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A Lei de 1831: debates sobre os escravos africanos e suas representações

Flávia Campany do Amaral*

Introdução

Muito já se escreveu sobre a lei de 1831, que abolia o tráfico de escravos africanos no Brasil. Mas muito pouco ou quase nada se tem sobre de que forma são analisadas as representações do cativo africano diante das discussões parlamenta- res acerca dessa lei. É exatamente esta a pretensão deste trabalho.

Em 1831, em resposta ao tratado assinado em 1826, foi assinada a primeira lei que abolia o tráfico de africanos para o Brasil e que declarava livres todos aque- les que aqui chegasse a partir de então. Mas os anos que se seguiram marcaram uma intensa entrada de africanos no país. A lei assinada em novembro de 1831 foi descumprida e ignorada por traficantes e escravistas brasileiros. As décadas de 1830 e 1840 foram aquelas em que o tráfico de escravos se realizou com mais intensidade no país. A pressão inglesa e o temor de que a oferta cessasse, aliados à crescente demanda, inflamaram a atividade.

A experiência dos africanos no Brasil passou por transformações ao longo do século XIX. Essa constante incorporação de africanos recém-chegados foi ame- açada pela proibição do tráfico atlântico, resultado da assinatura de acordos inter- nacionais após a promulgação da legislação nacional. Todos sabem que, para ter sua independência reconhecida, o Brasil teve de assinar um tratado de abolição do tráfico com a Inglaterra em 1826, que entrou em vigor em março de 1830. Depois, o governo regencial promulgou uma lei nacional de proibição do tráfico, a lei de 7 de novembro de 1831, segundo a qual eram considerados livres todos os africa- nos que fossem trazidos para o território nacional.1 E esses africanos, como seriam tratados? Livres, seriam encaminhados de volta à África? Ou seriam considerados libertos porém estrangeiros no Brasil? São essas as respostas que pretendo encon- trar neste trabalho.

* Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense.

1 MAMIGONIAN, Beatriz. A abolição do tráfico atlântico de escravos e os africanos livres no Paraná através das fontes disponíveis no Arquivo Público do Paraná. Lançamento do “Catálogo Seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos” do Arquivo Público do Paraná. Curitiba, 03 de outubro de 2005.

A Lei de 1831- uma história de debates

Não havia nação mais envolvida na exportação, no transporte e na impor- tação de africanos do que Portugal. E, segundo afirma Bethel, o tráfico tornara- -se também a única atividade comercial da colônia, sendo o Brasil um dos maio- res importadores de escravos negros do mundo. O autor prossegue constatando que com toda a vida econômica do império ultramarino português na África e na América organizada com base no tráfico de escravos, o sentimento abolicionista era muito fraco em todo o mundo luso-brasileiro.2 Manolo segue essa linha de pensamento afirmando que o tráfico para o porto do Rio de Janeiro era altamen- te concentrado e que seu crescimento médio anual foi enorme, principalmente após a abertura dos portos. Ainda segundo ele, o comércio de escravos era, ao lado dos investimentos em prédios urbanos, da usura e das operações de importa- ção/exportação, um dos mais importantes negócios na vida econômica do Brasil.3 Desde 1810, afirma ele, D. João VI, pressionado pela Inglaterra, assinou tratados para, em um período gradual, colocar fim ao tráfico de escravos.4 Mas, segundo Riva Gorenstein, três séculos de escravidão contribuíram para cimentar a ideologia escravista na sociedade brasileira, de tal forma que nem o movimento que se de- senvolveu na Europa a favor da extinção da escravidão nem a pressão do governo inglês junto a D. João VI encontrou apoio por parte dos brasileiros e portugueses aqui radicados. Os setores dominantes da colônia, afirma Gorenstein, se opuse- ram veementemente às tentativas inglesas de obter a extinção gradativa desse comércio, não só por ele constituir uma atividade extremamente lucrativa, como também, e principalmente, pelo fato de a mão de obra escrava ser imprescindível para a manutenção do sistema produtivo brasileiro.5 Manolo Florentino, no tocan- te a esse assunto, afirma que o tráfico atlântico era uma variável fundamental para

2 BETHEL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: Grã-Bretanha, o Brasil e a ques- tão do tráfico de escravos. Rio de Janeiro/São Paulo: Expressão e Cultura/EDUSP, 1976. Pp. 15-18. 3 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. P. 201.

