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A Lei Hipotecária nº1237 de 24 de setembro de

Capítulo I – AS PRIMEIRAS LEIS AGRÁRIAS

1.5 A Lei Hipotecária nº1237 de 24 de setembro de

A partir da lei Orçamentária reformulada de 1843 surge a Lei Hipotecária, por meio do projeto apresentado pelo ministro da justiça Nabuco de Araújo, chamado pelo seu proponente de “o projeto da Câmara dos deputados que reforma o Regime hipotecário vigente, com disposições sobre a constituição da propriedade imóvel82”.

O contexto do Brasil agrário daquele momento se sustentava em dívidas em juros abusivos. Segundo Lago (2008), a reforma hipotecária tinha como objetivo estimular o crédito imobiliário de maneira segura, tornando o bem que seria declarado como fonte de riqueza tanto pública quanto privada. Com isso visava-se auxiliar o crescimento da lavoura. Antes desse momento, as garantias de pronto reembolso do montante emprestado eram mínimas; já com essa garantia, aumentavam as possibilidades de reaver o crédito emprestado eram reais.

Na referida Lei, vários pontos nos chamam a atenção, pois tratam do processo de registrar a terra colocada como garantia e novamente o empenho principal era defender o credor enquanto potencial indivíduo a ser lesado, mediante a obrigatoriedade de registrar. No Título III artigo 7º, o Registro geral compreende “A transcrição dos títulos da transmissão dos imóveis suscetíveis de hipoteca e a instituição dos ônus reais”83, regulamentada pelos Decretos n° 3.453, de 26 de abril de 1865 e n° 3.465, de 1.865, assim, os profissionais encarregados do registro passaram a ser conhecidos como Oficiais do Registro Geral. 82 RODRIGUES, P. P. As Frações da Classe Senhorial e a Lei Hipotecária de 1864. Orientador: Márcia Maria Menendes Motta. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Departamento de História, 2014 p. 57.

Inicialmente os Tabeliães eram encarregados de registrar de acordo com Decreto nº 482 de 14 de novembro de 1846.

Após sua apresentação, um projeto de reforma foi proposto por Nabuco de Araújo, naquele momento ministro da justiça, segundo Lago (2008) e Rodrigues (2014), previam-se a criação de três classes de hipotecas: privilegiadas, legais e convencionais; em três princípios inovadores: a publicidade, a especialização e a brevidade das ações hipotecárias84, nascidos na Alemanha. Sobre a publicidade, foi estipulada a obrigatoriedade do registro de contratos de compra e venda no Registro Geral de Imóveis, substituindo um antigo costume conhecido como tradição.

Nas palavras de Lago, citando Teixeira de Freitas:

Com efeito, no direito pré-codificado das Ordenações e legislação extravagante, o domínio se transmitia com a tradição do bem, como se pode observar no artigo 908 da Consolidação das Leis Civis: Art. 908 – Para aquisição do domínio não basta simplesmente o título, mas deve aceder a tradição; e sem esta só se tem o direito a ações pessoais. Assim a tradição era necessária para que o adquirente se tornasse titular das ações reais. A tradição feita pelo verdadeiro titular transmitia o domínio[...]85.

Deixou-se de lado a tradição e passou-se agora, a ser exigida a comprovação da intenção de posse devidamente registrada no R.G.I.: “com essa formalidade, o contrato de compra e venda deveria ser transcrito no Registro Geral de Imóveis para a propriedade imobiliária ser alienada. No caso dos contratos hipotecários, essa formalidade recebia outro nome86”. Quando isso ocorria, a posse se tornava pública, podendo ser consultada por banco ou por outros interessados que visassem à comprovação do item declarado pelo proprietário. Como já dito anteriormente, ampliam-se, desse modo as garantias aos credores.

Fazendo uso da interpretação de Lourenço Trigo de Loureiro87, Lago (2008), conclui que o princípio da publicidade para condição dos bens, buscava reprimir possíveis fraudes valorizando a boa-fé. Em contrapartida, essa publicidade tornaria mais precisa a satisfação dos credores se necessário fosse praticar a excussão, ou seja, executar judicialmente a tomada dos bens dados como garantia. Mas isso tudo somente poderia ser praticado mediante um sistema hipotecário eficiente, o que já ocorria em outros países, sobretudo europeus.

