• Nenhum resultado encontrado

5 AS PRÁTICAS LEITORAS E A CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA

5.2 O MOMENTO DA LEITURA E DA CONTAÇÃO: ESCUTANDO AS

5.2.2 O encanto via prosódia

Sabemos que a via sensorial apresenta-se como a primeira via de interação social e de acesso ao conhecimento de mundo apresentada pelo bebê humano. Piaget (1975, 1993, 2003) fornece-nos dados importantes do desenvolvimento cognitivo da criança, que ajudam na legitimação de uma aprendizagem pelos sentidos, pela ação de um corpo sobre o mundo. Para o autor, o bebê acerca-se, inicialmente, do meio externo através de esquemas constituídos biologicamente, os esquemas reflexos.

Numa outra direção, paulatinamente, e como resultado da ação interativa do bebê sobre o mundo que o cerca, novos esquemas vão se formando – os esquemas sensórios- motores – alterando sua organização mental. É percebendo as cores, as formas, as vibrações do mundo externo e, principalmente, os sons das palavras – e agindo sobre elas – que a criança, aos poucos, vai se constituindo como um ser cognoscente. E tudo isso permeado por

um clima de afetividade, pela presença de um Outro que o significa a partir do olhar, do toque, e especialmente da voz.

Assim, é pelas palavras afetuosas de um Outro que o acalenta – normalmente a mãe – que o bebê se inicia na construção de sua identidade. Reconhecendo-se nos sons que emanam desse outro, a criança, em seu próprio ritmo, introduz-se no mundo humano, no mundo simbólico. Sua senha? Dizemo-lo: a palavra. Mas, será? Afinal, não poderíamos considerar que, mesmo antes de conhecer os significados da palavra a ele dirigida, o bebê já não responde aos sons diversos? Sendo assim, então, não seria a entonação, o ritmo e a intensidade da sonoridade da palavra que inauguram a percepção existencial do bebê humano, seja ele deficiente ou não?

Transpondo nosso foco para a experiência com o texto literário, não poderíamos reconhecer, na via sensorial, um primeiro caminho para guiarmos a criança em seu percurso como leitora, levando-a a mergulhar no mundo da ficção, da imaginação? Sendo assim, não seria a voz do contador/leitor um convite primeiro para o encontro da criança com os mais diversos gêneros textuais, como os contos? Mais do que a palavra em si mesma, não seria a sonoridade do timbre da voz do leitor/contador, sua intensidade, frequência, e, enfim, emotividade, que demandariam realmente a atenção do ouvinte iniciante, notadamente quando ainda não alfabetizado?

Para nos ajudar a pensar a respeito dessas indagações, recorremos ao pesquisador alemão Hans Ulrich Gumbrecht, que, dando destaque à dimensão sensorial da linguagem, identificou um fenômeno linguístico a que denominou como "produção de presença" (em oposição à produção de sentido), buscando caracterizar os efeitos sensíveis e materiais da literatura e das artes provocados no leitor/espectador.

Refletindo sobre o pensamento do referido autor, Bines (2010, p. 71) pondera:

Na perspectiva de Gumbrecht, a linguagem estética é um acontecimento concreto e esta dimensão material da arte teria precedência sobre sua dimensão inteligível. Quando um texto é lido em voz alta, algo acontece no próprio ato de vocalização: a língua é posta em movimento pelo suporte da voz. Essa mudança de canal, ou seja, a transferência da página para a voz, impacta fortemente na maneira de receber e fruir este material. Ler um texto silenciosamente, em solidão, virando as páginas com as mãos e ouvi-lo em voz alta, na companhia de muitas crianças, sem o suporte do papel, através da propagação de ondas sonoras no ar, são experiências de leitura radicalmente distintas.

Podemos entender, então, que o suporte material do texto impacta de forma diferenciada a recepção deste pelo leitor/espectador, podendo ser reconhecido como um elemento importante para a sua compreensão. Para Grumbrecht (2010), os meios porque os

textos são veiculados contribuem na produção do significado, tendo, pois, o sentido construído não somente pela ação interpretativa do sujeito leitor mas, sobretudo, pelo suporte material que lhe dá sustentação. Assim, na interação com o texto literário, mesmo ainda não tendo a competência necessária para compreender a estrutura linguística ali presente, a criança, sob a mediação da voz do contador/leitor de histórias, encontra sentido no acontecimento da própria linguagem, ou seja, na sua forma, no seu ritmo, na sua entonação, na sua frequência, podendo, em consequência, elaborar suas próprias significações.