4 BETHEL, Leslie. Op. cit., p. 21.

5 GORENSTAIN, Riva. “Comércio e política: o enraizamento de interesses marcantis portu-

gueses no Rio de Janeiro (1808-1830)”, in MARTINHO, Lenira Menezes e GORENSTEIN, Riva. Nego- ciantes e caixeiros na sociedade da independência. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação, Divisão de Editoriação, 1993. Pp. 178/179.

a reprodução física da mão de obra cativa.6

A discussão sobre a abolição do tráfico de escravos chegou ao Brasil inde- pendente, na Câmara dos Deputados, e foi debatida exaustivamente, afirma Be- thel. Mas, em novembro de 1826, após intensa pressão por parte da Inglaterra (que atrelou o reconhecimento da independência do Brasil à assinatura do tratado), foi enfim assinado acordo regulamentando o fim do tráfico de escravos africanos, des- de que se fixasse o prazo de três anos para a abolição total.7 Segundo relata Denio Nogueira, em janeiro de 1824, enquanto as negociações brasileiras se estendiam infrutiferamente, as primeiras nações latino-americanas comprometiam-se a abolir o tráfico negreiro e tinham sua emancipação reconhecida pela Inglaterra.8 No mo- mento da independência não havia condições para a execução imediata do objetivo. Encerrar abruptamente o comércio negreiro poderia prejudicar a produção, cau- sando até mesmo um colapso na economia. Era necessário um prazo para se poder pensar em alternativas. A negociação se prolongou, e finalmente o reconhecimento inglês da independência não se deu tendo como condição primeira a abolição ime- diata do tráfico, em vez disso dando ao Brasil um prazo para cumprir o prometido. Para Luís Henrique Dias Tavares, o comportamento do governo brasileiro diante da questão foi sempre buscar uma solução que não causasse grandes estragos em sua economia, que era agrária e com base no trabalho compulsório. Portanto, mesmo sob pressão inglesa, o Império buscou e manteve um processo próprio e original, no qual cedia sem ceder e aparentava aceitar o que não cumpria, buscando sempre contornar exigências com outras compensações.9

O debate no Parlamento era intenso. No ano de 1826, por exemplo, apareceu o primeiro projeto de autoria do deputado Clemente Pereira. Segundo esse projeto:

O comércio de escravos acabará em todo o Império do Brasil no ultimo dia do mês de dezembro do ano de 1840, e desde esta época ficará sendo proibida a introdução de novos escravos nos portos do mesmo Império. Uma lei acomodada às circunstâncias da expressada época regulará a forma e modo de educar e em- pregar utilmente os mesmos libertos.10

Percebe-se, analisando os anais do Parlamento, que nas sessões seguintes a maioria dos deputados entendeu que, em se tratando de um projeto do governo,

6 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p.206. 7 BETHEL, Leslie. Op. cit., p. 69.

8 NOGUEIRA, Denio. Raízes de uma nação: um ensaio de história sócio-econômica compa- rada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. P. 306.

9 TAVARES, Luís Henrique Dias. “As soluções brasileiras na extinção do tráfico negreiro”, in Journal of Inter-American Studies, 9, n. 3, 1967, pp. 367-382.

o mesmo é que deveria tomar as medidas cabíveis para exterminar o tráfico. Como fica claro nas palavras do deputado Teixeira de Gouvea:

Como é público e constante que o governo fez um tratado acer- ca do comércio de escravos, sou de parecer que se pergunte ao governo se esta câmara pode ou não tratar deste objeto.11

No ano seguinte, 1827, novamente uma emenda foi proposta, desta vez pelo deputado Araujo Lima. Segundo ela:

O comércio da escravatura acabará no último dia de dezembro de 1829. Desta época em diante será proibida no Império do Brasil a introdução de negros novos, de um e outro sexo, ou vin- dos diretamente reexportados de outro qualquer porto. Todo navio brasileiro ou estrangeiro com carregamento de negros no- vos que for encontrado nas costas do Brasil, qualquer que seja a sua tripulação, será apreendido com toda a propriedade que se achar a bordo. Vendido em hasta pública, metade de seu pro- duto será aplicado para a manutenção dos negros nele achados, que serão considerados livres. Enquanto não se faz uma lei que regule o destino destes africanos, ao governo pertence prover sobre o seu bem ser, e ao juiz dos órfãos dar-lhes curador e to- mar consentimento de semelhantes causas.12

Ainda na mesma sessão, aparecem relatos de deputados mais uma vez a favor de que o Estado brasileiro é que fizesse a lei. Nas palavras do deputado Vas- concellos:

Eu me oponho à urgência por ser desnecessária. E publico nesta cidade que está concluído o tratado de abolição do comércio da escravatura. E por consequência nada mais se vai fazer com essa lei do que perder tempo com a sua discussão. O tratado já está concluído, sem que a assembleia se metesse nisso: foi o go- verno quem o fez, como bem o sabe a nação; e por isso se ele é malfeito, fica responsável o ministro. Ao poder executivo é que compete fazer esses tratados, e se ele procedeu na forma de constituição, o remédio está na mesma constituição. Portanto não vamos perder tempo, deixemos de tratar deste projeto e

11 Anais do Parlamento - Câmara dos Deputados - Sessão de 24 de maio de 1826. 12 Anais do Parlamento - Câmara dos Deputados - Sessão de 14 de maio de 1827.

esperemos pelo tratado.13

Ainda em 1827 chegou à Câmara dos Deputados um documento redigido pelo imperador D. Pedro I em que ordenava o fim do tráfico de escravos no Brasil, seguindo um acordo feito entre Brasil e Inglaterra. Segundo o documento:

Sua Majestade o imperador me ordenou que remetesse a V. Ex. para fazer presente na Câmara dos Deputados a cópia da con- venção para a final abolição do comércio de escravatura, a qual foi assinada nesta corte pelos respectivos plenipotenciários, em 23 de novembro do ano passado, o que se acha já ratificado por Sua Majestade, o imperador, e Sua Majestade britânica. (...) Determinou-me Sua Majestade Imperial que fizesse a seguinte exposição:

”Acabados três anos depois das ratificações do presente tratado, não será lícito aos súditos do Império do Brasil fazer o comércio de escravos na costa d’África, debaixo de qualquer pretexto ou maneira qualquer que seja. E a continuação deste comércio fei- to depois da dita época por qualquer pessoa súbdita de S.M. Imperial será considerado e tratado de pirataria.”14

Até 1830, segundo José Murilo, o governo apenas resistiu às pressões, con- vencido da inviabilidade política de qualquer ação efetiva para extinguir o tráfico de escravos. Até mesmo um político abertamente contrário à escravidão, como José Bonifácio, recusou-se a cumprir a exigência feita por Canning de abolição ime- diata do tráfico. Para José Bonifácio, o custo de tal medida seria mais alto do que o de sua rejeição, redundando num autêntico suicídio político.15

Segundo José Murilo, em 1831, um ano após o convencionado pelo trata- do de 1826, o governo decidiu finalmente aprovar uma lei antitráfico, pela qual o comércio negreiro se tornava pirataria e, como tal, seria combatido. No entanto, a sequência dos acontecimentos mostrou que a lei era literalmente para inglês ver, pois não foram tomadas medidas concretas para implementá-la. Ainda segundo o autor, houve, de fato, nos anos imediatamente posteriores, redução na entrada de escravos, mas a redução pode ser atribuída antes ao grande aumento na im-

13 Anais do Parlamento - Câmara dos Deputados - Sessão de 14 de maio de 1827. 14 Anais do Parlamento - Câmara dos Deputados - Sessão de 22 de maio de 1827.

