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libertos pela Guerra (Revolução Farroupilha, séc XIX) Daniela Vallandro de Carvalho*

Havia-se passado quase um ano e meio da assinatura do Tratado de Ponche Verde1 e as coisas pareciam ter tomado seus lugares na província de São Pedro. A vida daquela população tão onerada pelos longos dez anos de guerra já tinha adquirido contornos de normalidade. No entanto, os 16 meses passados não pare- ciam ter sido suficientes para sepultar de vez os temores das autoridades imperiais quanto aos destinos de muitos daqueles que pegaram em armas contra o menino- -imperador. O golpe da maioridade teve por finalidade acelerar a existência, entre os súditos do jovem império, de uma figura onipotente que representasse a cen- tralização do poder e pusesse ordem naqueles anos tumultuados e pontuados de revoltas pelo vasto Império Brasileiro.

A figura do Barão de Caxias foi fundamental para o armistício. Ele acumulou os cargos de presidente da província sulina e Comandante das Armas2 -, fato que por si só denotava a importância no tocante às articulações, estratégias e arranjos políticos necessários aos acordos que resultaram no fim da guerra. 3 O tamanho acúmulo de responsabilidades lhe colocou em uma desconfortável posição de co- mando e controle de todos os encaminhamentos do pós-guerra. Suas correspon- dências para o ministro da Guerra pós-deposição das armas tentavam dar conta de demonstrar que suas resoluções estavam indo conforme o previsto. No entan- to, é neste mesmo conjunto documental que podemos ter a dimensão dos apazi- guamentos que a província sulina e as autoridades imperiais estavam a buscar. E, passado um ano e quatro meses do armistício, certa intranquilidade ainda pairava sobre a província sulina: as agitações escravas e os destinos dos homens que pega- ram em armas, dois elementos muitas vezes entrelaçados.

* Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social/UFRJ. Bolsista Capes.

1 O Tratado de Ponche Verde data de 1º/03/1845 e pôs fim à Revolução Farroupilha, a mais

longa revolta regencial do Império Brasileiro.

2 Caxias assumiu o Comando das Armas em 09 de novembro de 1842.

3 Sousa sugere que a esta época, Caxias não estava muito satisfeito com o imperador. Ele

vinha de duas campanhas, nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, nas quais obtivera vitória e no entanto não se sentia retribuído à altura. Tudo o que ganhara fora “meio-posto”, ou seja, a gra- duação no posto de Marechal de Campo. Vale lembrar que Caxias fez uso do Partido Conservador, neste momento, ao aceitar o comando das armas no sul para alavancar sua carreira, assim como o partido usou-o para projetar seu projeto nacional. In: SOUZA, Adriana Barreto. Duque de Caxias. O Homem por trás do Monumento. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, pp. 401- 405.

Entre as tantas correspondências existentes, há uma datada de 10 de junho de 1846 (uma cópia) que consiste em uma ordem do conde de Caxias em conjunto com o chefe de polícia da província do Rio Grande do Sul4 encaminhada ao Minis- tro e Secretário dos Negócios da Guerra, o Sr. João Paulo dos Santos Barreto, que relatavam que na cadeia da capital da Província achavam-se dois pretos, de nomes Victório Pereira Palácios e João Ferreira dos Santos Elisia, e que ambos se diziam libertos e naturais do Estado Oriental. A ordem era de que esses pretos fossem remetidos à corte e ficassem à disposição do referido ministro. A justificativa para tal proceder foi expressa na seguinte frase:

Não podendo colher mais outras informações a seus respeitos, mando seguir para a Corte à disposição de Vossa Excelência para lhe dar o destino que julgar conveniente, visto que julgo

perigosa a sua conservação nesta Província sendo como tais, considerados libertos (Grifos meus) 5.

Junto a este documento encontramos outra correspondência datada de 09 de junho de 1846, remetida pelo vice-presidente da província, o Sr. Patrício Correa da Câmara, ao chefe de polícia interino, Manoel José de Freitas Travassos, pela qual passamos a entender melhor esta história .6 É nessa correspondência que se esclarece um pouco mais a preocupação do conde de Caxias em remeter os ditos pretos à Corte. Victório e João haviam chegado à capital junto com o 8º Batalhão de Caçadores, após a pacificação da província. Foram interrogados e presos na ca- deia da capital, onde permaneciam até aquela data, isto é, aproximadamente um ano e quatro meses depois.