84 Idem. Não entrarei em detalhes dos princípios pensados pelo autor, apenas os apresentarei de maneira breve.

85 FREITAS, 1865 apud LAGO, 2008 p. 58.

86 Idem, página 76.

87 TRIGO DE LOUREIRO, L. Instituições de Direito Civil Brasileiro, Vol II, 4ª Ed., Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 1871, p. 124.

No momento da sua formulação, a lei passou por vários questionamentos e debates, pois sendo aprovada nos moldes propostos e conforme o entendimento por parte das elites, traria aos potentados problemas, principalmente em relação à posse efetiva do imóvel declarado, pois entendiam que se eram obrigados a registrar, automaticamente se julgavam detentores da posse.

Ao se referir a Nabuco de Araújo, ministro da justiça da época, Rodrigues (2014), retoma o segundo item presente na reforma da lei: a especialização, que no entendimento do jurista se tratava da “individualização dos bens matriculados no Registro Geral de Imóveis”88. Sendo assim, é a primeira vez que vemos algum item que possibilita minimamente, alguma proteção aos bens de quem solicitava crédito, pois antes, a dívida poderia ser cobrada sobre qualquer bem. O segundo momento de proteção ao devedor apareceu somente em

1865 – em especial em seus aspectos processuais – deixava o devedor indefeso na mão do credor hipotecário, ávido e impaciente por obter seu lucro, tentou equilibrar a situação, dispensando o sequestro como condição de ação, e dando ao devedor o direito de opôr embargos, tanto os fundados nas nulidades constantes na lei quantos os demais autorizados [...]89.

Contemplados esses dois princípios jurídicos iniciais, a publicidade e a especialização, seria possível abreviar as ações hipotecárias.

O item mais polêmico presente na proposta de reforma do ministro conservador Nabuco Araújo, segundo Rodrigues, era a impossibilidade de comprovação de posse sobre o que foi registrado e dado como garantia, ou seja, a intenção era de criar a obrigatoriedade de registrar o bem dado como garantia, mas isso não legitimava a comprovação efetiva de posse sobre o bem, simplesmente sinalizava que o declarante poderia ser o responsável pelo bem em voga registrado.

No entanto, negava a possibilidade de usar a transcrição como prova de propriedade para o adquirente. Em outras palavras, a matrícula no Registro Geral de Imóveis comprovava que o contrato foi realizado, mas não provava o domínio para o adquirente. Ela servia para definir a preferência entre credores e compradores de um mesmo imóvel com relação aos outros credores hipotecários e/ou compradores. Mas não provava a propriedade deles. A comprovação deste direito dependia ainda de um exame de títulos e limites territoriais para demonstrar se o vendedor era realmente dono da coisa alienada90.

O nascimento da publicidade dos bens hipotecados teve sua gênese questionada por alguns setores da sociedade da época. Diante da tentativa de mudança, foi formada uma comissão composta por deputados que elaboraram um parecer sobre a proposta de reforma. 88 Ibidem.

89 LAGO, 2008 p. 76.

Tal comissão foi criada em 14 de agosto de 1854 e acabou por discordar de maneira veemente da interpretação apresentada anteriormente, ou seja, o Registro serviria, sim, para comprovar posse, porque o domínio estava devidamente registrado. Em sua defesa, Nabuco de Araújo91 afirma ter interesse também que a declaração de registro servisse como comprovação de posse, mas que, no contexto jurídico de sua época, as possibilidades o impediam de aceitar somente um único documento, devendo ser comprovada por uma série de itens e etapas. A interpretação de Araújo nada mais é do que a continuação da sua visão de política e, dialogando com seu posicionamento acerca da abolição da escravidão moderada; ele justificava que isso era necessário, mas que fosse realizada em etapas, buscando-se evitar, o que, para ele, seria inaceitável: falta de cativos e os prejuízos que a abolição causaria aos senhores.

Mesmo após o processo de comprovação de posse efetivado, ainda assim ocorria uma falha segundo a interpretação de Lago, pois

O sistema, porém, carregava a grande falha de não abrigar as transmissões de bens imóveis, mas tão somente o registro das hipotecas. Com isso, não se tinha a segurança da propriedade e nem das hipotecas, uma vez que não se tinha o conhecimento sobre ser o hipotecante realmente o titular da propriedade do bem. Ademais, não foram extintas as hipotecas gerais obre bens futuros, absolutamente incompatíveis com um sistema de publicidade. A reforma em si já nasceu imperfeita, exigindo nova mudança92.

