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3 PILARES DE REFERÊNCIA: O EMBASAMENTO TEÓRICO DA

3.1 A LITERATURA A PARTIR DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

A leitura literária, diferentemente de uma leitura puramente didática e informativa, tem uma dimensão diferenciada: ela se apresenta de forma gratuita, livre de qualquer outro compromisso que não seja o desfrute do prazer em degustá-la. Mas nem sempre remete a um prazer relacionado ao que seja visivelmente agradável, uma vez que pode estar ligada ao prazer proporcionado por uma situação de tensão, de medo, de suspense. E, nessa gratuidade, ela enriquece, instrui e diverte o leitor.

Mas, afinal, o que é literatura? Como Lajolo (1995), podemos indagar: qualquer caso relatado é literatura? Ou somente os romances e contos clássicos? E as revistas em quadrinhos e os best-sellers podem ser considerados também literatura? Podemos considerar literatura os poemas que escrevemos, as telenovelas ou ainda as crônicas registradas nos jornais diários? Que critérios são usados para se identificar as características de um texto literário? Parece que a questão ainda não se apresenta de forma resolvida.

Apesar da inexistência de um consenso acerca de um conceito do que seja literatura, podemos considerá-la como uma manifestação artística da palavra, que se diferencia das demais formas de artes pela maneira como se expressa. Tendo como sua materialidade a palavra, constituinte simbólico de toda uma construção histórico-cultural desenvolvida pelo homem, a literatura como arte, potencializa-a, transforma-a, (re)inventa-a, ampliando suas possibilidades simbólicas, culturais, transformando-a num elemento especial, multiforme, estético, lúdico (SOUZA, 2009).

Como reflete Culler (1999), a literatura traz a linguagem para o primeiro plano, apresentando um texto enriquecido por diferentes metáforas, ritmos e sons. Dentre outros recursos, a obra literária centra sua atenção, não somente no que se diz, no conteúdo, mas, principalmente, no como se diz, na forma, no arranjo das palavras. Assim, do ponto de vista do produtor, há a busca por impactar o leitor e/ou ouvinte, levando-os a reconhecer ali, a obra literária.

Por outro lado, pensamos que um dos critérios mais visíveis para se reconhecer o texto genuinamente literário parece ser o grau de percepção, de aceitação e de acolhimento apresentado pelo leitor, independentemente do tempo ou do lugar em que se concretiza a leitura. Essa ideia é também referendada pelo ensaísta Zumthor (2007), que, em sua obra, assim esclarece:

Ora, em certos casos (que é preciso definir), a leitura deixa de ser unicamente codificação e informação. Soma-se a isto e, em casos extremos, em substituição, elementos não-informativos, que têm a propriedade de propiciar um prazer, o qual emana de um laço estabelecido entre o leitor que lê e o texto como tal. Com efeito, pode-se dizer que um discurso se torna de fato realidade poética (literária) na e pela leitura que é praticada por tal indivíduo. Mais do que falar, em termos universais, da “recepção do texto poético”, remeterá, concretamente, a um “texto percebido (e recebido) como poético (literário)” (ZUMTHOR, 2007, p. 24-25, grifos do autor).

Nessa perspectiva, é impossível pensarmos na existência de uma obra literária sem a presença do leitor/ouvinte, elemento imprescindível para sua concretização. Nela, existirá sempre uma interlocução entre, no mínimo, dois sujeitos: o autor e o receptor da obra. Mas também não podemos deixar de considerar que, em cada um deles, e mesmo na própria obra, muitos outros também se encontram ali habitados, representados, subjetivados. Daí seu caráter comunicativo, dialógico, transversal. E assim, como resultado dessa interlocução, a literatura possibilita ao leitor ingressar em diferentes mundos culturais. E não só lhe permite transitar entre os diferentes mas também reconhecer-se entre os iguais, construindo dessa

forma sua identidade no confronto das diferenças e semelhanças entre o ‘eu’ e o ‘nós’, seja no mundo real, seja no mundo das possibilidades proporcionadas pelo universo literário.

De tal modo, identificamos, igualmente, o caráter aberto, plural, democrático da literatura, uma vez que sua linguagem apresenta-se de forma conotativa, multirreferencial, plurissignificativa, possibilitando livre trânsito para a realização de uma ação comunicativa e dialógica por diferentes interlocutores. Assim, mesmo considerando seus traços essenciais que, num certo sentido, impõem alguma direção ao olhar do sujeito leitor/ouvinte, verifica-se, nesta, um espaço garantido para sua livre participação.

Ainda de acordo com Eco (1972, p. 154), a sua fruição se realiza

[...] por uma pluralidade de fruidores, cada um dos quais sofrerá a ação, no acto de fruição, das próprias características psicológicas e fisiológicas, da própria formação ambiental e cultural, das especificações da sensibilidade que as contingências imediatas e a situação histórica implicam [...].