Esses dois pretos que se diziam libertos haviam lutado durante a Revolução Farroupilha ao lado dos rebeldes e foram pegos ao findar da guerra pelos soldados legalistas, por isso se encontravam juntos ao 8º Batalhão de Caçadores. São os mesmos pretos que fornecem informações sobre si próprios:

Victório Pereira Palácio disse que era natural do Departamento de Durazno, filho de José Pereira e Petrona Silva, de idade de 27 para 28 anos, e que fora preso 20 dias antes da pacificação por um tenente em Piraí Grande, em casa de João Fonseca de Araújo, e João Ferreira dos Santos Elisia que era natural de Mon- tevidéu, filho de José Camargo, e de Josefa, e que fora preso em

4 O documento é uma cópia e não tem remetente, mas lendo-o percebemos tratar-se de

uma ordem do conde de Caxias. Fonte: Arquivo Nacional, Série Guerra, IG1 178.

5 Fonte: Arquivo Nacional, Série Guerra, IG1 178.

Taquarembó, por um cabo e dois soldados. 7

Inúmeras dúvidas pairaram sobre suas falas e as autoridades policiais e pro- vinciais trataram de lhes dar providenciar destino, já que estavam a dando “des- pesas à prisão”. No que deixa transparecer, os mesmos só não foram remetidos antes por “falta de ocasião de remessa”. Mas certamente não foram somente as despesas na prisão que motivaram suas remessas à corte imperial. O fato de esses negros terem sido soldados e estarem sob a condição de libertos - não era exata- mente uma situação confortável - para as autoridades que, além de administrar os problemas e desgastes (financeiros, políticos) de um longa guerra, precisavam apaziguar os ânimos dos grupos subalternos, sobretudo das escravarias e de seus proprietários, que por um longo tempo conviveram com um misto de discurso e práticas dantes não vista na província sulina. Os grupos em litígio utilizaram lar- gamente escravos armados e isso não consistia novidade para as elites envolvidas na guerra. No entanto, as situações que tal uso desencadeou e à proporção que tomou foi, sim, um problema a mais a inédito a ser administrado. Sobretudo por- que o uso de escravos, até onde sabemos, foi maior por parte dos Farroupilhas, e, tendo sido uma guerra perdida por rebeldes farrapos, a viabilidade da paz passou a ser também mediada por essa questão. Isto é, a concessão da liberdade condicio- nada pela participação fardada na guerra não implicava uma proposta de abolição das escravarias sulinas, nem em nada se aproximava disso. Esse entendimento era unânime aos olhos das elites, tanto as que propuseram tal acordo (os farroupilhas) como aqueles que, pós-pacificação, tiveram de lidar com a situação (as autoridades provinciais a serviço do império).

No entanto, nada impedia que, ao longo da guerra, escravos e libertos rein- terpretassem a sua maneira os inúmeros discursos que seus ouvidos se acostuma- ram a ouvir nos campos de batalha. Não estamos querendo dizer que os ideais que circulavam naqueles anos belicosos fossem discursos vazios, pelo contrário, eram carregados de significados, tanto para aqueles que os enunciavam, como para aqueles que os recebiam, e não nada impedia que os escravos os reinterpretassem a sua maneira, tirando deles proveito para suas condições subalternas. 8 Essa guer- ra que não era deles, mas podia se tornar, já que ela era inevitável. Como explica Mattos: “Numa situação de conflitos armados e ampla circulação de idéias de li- berdade, constitucionalismo, república e igualdade perante a lei, a legitimidade da