15 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. P. 294.

portação de escravos que se seguiu ao tratado de 1826.16 Seguindo essa linha de pensamento, Robert Conrad afirma que durante o debate sobre a lei no Parlamen- to, o governo ordenou às câmaras municipais e aos presidentes provinciais que emitissem circulares para os juízes de paz de suas jurisdições ordenando que eles e a polícia local exercessem vigilância contra o tráfico e que investigassem atividades ilegais. Conrad ressalta também que após dez dias da publicação dessas instruções pelo governo, foi apresentado ao Senado Imperial um projeto de lei para confirmar a validade do tratado de 1826, e os debates que se seguiram, afirma o autor, foram de um liberalismo espantoso. Segundo ele, poucos senadores opuseram-se aber- tamente à legislação, cujo objetivo maior era a libertação de todos os escravos que entrassem a partir de então no Império. Mas o problema, afirma Conrad, era que o governo imperial jamais havia pretendido executar seriamente a proibição do tráfico de escravos. A maioria dos parlamentares brasileiros alertava que a liberta- ção dos escravos que haviam sido trazidos ao Brasil desde março de 1830 causaria desordens indescritíveis.17

O primeiro artigo da lei de 1831 declarava categoricamente que todos os escravos que entrassem no Brasil a partir dessa data seriam livres salvo duas exce- ções: se fossem registrados em serviço de navios nos quais era legal a escravidão e se houvessem fugido de navios ou territórios estrangeiros, quando então deveriam ser imediatamente devolvidos. A lei prosseguia com uma ampla gama de artigos identificando como culpados aqueles que tivessem alguma relação com a importa- ção ilegal de escravos. As penalidades incluíam até nove anos de reclusão e multas de 200 mil-réis por cada escravo importado ilegalmente, mais o custo de mandá-lo de volta à África. Além disso, todos os que tivessem algum tipo de envolvimento com o comércio, até mesmo os que comprassem esses africanos, eram caracte- rizados como importadores e, portanto, culpados. A letra da lei, então, continha o artigo no qual estava descrito que mesmo os fazendeiros, se envolvidos com a compra de africanos após 1831, estariam expostos a punições (daí o fato de essa lei ser considerada bem mais abrangente que a Eusébio de Queirós, de 1850, que não considerava réu de crime aquele que comprasse ilegalmente africanos impor- tados). O décimo artigo da lei autorizava os africanos que acreditassem terem sido importados após a proibição do tráfico a se apresentarem pessoalmente às auto- ridades legais, que iriam interrogar seus senhores. Apesar, porém, da ameaça de pesados castigos tanto para importadores quanto para compradores de escravos contrabandeados, o tráfico continuou. Entre 1831 e 1837, o governo liberal brasilei- ro tomou medidas para fazer vigorar a proibição desse comércio, mas a verdade é que, durante mais duas décadas depois de 1831, o tráfico africano prosseguiu com

16 CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 294.

17 CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasi-

liberdade quase completa e o conhecimento total da maioria dos regimes brasilei- ros, afirma Conrad.18 Como já foi dito anteriormente, a promulgação da lei de 1831 não significou o fim definitivo do tráfico, nem acabou com as discussões sobre as transformações nas relações escravistas. Pouco tempo depois já se assinalava um assustador aumento no número de africanos vindos de Moçambique, Congo e An- gola.19