Refletindo sobre tais ideias, podemos reconhecer que a compreensão, fruição ou leitura que o leitor/ouvinte faz da obra literária encontra-se impregnada por um olhar que é histórico, cultural, pois, como afirma Martins (1994, p. 30), o ato de ler também pode ser caracterizado como um “[...] acontecimento histórico e estabelecendo também uma relação igualmente histórica entre o leitor e o que é lido”. Nesse sentido, as elaborações do leitor, em contato com a obra, carregam os traços de uma história de vida vivenciada num determinado tempo e espaço, com determinadas pessoas, o que representa a construção de diferentes significações, as quais irão fazer a diferença nas suas múltiplas e diversificadas leituras.

Podemos mencionar também que a literatura que se faz arte expõe uma infinidade de recursos estéticos/poéticos, imprevisíveis, que se abrem à curiosidade, à aproximação e ao desejo dos muitos que procuram conhecê-la. A literatura que se faz arte apresenta-se sempre contemporânea, universal, transcultural, encontrando-se num contínuo processo de atualização, testemunhado pelas diferentes leituras realizadas por leitores de múltiplas gerações e culturas.

A esse respeito, argumenta Queirós (2002, p. 162):

Na medida em que a arte trabalha com os sentimentos que fundam o homem – a busca, a perda, o desencanto, o medo, a esperança, o luto, o ciúme, a paixão, a fraternidade – ela é uma linguagem comum a todos os homens, independente do lugar onde vivemos e da posição deste lugar numa classificação econômico- financeira.

Compreendemos, assim, que tanto para o indivíduo letrado quanto para o iletrado, para o rico ou para o pobre, para o negro ou para o branco, para o homem ou para a mulher, com ou sem deficiência, a literatura que se faz arte pode apresentar-se como um espaço privilegiado para o encontro com seus mais íntimos desejos e sonhos, favorecendo o processo de identificação com os personagens e levando-os a penetrarem nos seus horizontes perceptuais, subjetivos, humanos, e de lá saírem transformados.

E que efeitos tal contato pode provocar? O que dá ao texto literário esse poder de tocar e de transformar o sujeito? De fazê-lo mergulhar no infinito do seu mundo interior, liberando suas emoções e seus sentimentos, levando-o a conhecê-los e dominá-los de uma forma tão diferente e aparentemente inexplicável? De forma mais evidente, o que nos chama a atenção é o trânsito que há entre os conteúdos dos textos literários e os fatos da realidade, que, embora não sejam idênticos, também não são estranhos.

Para guiar nossas reflexões acerca das questões já apontadas, bem como embasar nossas análises, buscamos respaldo nos teóricos da Estética da Recepção11. Diferentemente de outros estudos da crítica e da teoria literária, que se concentram na figura do autor ou do texto como objeto de análise e portador do sentido pretendido por seu autor, a Estética da Recepção problematiza o papel do leitor, destacando, consequentemente, a própria ação requerida no ato da leitura. Nessa perspectiva, apresenta a literatura como um sistema que se define por “produção, recepção e comunicação”, tecendo uma relação dialética entre autor, obra e leitor. Ressalta, além disso, que o discurso literário é, sobretudo, o resultado de um processo de recepção ao mobilizar uma pluralidade de estruturas de sentidos historicamente mediados (ZILBERMAN, 2009).

Um dos seus fundadores, o alemão Hans Robert Jauss (1979, 1994), considera que determinadas condições históricas moldam e influenciam a atitude do receptor do texto. Assim, dentro da teoria da recepção, ele apresenta uma linha de estudo que privilegia a reconstrução histórica como cenário para a recepção do leitor. Nessa mesma perspectiva teórica, Iser (1996) assume uma linha de estudo focalizando o aprofundamento das relações interacionais entre texto e leitor, teorizando a recepção (resposta) deste último a partir dos pontos de indeterminação presentes nos textos e acionados pelo ato da leitura.

Segundo Iser (1996), autor que mais nos embasará, o texto literário é, sobretudo, fictício. Carecendo de atributos do real, mas ao mesmo tempo elegendo elementos desse real

11 A teoria da estética da recepção resultou de um movimento iniciado no final dos anos 60 [do século XX], na Universidade de Constança (Alemanha), por pensadores liderados por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, como uma reação aos padrões positivistas e idealistas do século XIX para o estudo e a abordagem da literatura (ZILBERMAN, 2009).

na intenção de representá-los numa segunda dimensão, o texto literário visa ao não-dado, ao que está para ser compreendido, explicado, expondo, dessa forma, o seu caráter virtual. Para esse autor, “[...] a obra literária se realiza, então, na convergência do texto com o leitor”, apresentando forçosamente um caráter virtual, metafórico, uma vez que “[...] não pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do leitor” (ISER, 1996, p. 50). Dessa forma, entendemos que o principal interlocutor do trabalho artístico − no caso da obra literária, o leitor − deve ser reconhecido como um participante ativo da sua constituição, pois sem a “consciência receptora” sua completude não se efetiva.

