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6 AS HISTÓRIAS CONTINUAM: REGISTRO DE NOVAS

6.2 REPRESENTANDO COM O CORPO: UM EXERCÍCIO DE IMAGINAÇÃO

6.3.2 Recontando histórias: uma experiência interativa

Contar histórias é uma arte milenar. Desde os tempos mais primitivos, o homem, através dos gestos, das mímicas, das pinturas nas cavernas e dos desenhos, conta e reconta suas histórias, suas aventuras. Assim, por meio destas o homem vem deixando para seus descendentes os registros de seus diferentes passos, de suas crenças, valores e leituras (CAVALCANTI, 2002).

Nos dias atuais (apesar de percebidos com menor frequência), pesquisas ainda dão conta da existência de ciclos noturnos de rodas de amigos, em que tradicionais contadores de histórias ressuscitam narrativas seculares, que são motivos de satisfação e prazer coletivo (BRITO, 2000; RONDELLI, 1993). Nessas práticas, o recontar de histórias apresenta-se como uma atividade criadora, prazerosa, capaz de instigar a imaginação e o deleite dos muitos que a partilham.

Ampliando os estudos acerca da relação entre literatura e linguagem, Freitas (2002) focalizou sua atenção na atividade de reconto de histórias44, procurando perceber suas contribuições no processo de estruturação da linguagem da criança pequena. A partir de suas observações, podemos afirmar que a prática de reconto de histórias favorece esse processo, e, mais ainda, que ele pode ocorrer com crianças que ainda não dominam o sistema de escrita alfabética, “[...] mas que tenham oportunidade de estar envolvidas em práticas de construção de conhecimento em que haja a colaboração do outro, como sujeito mediador” (FREITAS, 2002, p. 135).

44A autora especificou o reconto de histórias, que também adotamos nesta pesquisa, como “uma modalidade de produção textual, oral ou escrita, na qual o sujeito (re)constrói o sentido de uma história recém-narrada, retomando tanto o seu conteúdo como o modo de organização das informações, fazendo uso de funções como a memória, o pensamento e a linguagem, sendo o reconto mediado pela professora-pesquisadora” (FREITAS, 2002, p. 45).

Nosso estudo, no entanto, como não tem a preocupação de investigar essa relação, utilizou-se da análise do reconto como mais uma forma de perceber, de registrar e de inferir acerca da recepção da criança com deficiência intelectual aos contos ouvidos. Mais do que sua competência narrativa, procuramos abstrair, através de sua forma de recontar, que significações estavam sendo construídas e o que nos informavam de suas sensações e de suas impressões sobre as histórias exploradas.

Nesse processo, registramos uma situação na qual a aluna investigada realiza o reconto da história de Rapunzel a partir da solicitação da pesquisadora e da professora Gislene. Tal registro integra-se aos dados do encontro individual realizado com Ana Paula, no dia 28.06.2009. Vale esclarecer que a referida história havia sido contada pela pesquisadora na sala de aula em data anterior, quando, então, utilizou, como material de apoio, um álbum seriado, fixado numa cadeira, contendo oito imagens do enredo. Na ocasião do encontro individual, também foi utilizado o referido álbum.

A protagonista da história, Rapunzel, é uma bela jovem criada numa imensa torre, aprisionada por uma bruxa malvada. O cabelo da menina nunca é cortado, sendo conservado em uma gigantesca trança. Um dia, um príncipe, passando pelo local, ouve a jovem cantando; sobe à torre, apaixona-se por ela e decide salvá-la das garras da bruxa. Ao enfrentar a vilã, é castigado com uma cegueira total. Mas, no final da história, sua visão é recuperada pelas lágrimas da amada. Então, eles se casam e dá-se o esperado final feliz.

Esse conto de fadas, adaptado das obras dos Irmãos Grimm (Anexo 6), mereceu nossa atenção seletiva, em virtude do desejo de também contemplar mais um conto clássico, envolvendo situações de desafio e perseverança, novamente nos trazendo a presença do tradicional conflito entre o bem e o mal. A história teve uma receptividade especial na turma, que se empolgou com seu enredo, inclusive já conhecido pela maioria das crianças. No entanto, no desenvolvimento de sua apresentação, por problemas técnicos, não pudemos contar com o registro da videogravação. Essa ocorrência motivou-nos mais ainda a inserir o seu reconto num dos encontros individuais com Ana Paula a fim de vermos registrada sua recepção.