7 Fonte: Arquivo Nacional, Série Guerra, IG1 178.

8 Aladrèn verifica essas apropriações de que estamos falando para o contexto de indepen-

dência da Banda Oriental, em que o discurso artiguista, já avançado para a época, foi forçado aos seus extremos, adquirindo para os grupos subalternos um conteúdo “radical e potencialmente desestabilizador do status quo”. In: ALADRÈN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do Sul. Al- forrias e inserção social de libertos em Porto Alegre (1800-1850). Rio de Janeiro, FGV, 2009, p. 150.

escravidão era posta à prova, em termos gerais e na prática cotidiana”. 9

Nesse sentido, o temor das elites se justificava plenamente, pois sabiam que a dimensão alcançada da idéia de conceder liberdade mediante a participação far- dada a estes escravos extrapolava o número de homens/escravos que haviam pego em armas. Tal situação havia, sobretudo, se tornado uma onda subjetiva e difícil de conter.

Por isso era recomendável afastar esses homens do seio da província, que, pois como libertos e ex-guerreiros, poderiam no mínimo atrapalhar as autoridades na condução do que achavam viável no pós-guerra. Elemento que não pode ser desprezado nessa composição de fatores era a existência de uma larga faixa de fronteira que naqueles anos aos poucos voltava a ficar convulsionada. A abolição da escravatura em quase todo o território do Uruguai, em 1842, e as lutas intesti- nas que lá eram travadas reforçavam as relações historicamente construídas com o lado de cá da fronteira, solidificadas durante a Farroupilha. 10 A remessa de Victório e João à corte, se dimensionados dentre essa teia de conjunturas, adquire um sen- tido estratégico e político para as autoridades imperiais: dispersar possíveis focos de idéias subversivas, fossem elas quais fossem.

Ao introduzir este artigo com a história dos pretos Victorio e João pretendo pôr em relevo algumas questões que considero pertinente no emprego de escravos como soldados, partindo do destino a ser dado a estes, passando pela concessão ou não da alforria condicionada pela farda e chegando à incorporação dos mesmos como soldados no Exército imperial do pós-guerra. Os problemas decorrentes do emprego de escravos como soldados, já conhecido desde os tempos coloniais, pa- recem não ter ensinado às elites provinciais sulinas e autoridades imperiais a lidar com a situação.

9 MATTOS, Hebe M. “Apresentação.” In: ALADRÉN, Gabriel. Liberdades negras nas Paragens do Sul. Alforrias e inserção social de libertos em Porto Alegre (1800-1850). Rio de Janeiro, FGV, 2009, pp. 09-10.

10 Sobre a importância da região fronteiriça sulina, as relações com o processo abolicionista

no Uruguai e as constantes re-escravizações ilegais de pretos livres, ver as seguintes disserta- ções: CARATTI, Jônatas Marques. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense no contexto das leis abolicionistas uruguaias (1842-1862). Dissertação de Mestrado, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2010, e LIMA, Rafael Peter de. “A Nefanda pirataria de carne humana”: Escravizações ilegais e relações políticas na fronteira do Brasil meridional (1851-1868). Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. Também os importantes trabalhos de Grinberg, como: GRINBERG, Keila. “Es- cravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831 e o ‘princípio da liberdade’ na fronteira sul do Império brasileiro”. In: CARVALHO, José Murilo (org.). Nação e cida- dania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

No entanto, antes de discorrermos sobre essas questões, breve comentário merece ser feito sobre as fontes documentais utilizadas. Se trabalhar com trajetó- rias de escravos à primeira vista parece extremamente sedutor, em grande parte pela facilidade com que nos aproxima das vidas cotidianas desses homens, tal tare- fa não se dá sem uma complexa e demorada busca por rastros, bem como por uma posterior infinidade de costuras documentais. A tessitura da trama da vida destes escravos tem sido feita como os documentos mais variados, entre correspondên- cias de autoridades provinciais e imperiais, processos criminais, documentação de polícia, inventários de seus senhores, etc. 11 É importante destacar também a do- cumentação referente às instituições militares existentes na corte imperial àquela época, locais onde tínhamos algumas referências e muitas suposições que indica- vam ser o lugar para onde teriam sido remetidos muitos libertos devido a guer- ra no sul. Trata-se de documentação do Arsenal de Guerra, Fortalezas e Hospital Militar. E, de fato, muitos estavam por lá. Como Salvador Braga, africano que logo vocês conhecerão um pouco aqui. 12