E se formos focalizar a criança com Síndrome de Down, que apresenta limitações intelectuais e linguísticas? Como pensar a compreensão e o usufruto de uma narrativa literária considerada complexa na sua organização cognitiva e linguística? Como se deixará guiar pela materialidade da voz do contador/leitor, sendo, então, ampliadas as possibilidades de uma compreensão textual?!

Embora não tenhamos respostas conclusivas para tais questões, ousamos pontuar que encontramos indícios nos modos de participação da criança investigada, que podem ser relacionados às diferentes nuanças apresentadas pela voz do contador/leitor. Neste estudo, observamos que, em diferentes momentos da pesquisa, principalmente quando se registravam diferentes ritmos e entonações nas narrativas, havia percepção mais ativa, o que evidencia a importância desse aspecto como fator de mobilização para o acercamento da criança com deficiência intelectual ao texto literário.

Assim, destacando-se a relevância da prosódia37 não somente para a manutenção do interesse da criança pela narrativa mas, sobretudo, como auxílio às possibilidades de significação, bem como à sua resposta à referida narrativa, analisamos o episódio abaixo.

Episódio 5: Contação – O Elefantinho Malcriado (03/06/2009)

60. Pesq – Mas, perto do elefantinho, ninguém chegava perto... (na sala um silêncio total). No início, o elefantinho ficou... Assim... (baixando a voz) Nem ligou... Fingiu que nem ligava... Fez até pirraça! (E imitando a voz do elefantinho) – “Eu nem ligo! Na verdade, eu nem gosto de barulho!” (AP atenta).

61. Pesq – Mas, geeente!!!... No final do dia... (suspense)

62. AP – Ãnh!!! (coloca novamente as mãos na boca, de forma rápida, simulando um susto).

37

Refere-se à “[...] modulação da altura, intensidade, tom, duração e ritmo da leitura oral de um texto pautada em sua coesão e coerência. Considera as relações hierárquicas do texto, a aceitabilidade da interpretação feita pelo/a leitor/a e as condições de interação leitor-texto-contexto em sua dimensão voz/audição” (CASTELLO- PEREIRA, 2003, p. 53).

63. Pesq – Ele ficou tão tristinho... Tão tristinho... Que ficou lá no cantinho dele... Na segunda-feira, ele continuou triste!... Na terça-feira... Na quarta-feira... NA QUINTA- FEIRA, ia passando uma pombinha que viu o elefante chorando. (AP se mexe, sorri, se arrasta um pouco, ficando mais próxima da pesquisadora). Chorando!... Uma lágrima graaannde (AP com olhar pensativo, compenetrado)!!! Uma lágrima de elefante (novamente volta a atenção para a narradora)!... O que foi que aconteceu, elefantinho (com a atenção voltada para Ana Paula)?

64. AP – Afante! (de forma descontraída, sorridente, movimenta o corpo para trás, encolhe as pernas e depois as estica, permanecendo relaxada, com as mãos apoiando o corpo por trás...).

65. Pesq – Eu estou muito triste (voltando-se para a turma), pois eu não tenho o que quero (AP, na mesma posição, mexe com as pernas, olhando ora para estas, ora para o grupo). Eu gostaria de ter amigos... Não vou ser... Não vou mais ser malcriado...

Neste episódio, percebemos o efeito da obra sobre uma leitora ainda iniciante, mas que, aos poucos, vai se constituindo como membro de uma comunidade de ouvintes. Um efeito que se manifesta em seu corpo, nas suas expressões e em seus movimentos; uma resposta interativa, reflexiva, atenciosa. Mobilizada pelas sensações e percepções suscitadas pelo ritmo da narrativa, o corpo da aluna também fala de seu envolvimento, de sua compreensão, de sua participação.

Como destaca o pensamento walloniano, a expressão corporal das emoções sugere uma vinculação recíproca entre o tônus, o movimento e a função postural, sendo a alegria um estado de equilíbrio e de ação recíproca entre o tônus e os movimentos (GALVÃO, 2004). Assim, reconhecemos, na postura e nos movimentos corporais de Ana Paula, um estado de equilíbrio, de relaxamento, de satisfação. Aproximando-se, afastando-se, levantando as pernas, ou, ainda, simulando o gesto do susto, ela parece dizer de sua alegria, de sua satisfação no acolhimento à narrativa da história.