Assim, no encontro realizado no dia 18.06.2009, na biblioteca da escola, além da responsável pela biblioteca, da pesquisadora e de uma pessoa que filmava, contamos com a colaboração da professora Gislene, que serviu como condutora na atividade de recontação da história pela criança investigada. A decisão quanto à participação da professora titular da turma como condutora desse processo foi tomada sob a alegação de que seria bem mais produtivo se nos colocássemos apenas como observadora, considerando que o nível maior de

proximidade da professora com a aluna poderia favorecer sua maior desenvoltura frente à atividade em questão.

É importante observar que, nessa manhã, Ana Paula tinha se submetido a uma lavagem intestinal em decorrência de dificuldades com o trato intestinal. Em razão de havermos tomado ciência desse ocorrido, consultamos sua irmã que a trouxera à escola, sobre a necessidade de cancelarmos o encontro; mas esta, alegando ser comum tal intervenção, afirmou que não necessitava de fazê-lo, pois Ana Paula já conseguia lidar bem com tais dificuldades. De fato, durante os primeiros momentos do encontro, em que a pesquisadora fez a contação da história, ela apresentou sinais de incômodo com a fralda que utilizava, mas, durante o restante do tempo, não presenciamos maiores dificuldades,nem sequer distrações por parte da aluna.

Sentadas sobre um tapete, tendo à frente o álbum, encontravam-se a professora, a pesquisadora e Ana Paula. Após o reconto da história, realizado pela pesquisadora, foi solicitado à aluna que recontasse a história. A seguir, analisaremos uma pequena passagem desse momento.

Episódio 19: Reconto – Rapunzel (18.06.2009) 1. P3 – Eu vou sentar e você vai contar prá mim, tá?

2. AP – Eh.. Eh... (em pé, ao lado do álbum, aproxima-se das imagens para ver melhor)

3. Pesq – Vamos, conta... Conta a história prá Gislene! Prá Nazineide, prá todo mundo que está aqui (havia mais um professor e a responsável pela biblioteca)

4. AP Qui taíí... (bate palma, olha prá P3, senta-se e volta sua atenção para o álbum). Oiii...

5. P3 – ERA UMA VEZ... (incentivando a aluna a começar)

6. AP – E... (tenta passar uma das folhas do álbum; faço uma aproximação para ajudar e assumo a tarefa).

7. P3 – Era uma vez ... Uma princesa?

8. AP – E ééé!... (olha admirada para a imagem e baixando-se um pouco e batendo as duas mãos coladas à frente) E ééé...

9. P3 – A mulher engravidou de uma bela menina!..

10. AP – É... Éééé... (ainda com as mãos coladas uma à outra, balançando-se um pouco)

11. AP (olha para a pesquisadora) – Contá? 12. Pesq – Vamos, conta!... Mostra prá Gislene!

13. AP- Uáua!

14. P3 – A água! Muito bem... ela queria... 15. AP – Neném...

16. Pesq – Neném!!

17. P3 – Neném... Onde é que tá o neném? 18. AP – Itorinha...

19. P3 – Sim!!!.. (apontando para a imagem) Onde tá o neném?... Da mulher... (AP abre e estende os braços, ao mesmo tempo em que movimenta a cabeça de um lado para o outro).

20. P3 – Não Sabe?

21. AP – Oindo! (leva as duas mãos coladas ao lado do rosto inclinando a cabeça para a esquerda num gesto de dormir)

22. P3 – Ah! Tá dentro da barriga, né? (AP passa a mão na barriga). 23. Pesq – Vamos... Continua...

24. P3 – Continua a história! (AP permanece um pouco olhando as imagens) E, aí?! 25. AP – Nanalha... Mamãe... (AP fica um tempo contemplando a imagem).

Mesmo contando com nossa assessoria e também com a ajuda da Professora Gislene, a aluna só consegue registrar uma passagem do seu reconto da história de Rapunzel. Diferentemente do que presenciamos na leitura da história Maria-vai-com-as-outras, quando a aluna realizou sua “leitura” de forma mais espontânea e independente, nessa nova situação, ela realizou seu reconto somente a partir de respostas às incitações de suas interlocutoras. E, mesmo assim, limitou-se a uma produção que remete apenas a determinadas passagens da história ou aos detalhes das imagens expostas no Álbum Seriado.