Uma já vasta bibliografia tem dado conta de pensar as condições militares dos exércitos e o recrutamento de homens livres pobres para as tropas coloniais e imperiais. 13 É essa mesma bibliografia tem referendado que a maioria desses homens que lutaram nos exércitos do séculos XVIII e XIX foi recrutada pelo uso 11 Vale ressaltarmos também que nem todas as trajetórias em que estamos trabalhando

apontam para a mesma direção, bem como nem todos os libertos foram remetidos à corte ou entregues às autoridades militares imperiais no findar da guerra. Alguns se perderam no caminho (fugas, deserções), outros foram “resgatados” por seus senhores, alguns, ainda, morreram em meio à guerra, e outros continuaram na província sulina ao lado de seus “protetores”, tecendo re- lações que acreditavam pertinentes para suas vidas, operando numa margem pequena de escolha muitas vezes, mas mesmo assim, de alguma forma, movendo-se, dentro dos limites que o sistema lhes impunha. São experiências que se caracterizam pelos destinos plurais, moldadas pelas con- tingências do próprio trajeto, das possibilidades encontradas pelos atores, pelas contingências dos contextos históricos.

12 Estas correspondências são muito diversas, bem como as instituições em que se encon-

tram. Aqui utilizo documentação basicamente do Arquivo Nacional, Série Guerra, em que as cor- respondências em geral são trocadas entre presidente da província do RS e ministro da Guerra. No entanto, é válido esclarecer que nesses maços existem muitas cópias de outras correspondências, entre chefe de Polícia do RS e Ministro da Guerra, entre autoridades militares no RS e Presiden- te de Província do RS, entre Presidente de Província do RS e autoridades militares na corte, isto é, muitas vezes, meandros dessas “negociações” de guerra, que, com um pouco de esforço do pesquisador, são muito úteis no entendimento das relações e das intenções que tais documentos queriam expressar.

13 Ver como exemplos da vasta bibliografia: SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965; FRANCO Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 2ª edição, São Paulo, Ática, 1976; BEATTIE, Peter. The Tribute of Blood. Army, Honor, Race and Nation in Brazil, 1864-1945. Durham and London, Duke University Press, 2001.

coercitivo da força. 14 Semelhante processo de recrutamento ocorreu com a cria- ção de batalhões de libertos em geral, durante os impérios coloniais, espanhol e português nas Américas, bem como no processo de independência do Brasil e mesmo depois. 15 Essas soluções tiveram caráter emergencial, tendo sido muito delas mais idéias pragmáticas e urgentes do que projetos pensados para conceder liberdade aos seus participantes e para incorporá-los aos exércitos após o término dos conflitos. No entanto, apesar de notória importância na construção das defe- sas territoriais e políticas nas Américas, o recrutamento de escravos, bem como as motivações e interesses envolvidos nesse processo ainda carecem de maiores estudos, sobretudo por uma questão metodológica que percebemos necessária, uma vez que tem se mostrado equivocado comparar as motivações e interesses de homens livres pobres sujeitos ao recrutamento com a incorporação de escravos às fileiras militares. Aladrèn, ao trabalhar com as inserções sociais de pardos e pretos forros nas paragens do sul, no contexto das guerras cisplatinas, alerta: “Uma histó- ria social da participação negra nessas guerras ainda não foi feita”. 16 E ressaltamos que tampouco na guerra civil Farroupilha. Só a Guerra do Paraguai tem recebido a devida atenção dos historiadores.

O uso de escravos recrutados (à força ou como voluntários) em batalhões dos exércitos brasileiros gerou duas questões importantes e distintas: uma dizia respeito à concessão de liberdade a esses indivíduos. A manumissão como prêmio de guerra foi oferecida e nem sempre cumprida, mas em algumas situações se efetivou.