Stierle (1979, p. 121) define, de maneira explícita, o processo de recepção:

A recepção abrange cada uma das atividades que se desencadeia no receptor por meio do texto, desde a simples compreensão até a diversidade de reações por elas provocadas – que incluem tanto o fechamento de um livro, como o ato de decorá-lo, de copiá-lo, de presenteá-lo [...].

No entanto, podemos reconhecer que, no texto literário, pelo fato de integrar dois mundos que se aproximam, mas que ao mesmo tempo se distanciam (o real e o ficcional), a recepção literária apresenta-se como um fenômeno mais complexo, multifacetado, que envolve diferentes reações manifestadas por diferentes leitores, ou até mesmo pelo leitor nas suas várias leituras de um mesmo texto. Embora influenciada pela produção textual, pois, de acordo com Jauss (1994, p. 28), uma obra apresenta “[...] avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, que predispõem seu público para recebê-la de uma maneira bem definida”, a recepção de uma obra literária apresenta-se como única, particular, relacionando-se às diferenças, às necessidades e às motivações de cada indivíduo num determinado momento ou contexto.

Dessa forma, o processo de recepção apresenta-se como constitutivo de significado: inicia-se num tempo bem anterior ao contato do leitor com o texto. De acordo com os teóricos da Estética da Recepção (ISER, 1996; JAUSS, 1994), existe um quadro geral de compreensão que condiciona a leitura – o “horizonte de expectativas”. Segundo essa perspectiva, o leitor aproxima-se do texto literário munido de um horizonte que o limita, mas que, sob a ação desse mesmo texto, ele pode se transformar, abrindo-se a novas ideias e novas compreensões (SANCHES, 2008).

Para Bordini e Aguiar (1993), esse horizonte refere-se aos conhecimentos e impressões apresentados pelo indivíduo com relação ao mundo que o cerca, o que pode incluir suas vivências pessoais, sociais e históricas, bem como normas filosóficas, religiosas,

estéticas, jurídicas, ideológicas, que orientam ou explicam tais vivências. Refere-se também às normas estéticas relacionadas à própria obra, como o conhecimento que o leitor apresenta com relação ao gênero a que pertence, a experiência literária trazida de leituras anteriores que o familiarizam com certas formas e temas, e ainda a própria distinção da linguagem literária da linguagem comum, prática.

Na visão de Iser (1996), a leitura não pode ser entendida como uma simples internalização do texto, pois não se constitui como um processo unilateral, mas como um processo dinâmico de interação e comunicação entre texto e leitor. Assim, mesmo que se reconheça que a recepção literária é, em grande parte, programada pelo texto, há sempre o espaço para a participação necessária e interativa do leitor, uma vez que o texto se encontra constituído de “vazios” ou espaços lacunares derivados de pontos de indeterminação a serem preenchidos ou suplementados pelo leitor de uma maneira que não está necessariamente na intencionalidade autoral (CONDE, 2011). Essa constatação implica afirmar que não existe uma verdade estabelecida pelo autor, um sentido único ou uma interpretação definitiva para a obra.

Alinhando-nos a essa perspectiva analítica, admitimos a existência de uma valorização substancial da imaginação criativa do leitor, fazendo-o acrescentar elementos de sua experiência de vida, de suas fantasias, na efetivação da respectiva leitura. Ademais, havemos de convir que, nessa leitura, há transformação contínua desse leitor, pois, no momento em que ele busca construir o sentido do texto, sofrendo seu impacto a partir do que já tem, do que já é, vai-se transformando, reinventando-se pela ação da palavra e da imaginação, ampliando ou modificando, assim, seu horizonte de expectativa.

Essa construção de sentido deixa latente a forte influência da palavra na constituição do psiquismo humano, interferindo na organização do seu pensamento. Na defesa desse ponto de vista, psicólogos da corrente histórico-cultural, como Vygotsky (1991, 1993) e Luria (1990a), afirmam ser isso uma decorrência do processo de internalização da linguagem, que, sendo vivenciada, primeiro no plano social, junto com o outro, aos poucos vai sendo internalizada, transformando-se em fala interior, ou pensamento verbal. Daí o destaque dos autores para a extrema relevância das interações sociais no desenvolvimento psíquico do ser humano, fenômeno que a literatura propicia por meio da linguagem verbal.

Revestida de um caráter essencialmente lúdico, estético, formativo, a literatura apresenta-se como um alimento fértil às mentes e aos corações das crianças, enriquecendo-as em seu potencial cognitivo, linguístico, afetivo, emocional, e, sobretudo, criador. Pela pertinência dessas reflexões, podemos vislumbrar quão benéfica pode se mostrar a literatura

numa educação que se pretende comprometida com os ideais éticos, humanos, inclusivos. Na verdade, há um leque de possibilidades de desenvolvimento e de aprendizagem que a arte literária pode oferecer aos seus diferentes interlocutores, em especial à criança com deficiência intelectual.

3.2 A LITERATURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PALAVRAS QUE FORMAM E