Inicialmente, podemos reconhecer um pouco de reserva e timidez na ação de expor ao grupo, ou ainda, de ousar na sua narrativa;por isso mesmo, revela dificuldade de iniciar-se na sua produção (Turnos 2, 4, 8 e 10). A cena, que revela a insegurança da aluna, lembra-nos de um dos trechos do livro Memórias de Emília, de Monteiro Lobato (1994), no quala bonecade pano, a vibrante Emília, decidida a escrever suas memórias, mas hesitando na escrita das primeiras palavras, assim se expressa: “É que o começo é difícil, Visconde. Há tantos caminhos que não sei qual escolher. Posso começar de mil modos” (LOBATO, 1994, p. 15). E, numa tentativa de definir esse começo, então, sugere ao Visconde colocar cinco pontos de interrogação (abrindo a possibilidade de diferentes sugestões do leitor), ao mesmo tempo em que pede que coloque, na sequência, um ponto final (representando os limites dessas sugestões).

Numa divertida e inteligente linguagem, como podemos perceber, a boneca expõe um conflito bastante comum entre os humanos: o de iniciar-se na tarefa de produzir um texto (provavelmente até para os mais conceituados escritores, acreditamos). Assim, não parece estranho que Ana Paula também venha a apresentar tal dificuldade, registrando nos seus gestos, nos movimentos e na fala, as reticências desse começo.

É bem provável que o fato de ser abordada diretamente por suas interlocutoras talvez tenha representado também um fator decisivo para tal conduta. Isso porque, como já presenciado noutros momentos da investigação, mesmo na roda de histórias, nos momentos de pré e pós-leitura, quando indagada diretamente, Ana Paula apresentava uma tendência a se retrair, a não se expor de forma mais espontânea. Contudo, repetimos, esse impasse não a impediu de se pronunciar, de realizar sua produção, de interagir com suas interlocutoras.

É dessa forma que, mais uma vez, percebemos Ana Paula expressando-se corporalmente. No balanço do corpo, no aproximar-se das imagens, no abrir e fechar os braços, no bater palmas. Tudo isso nos revela uma Ana Paula constituindo-se como interlocutora, marcando sua posição social, refletindo sobre suas elaborações, enfim revelando sua imersão no diálogo proposto. Segundo Maingueneau (1989), a linguagem constitui-se como uma forma de ação. Nesse sentido, vemos Ana Paula em ação, falando com o corpo as expressões, os sons da fala; vemo-la envolver-se no exercício do dizer, do se fazer presente. E, assim, partilhando desse cenário de comunicação com seus interlocutores, segue, aos poucos, ampliando suas possibilidades de expressão afetivas, cognitivas e linguísticas.

No que diz respeito mais diretamente aos avanços registrados em sua linguagem verbal, percebemos que, ao ser mais solicitada a expressar-se, ela responde com um esforço de nomear, batizar, identificar aspectos destacados nas imagens expostas. E podemos até dizer que houve também esse mesmo esforço na sua leitura de imagens, uma vez que tentou aproximar-se e se deter mais junto às ilustrações presentes no álbum. Assim, atraída pelo colorido e pelo enigma das imagens (Turnos 08, 24 e 25), vemo-la num exercício de aprendizado do olhar criterioso, que busca, além da admiração, a compreensão, a atribuição de significados.

E ainda que algumas vezes não consiga estabelecer relação direta com o enredo da história, ela ousa apontar determinados detalhes das imagens, como, por exemplo, ao falar “Auáa” (água), relacionando-a ao pote de cerâmica segurado pela camponesa na primeira imagem exposta no álbum, conforme vemos registrada na figura abaixo.

Figura 8: Ilustração do álbum seriado Rapunzel

Fonte: Grimm e Grimm (1998)

Nas respostas ao diálogo proposto, e ainda relacionadas à referida imagem, destacamos sua referência ao “neném”, o que representa a memorização de passagens da história, como foi o caso do desejo da camponesa em ter um filho, bem como sua alusão à ação desse neném que dorme “Oindo!” (Turno 21), fato este não contemplado na história, mas que representa um conhecimento de mundo (normalmente os nenéns estão dormindo). Somado-se a lembrança ou a associação da imagem da camponesa à sua irmã e à sua mãe “Nanalha... Mamãe...”(Turno 25), colhemos indícios de que, no seu esforço de interpretar a imagem, a aluna busca uma aproximação com aspectos da sua vida afetiva, trazendo elementos de vivências construídas no seu cotidiano.

Essa referência a uma relação texto-vida do leitor, ao se pronunciar sobre aspectos relacionados aos textos explorados, também está presente nos estudos sobre argumentação, nas discussões de histórias com crianças pré-escolares realizadas por Freitas (2005) e, ainda, em pesquisa realizada por Brito (2000) sobre compreensão de narrativas orais por adultos contadores e não contadores de histórias.