Uma segunda situação dizia respeito à incorporação, como soldados, desses indivíduos egresso do cativeiro em pé de igualdade com àqueles homens que já fa- ziam parte do Exército. 17 Via de regra, mesmo com a extinção da colonial e lusitana idéia de divisão racial no seio das Forças Armadas (ancorada no preceito da nobre- za e pureza de sangue, vigente no antigo regime) nos oitocentos a prática da segre- gação racial e o temor do que a extinção desta prática poderia gerar continuaram

14 Ver: MENDES, Fábio Faria. “Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento militar no

Brasil nos séculos XVIII e XIX.” In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Org.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro, FGV, 2004.

15 Há várias situações, mas citamos, por exemplo, os batalhões conformados por Artigas,

e no caso português, os 1º e 2º batalhão de Libertos pertencentes ao Exército Português coman- dado por Lecór nas guerras cisplatinas; os batalhões de Libertos Constitucionais e Independentes do Imperador, comandados por Labatut na Bahia, bem como uma parte do Exército Pacificador.

16 ALADRÈN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do Sul. Alforrias e inserção social de libertos em Porto Alegre (1800-1850). Rio de Janeiro, FGV, 2009, p. 142.

17 KRAAY, Hendrik. “‘Em outra coisa não falavam os pardos, cabras e crioulos’. O ‘recruta-

mento’ de escravos na guerra de Independência na Bahia (1822-1823)”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Humanitas Publicações, vol.22, no. 43, 2002.

a existir. Sempre foi um problema para os soldados oriundos de camadas livres po- bres a equiparação ou a simples presença e convivência hierárquica com indivíduos egressos do cativeiro. Não só eles, a sociedade como um todo aceitavam a escravi- dão e a reproduziam enquanto instituição que sustentava as elites brasileiras, mas a repudiavam na medida em que esta pudesse se aproximar de seu status quo ou nele interferir. Em que medida a concessão de alforria pela participação na guerra foi mais rotineira que a incorporação desses indivíduos no Exército (pós-conflitos)? É uma pergunta pertinente e acreditamos que a resposta a isso está relacionada ao que as elites desejavam (ou não desejavam) para aquele Estado que se construía.

A necessidade do uso de escravos em guerras gerou problemas maiores do que aquilo que o Estado acreditava poder resolver. Conceder alforrias a grupos res- tritos de escravos ou incorporá-los todos ao exército? E, caso fossem incorporados às tropas, seria isso uma estratégia do estado imperial para continuar a manter cer- ta vigilância sobre esses negros politizados? Difícil decisão as autoridades teriam de tomar. Talvez - a demora em decidir o rumo dos escravos lanceiros entregue a Caxias - 18 (aqueles que foram remetidos à Corte Imperial) no findar da guerra Farroupilha - aponte para o fato de que nem mesmo as autoridades sabiam o que fazer e estavam divididas quanto a esta questão, o que demonstra a dimensão da importância da mesma.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, ao falar dos processos de distin- ções entre grupos sociais e da forma como esses processos são mediados e cons- truídos na dialética relacional com o outro, afirma o seguinte: “Os sinais diacríticos, devem se opor, por definição, a outros do mesmo tipo”. 19 Em outras palavras, naquele universo social complexo, os soldados oriundos de camadas livres pobres não aceitavam uma identificação sócio-profissional para com indivíduos egressos do cativeiro, pelo simples fato que não os consideravam iguais. Marcavam suas diferenças pelo que lhes parecia mais apropriado e adequado e, nesse sentido re- correriam ao componente racial (e toda a carga discursiva e estereotipada que a discussão carrega) como um elemento diferenciador. Pois, ainda segundo a antro- póloga: “Não se contrasta religião com um tipo de roupa, mas religião com reli- gião, e roupa com roupa (...) não se leva para a diáspora todos os seus pertences. Manda-se buscar o que é operativo para servir de contraste”. 20

18 Um grupo de noventa escravos que fizeram parte dos dois Corpos de Lanceiros do Exér-

cito Farroupilha foi entregue ao barão de Caxias e remetido à corte imperial. Mas também outros tantos foram remetidos em pequenos grupos ou mesmo individualmente, nos anos posteriores ao fim da guerra. Dentre a documentação pesquisada, já localizamos mais 15 escravos na condição