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4. AS LEIS EDUCACIONAIS MOÇAMBICANAS E PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA DE RAWLS

4.3. A lei 4/83 do SNE e princípios de justiça de Rawls

Antes de entramos no escopo das discussões da aprovação de nova lei do SNE faremos uma analise do sistema político, instaurado pelo governo da FRELIMO, logo após a independência, uma vez que o sistema educacional esteve sempre associado às inspirações das políticas marxistas leninistas e das experiências da educação nas zonas libertadas durante a luta de libertação nacional. A ausência de uma norma específica contendo os princípios, fundamentos e objetivos da educação desde 1975, obrigou o governo em 1983 aprovar a lei do Sistema Nacional de Educação no país. Apesar da constituição de 1975 conceber a educação como um direito social público, Moçambique, como tantos outros países africanos, se transformou, nos primeiros anos da sua independência, em “Estado de Partido Único, fortemente autoritário, centralista, neopatrimonial e não institucionalizado” (UACIQUETE, 2012, p. 51).

Portanto, vivia-se no país uma aparente democracia caracterizada por uma

“política formal de clientelismo, relações personalizadas entre as elites e povo”. (UACIQUETE, 2012, p. 51). Estas características contradizem com princípios fundamentais de uma sociedade democrática e liberal, pois o ideal de uma sociedade democrática é o respeito pelos direitos fundamentais (liberdade e igualdade), considerados pressupostos para uma base constitucional estável e duradoura. Ate

porque, para Rawls:

uma sociedade democrática é aquela que as pessoas cooperam como cidadãos livres e iguais e que sua cooperação gera (no caso ideal) uma estrutura básica justa, com instituições fundamentais que realizam os princípios de justiça e dão aos cidadãos meios polivalente de satisfazer suas necessidades como cidadãos.

Sua cooperação deve assegurar justiça política uns aos outros (RAWLS, 1999, p. 86).

Portanto, é dentro deste quadro de Estado de partido único que foi definida, planificada e aprovada a lei 4/83 do Sistema Nacional de Educação. Assim, esta lei passa a ser um instrumento jurídico onde se estabelecem os fundamentos, princípios e objetivos da educação na Republica Popular de Moçambique. Seguindo esta lógica, podemos afirmar que a aprovação da nova lei do Sistema Nacional de Educação 4/83 foi concebida a luz de um regime socialista fortemente centralizado e autoritário.

Apesar das características políticas do estado pós-colonial elencadas acima, uma das grandes inovações que a nova lei 4/83 trouxe foi o reforço da ideia de educação como um direito social publico, assente na igualdade de oportunidades para todos, como vem explícito abaixo:

Art.1. Capitulo 1 na sua alínea a) a Educação é um direito e um dever de todo o cidadão, o que se traduz na igualdade de oportunidades de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente e sistemática de todo povo.

Portanto, o artigo 1 do da lei 4/83 na sua alínea a) demonstra que há uma relação direta com os valores democráticos defendido por Rawls, ao incorporar o principio da igualdade equitativa de oportunidade no acesso a educação, demonstrando o respeito e o cumprimento integral do segundo principio de justiça. Isso porque uma das formas de promover a igualdade é possibilitar o acesso à educação para todos, para que tenham a possibilidade de alcançar as posições sociais mais proeminentes. Decorre igualmente deste principio:

a prevenção de acumulo de bens pelos indivíduos e a promoção e sustentação de oportunidades iguais para todos. Caso isso não aconteça: os excluídos estariam certos em sentir-se tratados injustamente, mesmo que se beneficiassem dos maiores esforços daqueles autorizados a ocupá-las, ou seja, os direitos são de certa forma consagrados dentro da estrutura básica como um sistema público de regras que definem um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios e atribuindo a cada certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. (RAWLS, 2002, p. 90).

Outro ponto importante em nossa análise, diz respeito à escolaridade obrigatória.

Diferentemente do Ato Colonial de 1930 a lei 4/83 do SNE passa a determinar escolaridade obrigatória para educação básica no país como se pode notar abaixo.

Art. 6. Escolaridade obrigatória

1. A frequência e conclusão das sete classes no ensino primário é obrigatórias.

As crianças moçambicanas devem ser obrigatoriamente matriculadas na 1ª classe no ano em que completam sete anos de idade.

2. Os pais, a família, as instituições econômicas e sociais e os órgãos do Poder Popular a nível local contribuem para o sucesso da escolaridade obrigatória, promovendo a inscrição das crianças em idade escolar, apoiando-as nos estudos e evitando a desistências antes de completar as sete classes do ensino primário.

A obrigatoriedade da educação básica no país pode ser entendida como uma forma de fortalecer as liberdades compartilhadas coletivamente, isto é, por força da lei 4/83 do SNE, a ninguém em condições educável lhe será recusada o direito a uma educação semelhante ou igual. Outro ponto importante, é que a escolaridade obrigatória enfraquece as liberdades individuas dos cidadãos (liberdade de escolha), uma vez que, os pais e encarregados de educação não terão a oportunidades de escolher livremente a forma como vão educar seus filhos. Ate porque, uma escolaridade obrigatória acaba por dificultar o acesso das crianças, em piores condições sociais, ao mercado de trabalho, ou outros espaços degradantes, demonstrando que “uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor” (RAWLS, 2002, p. 334).

Apesar de lei 4/83 salvaguardar o direito à educação e a escolaridade obrigatória para todo o objetivo central da educação não são consistente com os princípios de que diz respeito a uma sociedade democrática pluralista. Neste caso, esta lei apresenta uma lacuna quanto à finalidade da educação. Isso porque, numa sociedade democrática a educação deve puder formar um homem com espírito de tolerância e paz solidaria com responsabilidade social e consciência comunitária, com amor pela pátria mais também um cidadão do mundo com autonomia e independência de vida, que respeite a vida

cidadãos para um debate público, porquanto: “importante da condição de publicidade é que ela confere à concepção política de justiça uma função educativa” (RAWLS 2000, p. 172).