Outro aspecto a ser considerado, como fator influenciador na produção da aluna, diz respeito às funções que cumprem as imagens/ilustrações apresentadas no álbum. Considerando as funções das ilustrações identificadas por Camargo (1995), já mencionadas neste texto, percebemos a presença das funções estéticas e narrativas, porém em menor escala, uma vez que, em sua maioria, remetem mais às representações dos personagens do que às cenas/movimentos de suas ações, como exemplificado na figura anterior.

Assim, embora considerando as funções desempenhadas pelas imagens apresentadas ao longo do álbum, e, ainda, seu potencial em suscitar a imaginação do leitor, pensamos que,

no caso dessa primeira ilustração45, por exemplo, exigiu-se maior esforço de resgate, de memorização da aluna no sentido de reconstituir o início da história, o que tornou necessária a incitação mais direta por parte de suas interlocutoras.

É interessante notar também que, em momentos posteriores, a aluna avança em sua forma de responder às solicitações, aludindo às ações dos personagens, tornando presente algo da história partilhada junto aos seus colegas na sala de aula, como podemos perceber no episódio abaixo registrado.

Episódio 20: Reconto – Rapunzel (18.06.2009) 42. P3 – E agora? Quem é essa na história? (imagem da bruxa)

43. AP (continuando meio sem jeito, abrindo e fechando os braços, como que procurando as palavras) – Cára...

44. P3 – A madrasta?... A bruxa? 45. AP – Ucha!

46. P3 – A bruxa?!! O que ela fez?

47. A – Ucha... (aproxima-se e se afasta da imagem) 48. Pesq – O que ela fez? (falando baixinho)

49. AP – Abelo! (coloca as mãos na cabeça, pegando algumas mechas do seu cabelo) 50. P3 – Ah! Cortou o cabelo de Rapunzel!

51. Pesq (passando para a folha que continha a torre e a bruxa subindo-a através de suas tranças) – Trancou Rapunzel numa torre (falando baixinho)

52. AP – Caiu, ó!!! (debruçando-se sobre a imagem da torre ao mesmo tempo em que fazia o movimento com os dedos indicando a posição da queda)

53. Pesq – Caiu... (e em voz baixa) Mas aí tá subindo para a torre, né?...

54. AP – É... (em pé, olhando para a imagem; apresenta um movimento de balançocom o corpo).

55. P3 – E agora? (Passamos para a folha que contém a imagem de um cavalo) Depois? (AP senta-se de cócoras e continua com a atenção no álbum) E depois, AP? O que acontece? 56. AP – Avalo!

57. P3 – O PRÍNCIPE chega a cavalo, né?! (a pesquisadora confirma sua informação, e passa, com Ana Paula, para nova folha).

Nesse episódio, dando mostras de sua capacidade de percepção, atenção e memória, ela não se limita apenas a identificar as imagens das páginas do álbum seriado, mas,

utilizando-se de uma única palavra, amplia suas possibilidades de expressão verbal, fazendo referências às ações dos personagens. Embora essa conduta se apresente como característica do desenvolvimento linguístico de crianças mais jovens, entre 18 e 24 meses, quando, então, as “frases” produzidas são tipicamente constituídas por apenas uma palavra (denominadas de holófrases), entendemos que tal fato apresenta um avanço na sua capacidade linguística.

Exemplo disso registramos quando ela diz “Abelo!” (Turno 49), relacionando a imagem da bruxa à sua ação de cortar o cabelo de Rapunzel, conforme apresentada a seguir.

Figura 9: Ilustração do álbum seriado Rapunzel

Fonte: Grimm e Grimm (1998)

Embora o corte das tranças não tenha sido realizado no momento da exposição de tal imagem, a qual remetia à atitude da bruxa quando flagrou o lenhador pegando seus rabanetes, pontuamos a existência de um sentido possível a essa relação. O que parece ocorrer aqui é um indício da referência feita pela aluna a uma ação da bruxa que mais fortemente ficara marcada na memória, o que a faz antecipá-la através da referida associação.

Podemos considerar que, dadas as limitações nas funções cognitivas e linguísticas apresentadas pela criança com Síndrome de Down – capacidade de memória, mobilidade do pensamento, capacidade de síntese, dentre outras –, é compreensível que se atenha a aspectos mais visíveis da história, como é o caso do corte das tranças de Rapunzel pela Bruxa. Esse fato, reconheçamos, também se apresenta com mais destaque à maioria das pessoas que ouviram ou leram essa história. Sua simples menção associa-se imediatamente às enormes tranças de Rapunzel e seu trágico corte pela bruxa.