Outro ponto presente na resposta de Nabuco de Araújo aos seus questionadores sobre a utilização do Registro como prova de posse sobre o bem declarado e dado como garantia de dívida, era a absolutização da propriedade. Aparentemente, isso demonstra um avanço do pensamento político para época, principalmente para um ministro tido como conservador, pois minimamente reconhecia a existência de formas de “direitos de propriedade”93.O reconhecimento simplesmente pela declaração seria precipitado, necessitando de análise e processo jurídico adequado de comprovação efetiva de posse, caso contrário, poderia ocorrer esbulho, ou seja, colocaria em questionamento quem realmente seria o dono do bem declarado, comprometendo, assim, os interesses dos potentados. Esse perigo já rondou os senhores rurais por ocasião da aprovação da Lei de Terras, quando o tema medições se fez presente e, a partir dessa comprovação, medições e confrontamentos poderiam ocorrer, além

91 IHGB Documentação Relativa à reforma hipotecária, compilada por Nabuco de Araújo. Pasta 4. Lata 389, apud Rodrigues 2014, p 87.

92 LAGO, 2008 p. 63.

de limitações de suas posses e, consequentemente de poder94. Assim, as incertezas territoriais sustentavam seu poder.

O ministro da justiça pretendia fazer uma reforma, facilitando o crédito para a fração dos proprietários capazes de aproveitar a reforma. Mas não pretendia fazer uma regularização fundiária que delimitasse os domínios e desse valor aos títulos para melhor assegurar os credores e, assim, ampliar a quantidade de proprietários capazes de obter empréstimos hipotecários. Em suas próprias palavras trata-se de uma proposta para o futuro. Se naquele momento a maioria das propriedades não tinha o valor necessário para aproveitar a reforma, em um futuro sem data adquiririam essa condição95.

Novamente, é perceptível o posicionamento do ministro ao propor a reforma da Lei hipotecária, quando sua visão conservadora e protecionista dos senhores rurais e seus interesses. Apresentava um espírito conciliador e buscava, também, limitar os abusos das oligarquias principalmente rurais, mas sem as enfrentar diretamente. Por essa razão, adotava tanto o abolicionismo gradual quanto as mudanças nas leis agrárias seriam lentas e graduais.

Em outra interpretação sobre a Lei Hipotecária de 1864 se encontra na figura de Augusto Teixeira de Freitas, considerados por muitos o maior jurisconsulto do Brasil, encarregado de escrever o que seria o Código Civil do Império de 1855.

Sob a ótica de Freitas96, o contrato realizado, seja de compra ou de venda, se limitaria a gerar uma obrigação entre as partes envolvidas. A ação passava a ter uma roupagem oficial, somente quando o registro fosse submetido à transcrição: considerava-se então, a transcrição um ato indispensável da presunção de propriedade. O jurista endossou as respostas de Araújo à comissão e a outros interessados quanto à tentativa de ter o domínio sobre o bem registrado, mesmo sendo de família possuidora de escravos na Bahia Freitas. Nas palavras de Rodrigues 2014, “[...] Tratava-se de um jurisconsulto com uma concepção de direito segundo a qual a norma positiva deveria prevalecer sobre as posições políticas[...]”97, o que balizava suas práticas.

Justificando seu posicionamento, Freitas afirma que essa comprovação de posse simplesmente pelo registro não seria possível no Brasil, pois, aqui, a maneira que a estrutura fundiária se sustentava, deixava brechas para graves incertezas. Foi necessário reorganizar a

94 Esse ponto será tocado a diante quando da análise da Lei de Terras de 1850. 95 RODRIGUES, 2014 p. 92.

96 RODRIGUES, P. P. As Frações da Classe Senhorial e a Lei Hipotecária de 1864. Orientador: Márcia Maria Menendes Motta. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Departamento de História, p.165

estrutura fundiária para, então, haver validade e ser usado com documento para comprovação de domínio presentes no Registro Geral de Imóveis. Segundo o entendimento de Rodrigues,

“[...] Sua postura acabava por desmascarar a estratégia dos defensores do caráter comprobatório de transcrição. Ele percebia como isso representaria sacralizar a propriedade dos adquirentes em contraposição aos direitos legítimos de grandes e pequenos posseiros. Por isso considerava ser necessário antes estabelecer os limites territoriais e averiguar quem seriam os legítimos proprietários. De outro lado, não propunha nenhum caminho para ser realizada esta regularização. Assim como Nabuco de Araújo, ele deixava de lado a possibilidade de uma mudança na estrutura fundiária. Trava-se de conter o abusos dos potentados rurais, mas de forma alguma romper com os interesses senhoriais98.