De certa forma, a finalidade da educação na lei 4/83 do SNE demonstra que seu o ensino não era democrático nem liberal, isso porque, segundo Silva o liberalismo político de Rawls exige que:

Escola obrigatória ensine, entre outras coisas, à pessoa a conciliar os dois traços de identidade moral, o público e o privado. Com isso, o ensino levaria cada um a se entender criticamente como pertencendo a uma associação moldada por uma doutrina abrangente ou por fins intrínsecos definidos pelos interesses de associações às quais ele pertence. Por outro lado, aprender-se-ia o significado do pertencimento a uma democracia que lhe exige expressar a partir do ponto de vista político, compartilhado por todos, ainda que diferentes doutrinas abrangentes razoáveis fossem professadas (SILVA, 2006)

De acordo com o artigo 4 da lei 4/83 do SNE, pode-se concluir que a doutrinação política socialista passou a ser a base de todo Sistema Nacional de Educação, quer nos princípios, quer nos fundamentos e objetivos. Assim, o estado ao doutrinar politicamente a educação não tomou em conta a importância do principio demonstra principio da razoabilidade como um instrumento ideal para a convivência democrática dentro de uma sociedade pluralista e multicultural. Segundo Ralws a razoabilidade é necessária para uma convivência democrática numa sociedade bem ordenada, pois sem ele não haveria entendimento mutuo mínimo, mas suficiente, para lidar com questões de justiça social. Isto é, o principio da razoabilidade leva pessoas a cooperar como iguais no mundo publico dos outros e dispor a propor, ou aceitar, conforme o caso, termos equitativos de cooperação e a elaborar uma estrutura do mundo social publico, que é razoável” (RAWLS, 1993, 110).

No entanto, apesar da constituição da Republica popular de Moçambique ter sido inspirado nos valores de marxismo e nas experiências da luta de libertação, o mesmo não deveria servir de base para aprovação de um sistema de educação baseado exclusivamente ideologia socialista. Embora, a formação moral humana ou a educação publica deva estar em sintonia com a modelagem política, nem todos os valores morais devem ser construídos numa perspectiva apenas política.

Portanto, a critica que fazemos, ao objetivo central da Educação segundo a lei 4/83 não reside apenas em seu conteúdo político, ou seja, numa educação ligada ao socialismo, mas sim numa visão de doutrinação não razoável de toda prática pedagógica. Apear de o estado doutrinar politicamente a educação, Silva defende que:

uma educação ligada ao socialismo na visão do liberalismo político é ate certo ponto razoável, quando respeita as liberdades fundamentais dos indivíduos, suas manifestações pluralistas das doutrinas abrangentes razoáveis e aceitáveis em uma sociedade ordenada segundo os princípios de justiça” (SILVA, 2004, p. 63).

Na mesma perspectiva Silva, acrescenta que qualquer pedagogia ou sistema educacional que favorecesse a formação de pessoas fundamentalistas ou radicais não seria admissível numa sociedade bem ordenada, nem que a própria constituição permitisse, ou seja, estas instituições, pelo fato de negarem os valores de uma democracia e princípios de justiça como equidades são consideradas intoleráveis (SILVA, 2004, p. 64). No mesmo diapasão, Ralws rebate:

alguns partidos políticos em estados democráticos defendem doutrinas que se comprometem a suprimir liberdades constitucionais sempre que eles estiverem no poder, enquanto outros rejeitam a liberdade intelectual, mas que no entanto ocupam cargos na universidade. Aqui pode parecer que a tolerância, nesses casos, é inconsistente com os princípios de justiça ou de qualquer modo não é por eles exigida. (RAWLS, 2002, p. 235 ).

No entanto, Moçambique como uma sociedade pluralista e multicultural deveria, antes da aprovação das normais estatais como a do SNE 4/83, admitir a existência de varias doutrinas abrangentes razoáveis, pois permitiria de algum modo a aprovação de uma lei de Sistema Nacional de Educação que incorporasse todos os aspetos culturais, econômicos, sociais e políticos do país e do mundo no geral. Assim, a concepção de um sistema curricular de educação que respeite a igualdade e a diferença implica que as culturas estejam representadas num plano de igualdade no currículo, vinculando assim às tradições e os valores da sociedade. Para o contexto em causa, Taylor defende que:

o mais certo é uma sociedade multicultural incluir uma grande diversidade de divergências morais respeitáveis, o que nos da uma oportunidade de defendermos nossos pontos de vistas perante pessoas cuja consciência moral nos leva a discordar delas e, assim, de aprendermos com as nossas diferenças.

Ou seja, sociedades e comunidades multiculturais que defendem a liberdade e igualdade para todos baseiam-se no respeito mutuo pelas diferenças culturais, políticas e intelectual que não ultrapassam o limite do bom senso (Taylor 1998, p. 41- 43).

Ancorados no mesmo ponto, e subsidiados pelos escritos de liberalismo político de Ralws, podemos afirmar que um sistema educação democrática e liberal deve na sua essência incluir os valores de direitos constitucionais e civis, e o respeito pela liberdade fundamentais como uma das premissas para a construção de uma sociedade onde os membros saberiam cooperar de forma justa futuramente (RAWLS 2000 ).

Para completar a nossa discussão sobre as leis que regulam o SNE no país passaremos no item a seguir os contornos da aprovação da lei 6/92 e sua relação com os princípios de justiça.