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A Produção de Verdades Jurídicas

Capítulo II – Os Desdobramentos da Lei de Terras de 1850 e o Livro de Registro de Terras da Vila de Nossa Senhora de Belém, de Guarapuava

2.4 A Produção de Verdades Jurídicas

As leis como concebemos não são meros acasos legais constituídos de necessidades de um dado momento histórico, ou fruto apenas de seu tempo. As imbricações jurídicas estão permeadas de itens invisíveis como disputas, combates de interesses, de saberes e, consequentemente, de disputa de poder. Neste momento, faz-se indispensável refletir sobre como diferentes agentes sociais fizeram uso de normas e instituições oficiais em defensa de seus interesses e sobre como essas ações revelam, inicialmente, um senso de justiça profundamente individualizado.

Os debates jurídicos pela aprovação de leis no Brasil agrário dos oitocentos são protagonizados principalmente pela classe “média ou a elite intelectual121” daquele período, com o objetivo de limitar o acesso de indivíduos estranhos ao seu grupo. Focavam, também, na visibilidade de outros senhores junto aos potentados com o intuito de conseguir benefícios como apadrinhamento para cargos públicos; mesmo assim, esses senhores não conseguiam a importância das elites, mas buscavam se diferenciar, principalmente, do proletariado122. Essa classe média detinha algo que não estava no domínio da maioria dos componentes da elite: o conhecimento.

Ao debater as leis, ao pensar os trâmites legislativos, os juristas estão em pleno confronto com seus adversários, quer sejam outros juristas que não defendam os mesmos interesses quer sejam terceiros, distantes do acesso e da proteção jurídica.

121 Essas categorias são abordadas no trabalho de Vieira, 2009, fazendo uso da obra de Emília Viotti da Costa, caracterizando-os como grupo que possuía interesse em mudanças, mas que essa ânsia de mudança encontrava barreiras junto aos laços firmados com as oligarquias. Em muitos casos ausentes de ideologia própria, focados em se alçar socialmente e servindo como grupo de ação atendendo geralmente os interesses dos grupos dominantes. Contraditoriamente criticavam o latifúndio, a escravidão, apresentavam métodos de ensino diferenciados, em oposição ao rural relegado ao atraso, mas como já foi dito anteriormente necessitavam do apoio e da influência oligárquica para ocuparem importantes cargos escreverem em jornais e revistas e paradoxalmente terem como leitores a própria oligarquia. COSTA, E. V. da. Da monarquia à República: Momentos decisivos.8ª ed., São Paulo: Fundação UNESP , 2007. p. 264 e 265 in: VIEIRA, J.R.P.A. Transmissão da Propriedade Imóvel Pelo Registro do Título e Segurança Jurídica: Um Estudo sobre a História do Direito Brasileiro. Orientador: Ignacio Maria Poveda Velasco. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo S.P. 2009, p. 98 e 99.

122 VIEIRA, J.R.P.A. Transmissão da Propriedade Imóvel Pelo Registro do Título e Segurança Jurídica: Um Estudo sobre a História do Direito Brasileiro. Orientador: Ignacio Maria Poveda Velasco. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo S.P. 2009, p. 99.

Nas relações de luta e de poder, na maneira como os homens se odeiam, disputando espaços na sociedade, aprovando juridicamente mecanismos que beneficiam poucos em detrimento de terceiros, é possível compreendemos o sentido de “conhecimento”, em termos de Foucault123. Ele se dá:

[...] sob a forma de um certo número de atos pelos quais o ser humano se apodera violentamente de um certo número de coisas, reage a um certo número de situações, lhes impões relações de força. Ou seja, o conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se encontra situado [...]124.

Esse conhecimento se encontra também e principalmente no campo de ação política. A importância da instituição política e jurídica nem sempre é reconhecida, uma vez que acreditamos conhecer melhor as estruturas econômicas do que as estruturas do poder político. Contudo, não nos passa despercebida a existência de uma série de desdobramentos econômicos que somente podem ser explicados se forem associados às relações políticas que permeiam toda a trajetória da nossa existência125.