Como visto anteriormente, esse é o segundo momento em que os interesses dos potentados são colocados em xeque, levando-se em consideração o domínio que detinham sob sistema político e econômico.

Entretanto, tanto Nabuco de Araújo quanto Teixeira de Freitas seguiam a gênese da Lei, mais precisamente § 4º do artigo 8º da norma de 1864 da Lei 1237 de 24 de setembro de 1864 e o Decreto 3453 de 26 de abril de 1865, onde se lê: “A transcripção não induz a prova de domínio que fica salvo a quem fôr”, ou seja, a própria lei delimitava o que seria válido e o que não o seria.

Esse entendimento por parte de Araújo e Freitas também pode estar ligado ao insucesso da Lei de Terras de 1850, principalmente se levarmos em consideração o grande número de processos solicitando legitimação de domínio sobre imóvel, baseados na declaração realizada junto ao vigário e registrada no Registro Paroquial de Terras. A falha real desse documento estaria na imprecisão dos limites da propriedade, reafirmando que, ao alienar um bem, não existiria, nesse ato, maneira de comprovação da legitimidade da posse, sua extensão, limites etc.

No entendimento de Teixeira de Freitas,99 mais um item se colocava como empecilho para o simples reconhecimento através da transcrição, como a comissão de deputados argumentava, e tratava-se da prescrição aquisitiva ou como popularmente era chamada: o usucapião, que prevê direito de posse de um imóvel desde que o real proprietário não se 98 Idem p. 167.

99 FREITAS, A. T. de. Consolidação das Leis civis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Typ Universal de Laemmert, 1865. p CCII- CCIV apud RODRIGUES, P. P. As Frações da Classe Senhorial e a Lei Hipotecária de 1864. Orientador: Márcia Maria Menendes Motta. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Departamento de História.

manifestasse contrário à ocupação do bem ou que não o utilizasse. Então considerando a estrutura agrária brasileira, sustentada sobre o regime de posse, tornou-se impossível aplicar o regime de registro como principal mecanismo de legitimação de posse, pois era possível adquirir terra de quem não era o verdadeiro proprietário100.

Diferente de seu principal interlocutor e apoiador, Nabuco de Araújo, Freitas brevemente propõe uma possível maneira de usar o Registro como instrumento legitimador de posse,

O registro das mutações futuras não poderia consistir somente em uma transcrição material por intermédio de um oficial público, mera testemunha instrumentária; mas deveria ser o efeito de um exame preliminar e muito rigoroso dos direitos que se apresentassem101.

Mas quem deveria fazer e receber então esse registro e fazer a legitimação se fosse o caso, o tabelião? Segundo Freitas, somente o juiz poderia sanar quaisquer tipos de conflitos cuja a origem estava nos limites da posse declarada. Somente passando pelo crivo do magistrado é que o registro poderia ser considerado como verdadeiro.

Para o magistrado, o Estado somente poderia se posicionar sobre a medição de terras de maneira adequada através dos juízes mediando possíveis conflitos se assim fosse da vontade dos potentados, ou seja, em mais de um momento vemos os limites das leis e o conflito eminente de interesses além das incertezas dominiais. Como resultado a possibilidade de registros desonestos e, com isso, o agravamento dos conflitos territoriais, diante de uma possível corrida em busca de matrículas de alienações no RGI, tentando e buscando enfatizar seu domínio matriculado.

Dessa maneira, vemos em vários momentos o caráter conciliador buscado tanto por Nabuco de Araújo quanto por Teixeira de Freitas, pois, como já citado anteriormente, temos políticos e juristas de caráter conservador, que, contraditoriamente, dialogam com a lógica liberal europeia, buscando dar passos rumo ao avanço sobre os direitos de posses abordando pontos até o momento inquestionáveis, como, por exemplo, a questão da terra. Mesmo essas duas figuras supracitadas pertencerem a grupos possuidores de grandes posses e escravocratas, não apoiavam totalmente a escravidão, mas não a contrariavam, como o caso de Freitas, que condenava aos maus tratos aos cativos, não quis legislar sobre a abolição quando pensara em realizar o Código Civil.

100 Idem p. 172.

Capítulo II – Os Desdobramentos da Lei de Terras de 1850 e o Livro de Registro de