Parece-nos evidente o fato de que a prosódia encontra-se a serviço das condições geradoras desse acolhimento, o que passa, necessariamente, pelas possibilidades de significação da narrativa. Assim, a cadência e o ritmo das palavras e expressões da contadora parecem guiar a atenção da aluna, levando-a a seguir o movimento da narrativa, contribuindo para a compreensão de seu enredo. Nesse sentido, concordamos com Amarilha (2010, p. 98), para quem a sonorização apresenta-se como “[...] a primeira interpretação que o leitor aprendiz pode ter do texto escrito, uma vez que a prosódia permite criar a significação do texto pela oralidade”.

Nessa direção, Bakhtin (1997b) afirma que a palavra como unidade não assegura a emotividade, a avaliação e a expressividade; essas características somente são geradas no processo de uso interativo da palavra em si, considerando o contexto no qual se insere. Refletindo sobre isso, podemos reconhecer que, num certo nível, o contador de histórias narra por meio da entonação, o que torna a parte verbalmente expressa da fala relativamente substituível.

Held (1980, p. 49), ao discutir a importância da mediação do adulto para o desenvolvimento da imaginação da criança, apresenta um destaque especial à leitura da história em voz alta. Segundo a autora,

[...] é a voz do adulto que não só informa a criança quando poderá haver inquietude, mas a auxilia também, por suas entonações, a traçar a linha de demarcação entre o real e o ficcional, a aprender o humor de um texto em vez de tomá-lo “ao pé da letra”, que prepara, enfim, esse verdadeiro leitor que será capaz de uma leitura “entrelinhas”, que é a verdadeira leitura.

Essa informação é relevante para refletirmos sobre o duplo benefício cognitivo – a formação do sujeito ouvinte, bem como do sujeito pensante – que a escuta de histórias pode oferecer às crianças, inclusive à que apresenta deficiência intelectual. Entendemos, como Amarilha (2006a, p. 30), que: “Livre da função de vocalizar, mas conduzido pela voz do outro, o ouvinte potencializa as funções cognitivas de acompanhar o fluxo narrativo, de envolver-se na significação da história”. A simulação do susto, no Turno 62, apresenta-se como um exemplo vivo desse envolvimento, justamente quando a aluna sinaliza sobre sua compreensão, sobre sua intimidade com o texto narrativo, quase se antecipando quanto ao que estaria por acontecer no fluxo da narrativa.

Pressupomos que experiências anteriores com outras leituras e contações, com seus ritmos e tons diferenciados, com certeza, tornaram-se alimento para a construção de um conhecimento que poderíamos chamar de leitor, uma vez que se reporta às especificidades da linguagem literária. Esse conhecimento leitor englobaria, por exemplo, a familiaridade com a forma convencional presente nas narrativas – expressões de início e fim de uma história, bem como com as estratégias utilizadas pelo contador no que diz respeito aos ritmos e à intensidade da voz. Numa outra perspectiva, tal conhecimento contribui para que, de certa forma, cada novo texto possa ser mais acessível, previsível para o leitor/ouvinte, impulsionando, assim, sua imersão no mundo lúdico da fantasia e da imaginação. Nesse ponto, verifica-se um efeito que revela o prazer, o deleite pelo narrado, pelo imaginado.

Esse efeito, todavia, não nos parece algo fácil, gratuito. Ao contrário, podemos reconhecê-lo, novamente, como fruto de um aprendizado social. Nessa perspectiva, pensamos ser impossível alguém se tornar leitor, apreciador de obras literárias se a ele forem negadas oportunidades de ouvi-las, de conhecê-las. A escola infantil cumpre um papel vital nesse processo, contando com a mediação do professor, seja dando continuidade a uma prática vivenciada no seio familiar, seja investindo no processo de aproximação das crianças aos textos literários, emprestando sua voz aos inúmeros escritores e contadores de histórias.

Além disso, também podemos atentar para o fato de que não é somente através da voz que se possibilita ao ouvinte essa aproximação com o texto literário. Os movimentos corporais e as expressões do contador também comunicam algo sobre o texto, complementando os significados das palavras e ampliando as possibilidades de compreensão da criança.

