido, incessantemente, ao escrutínio coletivo. Associar gestão e democracia é dar centralidade à dimensão ético-política inscrita na prática gestionária, enfatizando o sentido de práxis nela implicado. Diferenciam-se essencialmente autogestão e heterogestão, a primeira pertence ao domínio da práxis, a segunda ao domínio da técnica:

A técnica, tal como mostrou Aristóteles, caracteriza-se pela heterogeneidade de natureza entre meios e fins, entre o ato fabricador e o produto final; a práxis, ao contrário, caracteriza-se pela homogeneidade entre meios e fins – fins éticos exigem meios éticos, fins políticos exigem meios políticos. (CHAUÍ, 1992, p. 354).

Este é o significado da epígrafe desta seção. Uma frase de João Bernardo que sintetiza o sentido dado aqui para o termo práxis, a inseparabilidade da ação e de seu conteúdo, uma maneira sutil de negar o formalismo, e de recusar toda e qualquer atividade de reconversão ou recuperação:

[...] as formas de organização do movimento operário – refiro-me às formas de luta autônoma – são seu próprio conteúdo. (João BERNARDO apud TRAGTENBERG, 1986, p. 73).

O problema da forma democrática e autogestionária da organização é, portanto, o problema ético-político de construir uma práxis gestionária marcada pela inseparabilidade entre meios e fins, refutando as práticas da “gerência” e “gestores”. Mas, uma questão fundamental permanece em aberto. Para sustentar a efetiva ruptura com a exploração e alienação é preciso indagar de que maneira a organização democrática ganha forma. A superação do antagonismo entre a forma da organização e o vazio de poder precisa ser problematizada. Afinal, como se realiza a necessária precariedade formal da organização autogestionária? É possível pensar uma organização em que a atividade de formalização seja permanente?

PARTE II.