Dos jogos de entraves políticos que sustentam o conhecimento, temos outra parcela importante de ações que compõem a prática jurídica: a construção de verdades, ou melhor, o jogo de produção de provas de verdades. Ao pensar esse jogo da verdade, nos damos conta de que esse mecanismo está submetido a uma lei, algo intrínseco que podemos chamar de leis das metades por meio das quais se ajustam e se encaixam a verdade que vem à tona126. Por verdade, portanto, podemos conceber o resultado dos encaixes das metades que fizeram parte do jogo jurídico, ou seja, dos interesses de credores, comerciantes, potentados, legisladores locais ou da capital, motivados pela questão econômica, o status, a tradição. Somando todos esses itens, temos o debate legislativo e, em decorrência, a completude do jogo das metades.

Na prática, o indivíduo que detém mais símbolos consegue facilmente dominar o jogo das metades. Dessa forma, aquele que possui um símbolo, ou um segredo capaz de mudar o desfecho da situação, detém e exerce maior poder.

[...] O poder se manifesta, completa seu ciclo, mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos fragmentos, separados uns dos outros, de um mesmo

123 Idem p. 31.

124 Idem p. 33.

125 Idem p. 39.

conjunto, de um único objeto, cuja configuração geral é a forma manifesta do poder127.

Esse poder, mais especificamente o poder político a que nos referimos, está intimamente ligado a um certo tipo de saber, não compartilhado com outros grupos sociais, ou seja, os mecanismos de construção de uma lei não são objetos de debate ou de consulta pública. Trata-se, pois, de uma prática sectária. Para se realizarem os debates, é necessário conhecimento jurídico adequado e uma vez confeccionado o projeto, a futura lei não vai para consulta, salvo em alguns casos, pois, se não existe o saber sem o poder, consequentemente, não há o poder político sem o saber especial128. Isso porque o poder político é uma junção, uma trama junto ao saber e, para nós, o saber jurídico possibilita o poder sobre dos trâmites legais até a aprovação, a defesa ou prática da manutenção de interesses.

O saber especial está ligado à persuasão de pessoas para as quais aquela ação é a verdade, é sobre a verdade ou a defende num jogo regulado e sustentado pelo testemunho, lembrança/experiência ou inquérito. Na existência do saber especial, sua essência está ligada à prova – constatação – de algo em defesa do que se pretende comprovar. Essa prova não implica ser a verdade ou estar falando a verdade; o saber é, assim, um importante mecanismo possibilitado no jogo da verdade129.

No jogo da verdade, a contestação judiciária é uma prática normal. Veremos adiante uma parte dos debates jurídicos que precederam e se arrolaram junto com a aplicação das leis. Esse jogo de contestação estava limitado a pouco jogadores, como já dito, a uma classe média a serviço de grandes senhores e potentados. Esse privilégio é possibilitado pelo local de origem dos legisladores, proporcionando-lhes, para além da contestação judiciária, o controle da circulação de bens, confiscados por quem já detinha mecanismos de dominação simbólica mediante acúmulo de riquezas, como no nosso caso o poder do saber, ampliando a esses indivíduos potencialmente o controle, o encaminhamento e ordenamento dos debates jurídicos.

Como uma das consequências desses debates temos, na Europa dos séculos XVI e XVII, o acúmulo de riquezas constituído por terras, herança que chega ao Brasil e possibilita nossas pesquisas de cunho agrário.

127 Idem p. 45.

128 FOUCAULT, A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Eduardo Jardim e Roberto Machado Rio de Janeiro RJ: 4ªed NAU, 2013, p. 55.

Capítulo III - Análise da Lei de Terras e As versões do Brasil Agrário dos Oitocentos