Assim, na atividade do contador de histórias, também podemos encontrar um pouco da função do ator, do teatrólogo. Na emissão da narração textual, ele incorpora muitas vezes o personagem do qual fala, dando-lhe corpo e voz no decorrer da narrativa. É a imagem viva do contador contribuindo, com sua performance, para a construção do sentido do texto, tornando- o mais atraente e compreensivo para seus ouvintes, seus espectadores.

A seguir, analisaremos um episódio registrado na contação da história Maria-vai- com-as-outras (Figura 4), baseada no livro da escritora Sylvia Orthof (2008), no qual encontramos dados para tal constatação.

Figura 4: Capa do livro Maria-vai-com-as-outras

Fonte: Orthof (2008)

Como podemos apreciar no Anexo 4, o enredo contempla a história de Maria, uma ovelhinha, que parecia não ter vontade própria, fazendo sempre o que as outras ovelhas faziam, e assim passando por situações desagradáveis, inclusive comendo salada de jiló,

alimento que detestava. A história culmina com o momento em que Maria começa a fazer uma autocrítica e, então, deixa de se sentir influenciada pelo comportamento das demais ovelhas, passando a agir de forma diferente, seguindo seus próprios desejos e preferências, deixando, enfim, de ser uma Maria-vai-com-as-outras.

Pensamos na inclusão dessa história no repertório da pesquisa pela profusão de elementos estéticos, que, provavelmente, favoreceriam a participação da criança-foco da nossa investigação. Atraente pela simplicidade, concisão e leveza, a história apresenta uma linguagem com repetições, além de um enredo divertido e bem-humorado, conseguindo facilmente a adesão de qualquer criança. Com personagens do conhecimento das crianças, as ovelhinhas, a história também faz referência a elementos e fenômenos do mundo real, tais como uma lagoa, um restaurante, os climas quente e frio, o que, dada a suposta proximidade com o conhecimento de mundo das crianças, também facilitaria sua adesão.

A contação foi realizada com a utilização de uma caixa-surpresa. No interior da caixa, encontravam-se alguns flocos de algodão: um floco cor de rosa, representando a ovelha Maria, principal personagem da história; e vários outros de cor branca, utilizados para representar as demais ovelhas. Na medida em que transcorria a narrativa, a pesquisadora ia retirando os algodões da caixa, e encenando os movimentos realizados pelas respectivas ovelhas. Pranchas contendo desenhos das principais passagens do texto também foram utilizadas como recursos auxiliares no processo de contação dessa história.

Episódio 6: Contação – Maria-vai-com-as-outras (09/06/09)

55. Pesq – ERA UMA VEZ (AP, que se encontrava dispersa, movimentando seus braços unidos por cima da cabeça, ao ouvir a entonação da voz narradora marcando o início da história, volta-se imediatamente para ela) uma ovelha chamada MARIA!... (a pesquisadora retira o pedaço de algodão rosa da caixa, apresentando-o à turma. AP estende seu corpo na direção da caixa, apoiando-se nas mãos, mas logo retorna ao seu lugar, ao mesmo tempo em que direciona o olhar e uma fala para um dos seus colegas, através de um movimento labial, e, ainda, apontando para a caixa, dando a impressão de estar comentando algo sobre ela) Aonde as outras ovelhas iam... (a pesquisadora retira os flocos de algodão da cor branca e simula a caminhada das ovelhas) Maria IA... ATRÁS!!!... (AP segue boquiaberta e com olhar fixo nos movimentos da pesquisadora com os flocos de algodão). As ovelhas iam para baixo!... Maria ia para baixo também!... (Igualmente como sucedia com Clara, AP seguia atentamente os movimentos da pesquisadora com os flocos de algodão simulando a caminhada das ovelhas) As ovelhas iam prá cima!... Maria ia prá cima também!... Maria ia sempre com as outras!... UM DIA as ovelhas decidiram ir

para o pólo sul!... (Rindo, AP faz um gesto súbito com as mãos coladas uma na outra em direção às pranchas; Gio também faz algo parecido) Maria foi também!!!... Ai, que lugar frriiiooo!!!... (AP apresenta um gesto de encolhimento) As ovelhas... pegaram uma gripe! Maria pegou uma gripe também! (AP suspende as mãos em torno da boca e simula um olhar de susto) Atchim! Atchim!!! (Rindo, AP simula um espirro. Crianças apresentam comportamento atento).Depois, as ovelhas resolveram ir para o deserto! Maria foi para o deserto também!... Ai! Que lugar quente (AP acompanha atentamente os movimentos que a pesquisadora faz com os pedaços de algodão)!... As ovelhas tiveram insolação!... Maria teve insolação também! Uff!!!... Maria ia SEEEMPRE COM AS OUTRAS (AP realiza um rápido toque entre as mãos, sorridente, como que sinalizando o final da citação)!... 56. Gio – Sabia que a rosa é muito rosa? (apontando para as pranchas – que eram de cor rosa).