As representações dos escravos africanos na lei de 1831

Até as primeiras décadas do século XIX, em Portugal e nas colônias portu- guesas, o termo raça estava associado a religião e a descendência. Era o chamado “estatuto da pureza de sangue”. Essa concepção da ordem social estruturou as re- lações entre os portugueses e os povos da África e das Américas. Segundo a lógica do antigo regime português, quem não professasse ou fosse recém-convertido à fé católica era considerado descendente de “raça infecta”, gente de “sangue impuro”. O estatuto de pureza do sangue limitava o acesso de determinados grupos sociais, como ciganos, indígenas, negros e mulatos, a cargos públicos, eclesiásticos e a cer- tas irmandades religiosas, assim como às titulações de barão e conde. Desse modo eram garantidos os privilégios da nobreza europeia, formada por cristãos velhos. Era, portanto, a religião e o nascimento que justificavam as desigualdades sociais. Ao longo do século XIX, a discriminação fundamentada na religião e na descendên- cia foi perdendo terreno, e os critérios de diferenciação racial ganharam o sentido moderno, “científico”, que o termo raça passou a incorporar.20 Segundo Appiah, esses traços e tendências característicos de uma raça constituem, segundo a visão racialista, uma espécie de essência racial, e faz parte do teor do racionalismo que as características hereditárias essenciais das “Raças do Homem” respondam por mais do que as características morfológicas visíveis - cor da pele, tipo de cabelo, feições do rosto –, com base nas quais formulamos nossas classificações informais. O racialismo está no cerne das tentativas do século XIX de desenvolver uma ciência da diferença racial, mas parece ter despertado também a crença de outros – como Hegel anteriormente, e Crummell e muitos africanos desde então – que não ti-

18 CONRAD, Robert Edgar. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2º edição. Rio de Janei-

ro: EDITORA?, 1978. P. 33.

19 AZEVEDO, Flora Coelho e CAÉ. Rachel da Silveira. “Um conflito de interpretações: a lei

de 1831 e o princípio de liberdade na fronteira sul do Brasil”, in Revista Eletrônica Cadernos de História, vol. VII, ano 4, n. 1, julho de 2009.

20 ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro e FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil.

nham nenhum interesse em elaborar teorias científicas.21

No Brasil, sabe-se, por meio de debates no Parlamento, que o africano que entrasse no país após a lei de 1831 seria considerado livre, porém estrangeiro. Portanto, ele não conseguiria de imediato se tornar um cidadão. A Constituição de 1824 previa que para um estrangeiro se tornar cidadão ele deveria se naturalizar brasileiro. Mas, segundo a mesma constituição, a lei é que determinaria as qualida- des que um estrangeiro deveria ter para se tornar um cidadão brasileiro.22 Conse- guiria então um africano, agora considerado liberto pela lei de abolição do tráfico de 1831, se naturalizar brasileiro e, portanto, ser considerado cidadão? Respondo a essa pergunta com uma passagem de Joaquim Nabuco:

“A história dos africanos livres de uma e outra categoria é uma das páginas mais tristes da escravidão entre nós, além do mais, porque tudo se fazia em violação de tratados, de solenes com- promissos, que o governo tomara de garantir a liberdade dos africanos que lhe eram entregues pelas comissões mistas. A dis- tribuição de muitos deles entre homens públicos importantes facilitava os abusos, abusos que se pode resumir dizendo que em grande parte aqueles africanos livres foram fraudulentamente incorporados à escravatura. Tudo que a esse respeito alegava a delegação inglesa, nas suas reclamações por mais de trinta anos é pura verdade: todos os artifícios que eram empregados para converter os escravizados, de fato em escravos legais, que tives- sem, eles e sua descendência, todo o valor venal. O governo não podia ainda, quando a ferida do tráfico estava para cicatrizar, inventar processos e ações por causa desses africanos perdidos em mãos de particulares. Os interesses fundados na proprieda- de escrava não seriam, talvez, mas eram tidos como mais fortes do que o governo. A escravidão era o fundamento da oligarquia política dominante, oligarquia consolidada, inteligente e patri- ótica, mas cujo sentimento em relação à propriedade sobre o homem estava tão longe de ter acordado como na democracia escravista da América do Norte. Os escravos livres eram uma forma de socialismo de Estado que depois revestiu tantas ou- tras; os escravos livres a quem queria fornecer; eles passavam

21 APPIAH, Kwame Antony. Na casa de meu pai - A África na filosofia da cultura. Rio de Ja-

neiro: Contraponto, 1997. P. 33.

22 Constituição política do Império do Brasil - Carta de Lei de 25 de março de 1824. Título