Na continuidade do diálogo estabelecido com suas interlocutoras, Ana Paula volta novamente a fazer uso de uma palavra “Caiu” (Turno 52) com valor de frase ao interpretar a imagem da torre na qual a bruxa aparece subindo pelas tranças da jovem Rapunzel, conforme figura apresentada a seguir.

Figura 10: Ilustração do álbum seriado Rapunzel

Fonte: Grimm e Grimm (1998)

A expressão emitida pela aluna frente à referida ilustração, ao refletir uma ação registrada na história, a queda do príncipe, que aparece mais à frente no enredo, novamente dá mostras de sua compreensão de aspetos importantes da história. Apesar de percebermos que a imagem não remetia à suposta queda, mas, sim, a uma subida (o que é corrigido pela pesquisadora), referendamos uma resposta positiva da aluna com relação à narrativa. Uma resposta pertinente, cabível, revelando, assim, suas possibilidades de construção de sentidos, de interpretação, enfim de realizar a tradução de uma linguagem visual.

Nessas construções, registramos, igualmente à importância das ilustrações, o direcionamento de suas interlocutoras com vistas a suscitar a percepção e a memória, bem como a capacidade narrativa da criança com relação aos personagens e aos fatos da história. Como Cazarotti e Camargo (2004) enfatizaram, o papel do mediador apresenta-se determinante no início do processo narrativo da criança. O interesse apresentado por suas respostas, tanto orais como gestuais, buscando entendê-las e oferecendo o apoio de uma contrapalavra, favorece o assumir ativo da criança no seu papel de interlocutora. Sentindo-se aceita, compreendida, valorizada em suas elaborações, a criança investe-se do papel de interlocutora.

Assim, com relação ao episódio anterior, registramos várias estratégias apresentadas, tanto pela pesquisadora quanto pela professora de Ana Paula, num trabalho colaborativo, no sentido de favorecer seu processo narrativo, seja instigando a aluna a avançar e se guiar na sequência narrativa: “E agora? Quem é essa na história?”, “E depois? O que acontece?” (Turnos 42 e 55), seja corrigindo ou retomando o enredo: “Trancou Rapunzel numa torre”; “Mas, aí, tá subindo para a torre, né?” (Turnos 51 e 53), ou exigindo uma maior elaboração

em sua resposta: “A madrasta... A bruxa?”, “A bruxa? O que ela fez?” (Turnos 44 e 46), seja, ainda, complementando suas respostas de forma a torná-las mais claras e significativas: “Ah! Cortou o cabelo de Rapunzel!”; “O príncipe chega a cavalo, né?” (Turnos 50 e 57).

Numa concepção de linguagem vista como dialógica, e não apenas como fruto de uma mera decodificação, Geraldi (1997) explicita que esta deve ser compreendida como uma sistematização aberta de recursos expressivos (sons, gestos, movimentos expressivos, palavra) que somente se concretizam no transcurso do próprio acontecimento interativo.

Assim, no episódio descrito, motivada pela ação mediadora de suas interlocutoras, a aluna apresenta uma maior apropriação de suas respostas, o que se dá de forma mais pontual, mais clara, focando os fatos, e não apenas se prendendo a detalhes das imagens presentes no álbum. Suscitar o interesse e principalmente ajudar esse leitor/contador na visualização de dados que podem remeter a aspectos importantes das narrativas, fornecendo-lhe pistas, sinais, indícios, torna-se, pois, como relevante para uma maior aproximação deste com o texto narrativo, munindo-o de instrumentos básicos para o desenvolvimento de sua autonomia como leitor e narrador. Essas estratégias encontram-se, assim, em sintonia com a metodologia da andaimagem (GRAVES; GRAVES, 1995), em que se fazem necessários os suportes para uma ação efetiva e autônoma no processo de formação leitora.

Reconhecemos, portanto, que, mesmo diante da dificuldade de construir o seu reconto, exigindo um maior monitoramento de suas interlocutoras, Ana Paula mostrou sinais positivos de sua recepção, revelados em sua disposição e no prazer em participar da atividade, bem como nas associações das imagens com fatos relevantes da história. Também apresentou ganhos linguísticos consideráveis, que, numa situação coletiva, pouco se podem revelar.