57. Pesq– Um dia... 58. AP – Ia!...

59. Pesq – As ovelhinhas resolveram comer ... 60. AP – A uuuua!...

61. Pesq (continuando a narrativa) – Salada de Jiló!... 62. AP – A uaaa!

63. Pesq (continuando a narrativa) – MARIA detestava jiló (AP com o olhar direcionado para um dos colegas, murmura algo e aponta para a direção da pesquisadora como comentando algo de sua fala)!... Mas como as outras ovelhinhas comiam jiló... Maria também comeu!... Oh! Que horror!... (AP segue com olhar atento às pranchas e aos movimentos que a pesquisadora faz com o algodão) De repente, Maria pensou: Se eu não gosto de jiló, por que tenho que comer salada de jiló?... (AP realiza um gesto espontâneo e repentino de simulação de susto) Maria pensou, pensou... Suspirou... Mas continuou fazendo o que as outras faziam... Maria ia sempre com as outras!!!...

Nesse episódio, torna-se perceptível que é pelo alcance da voz narrante, e mais especialmente atraída pela entonação dessa voz, que a aluna, de forma mais efetiva, vai se incluindo na comunidade de ouvintes presentes, tal como registrado: “AP que se encontrava dispersa, [...] ao ouvir a entonação da voz narradora marcando o início da história, volta-se imediatamente para ela” (Turno 55). É a materialidade do texto impactando o espectador/leitor, conforme destaca Gumbrecht (2010).

Aliada a essa materialidade do texto, podemos identificar também a sua qualidade estética, como um dos fatores mais relevantes na manutenção do interesse e do envolvimento das crianças, inclusive Ana Paula. Além dos aspectos anteriormente expostos sobre a

qualidade do enredo – simplicidade, leveza, ritmo, dentre outros, podemos destacar ainda o caráter emancipador do texto: uma ovelha que faz diferente, que se liberta da mesmice. E tudo isso numa linguagem atraente, divertida, bem-humorada.

Reconhecemos também que, nessa contação, bem como na história “A Princesa e a Ervilha”, os recursos plásticos colaboram significativamente com a performance da contadora, ampliando as possibilidades de respostas das crianças ao texto focalizado. Os movimentos, as expressões, por exemplo, parecem merecer maior atenção da criançada, no transcorrer da narrativa. Ao representar o andar das ovelhas através dos movimentos realizados com os pedaços de algodão, a narradora consegue ativar mais intensamente a percepção estética das crianças. É como se a narrativa ganhasse mais vida, mais cor, mais presença; e assim se tornasse mais leve, mais lúdica, mais compreensiva (principalmente para a criança com deficiência intelectual).

Piaget (1975), ao identificar que a inteligência não se encontra determinada biologicamente, mas se constrói a partir da interferência, sobretudo da ação do sujeito sobre o objeto do conhecimento, estabeleceu uma sequência de etapas em que o pensamento concreto necessariamente antecede o pensamento abstrato38. Este último remete ao pensamento formal, que torna o indivíduo capaz de elaborar uma lógica baseada em proposições – o que a distingue da lógica das classes e das relações, que intervém no nível concreto e se baseia diretamente nos objetos.

Decorre daí que as estruturas de pensamento das crianças que se encontram no período pré-operatório, como as que estão sendo observadas, remetem a uma forma de funcionamento guiada principalmente pela experiência do visível, do dado, do concreto. Assim, suas experiências, quando apoiadas em material concreto, servem de alavanca para o desenvolvimento dos níveis superiores de pensamento, necessários não só para o avanço dos conceitos lógico-matemáticos mas também para a compreensão dos processos de aprendizagem das demais áreas de conhecimento – culturais, linguísticas, estéticas. Por esse raciocínio, entendemos que, no momento em que fizemos uso de materiais plásticos (como os pedaços de algodão representando as ovelhinhas), realçamos a recepção das crianças à narrativa da história.