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A literatura sobre o mutualismo português: uma breve revisão

Parte 1 Origens e Problemáticas do Mutualismo Português

1.2. A literatura sobre o mutualismo português: uma breve revisão

Em Portugal, o estudo do fenómeno mutualista desenvolveu-se, quase em simultâneo, com o primeiro surto de fundações de novas associações que ocorreu a partir da segunda metade do século XIX. Os autores coevos do movimento procuravam, grosso modo, caracterizar o progresso do movimento e identificar as principais causas da sua

irregular evolução e as razões que impediram o movimento de atingir a dimensão que alcançou noutros países europeus. Este é o entendimento do primeiro trabalho empírico sobre o mutualismo português, um estudo encomendado a uma comissão nomeada em 1866, através do Decreto de 22 de novembro de 1866, pelo Ministro e Secretário de Estado das Obras Públicas, Andrade Corvo, para «propor ao Governo tudo o que tiver por conveniente para o desenvolvimento e prosperidade das sociedades de socorros

mútuo»177, comissão que designaremos de Comissão de 1866178. Das suas conclusões saiu grande parte das temáticas sobre o mutualismo português que se analisaram nas décadas seguintes.

No mesmo sentido, os trabalhos pioneiros e grande parte das linhas mestres em torno das quais se desenrolou o debate sobre o mutualismo português ao longo deste período foram também inauguradas por Costa Godolfim em diferentes trabalhos179: A

Associação (1874)180, Les Instituitions de Prévoyance (1883)181, A Previdência:

Associações de Socorros Mútuos, Cooperativas, Caixas de Pensões e Reformas e Caixas Económicas (1889)182, Assistance Publique en Portugal (Économie Sociale) (1900)183 e

Da Acção da Mutualidade na Economia Social (1910)184. Mas foi sobretudo de na obra

A Associação que Godolfim elencou o que designou de obstáculos ao desenvolvimento

do mutualismo português185. O autor apontou, a esse respeito, o desinteresse dos poderes

públicos, a excessiva generosidade das associações em função da ausência de cálculos atuariais e da presença de modelos de governação desajustados e a inércia das populações face ao associativismo.

Importante notar que as reflexões de Godolfim emanam das conclusões avançadas pela Comissão de 1866, sendo que o trabalho desta comissão e a análise posterior de Godolfim acabariam por alinhavar grande parte das linhas de análise que seriam trabalhadas nas décadas seguintes186. Com efeito, partindo da premissa de que o trabalho da Comissão de 1866 não tinha obtido resultados práticos, ou seja, não tinha conduzido

177 AHMOP, «Comissão encarregada de estudar as organizações de socorros mútuos, nomeada pelo Decreto

de 22 de Novembro de 1866», DGCI-RCI-1S 17.

178 As funções desta comissão englobavam a realização de um inquérito às associações de socorros mútuos

para se aferir do seu estado e apontar as medidas que os poderes públicos deviam implementar para promover o mutualismo em Portugal. A comissão ficou constituída por duas subcomissões, uma localizada no Porto (com 14 indivíduos) e outra em Lisboa (também com 14 indivíduos). A constituição e o relatório dos trabalhos desta comissão encontram-se no Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (pasta DGCI-RSI-1S 17 a 23).

179 José Cipriano de Costa Goodolphim (ou Godolfim) nasceu a 3 de novembro de 1842 e morreu a 6 de

dezembro de 1910, em Lisboa. Foi um acérrimo defensor do associativismo, professor, publicista e poeta.

180 Costa Godolfim, op. cit., 1974.

181 Idem, Les Instituitions d Prévoyance, Lisboa, Ed. da Sociedade de Geografia, 1883.

182 Idem, A Previdência: Associações de Socorros Mútuos, Cooperativas, Caixas de Pensões e Reformas e Caixas Económicas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889.

183 Idem, Assistance Publique en Portugal (Économie Sociale), Comunicação da Secção Portuguesa

apresentada na Exposição Universal de Paris, Paris, 1900.

184 Idem, Da Acção da Mutualidade na Economia Social, Imprensa Nacional, Lisboa, 1910.

185 Na obra A Associação, Godolfim critica a falta de resultados práticos das conclusões da Comissão de

1866, ou seja, lamenta que o Estado não tenha assumido o desenvolvimento do movimento mutualista. Ver Godolfim, op. cit., 1974, p. 199.

186 AHMOP, «Atas da Comissão encarregada de estudar a organização das Sociedades de Socorros Mútuos,

nomeada por Decreto de 22 de Novembro de 1866 (1866-1869)», pasta DGCI-RSI-1S 17 a 23, sendo que essas atas dizem respeito a nove reuniões ocorridas entre novembro de 1866 e dezembro de 1967.

o Estado a promover o desenvolvimento do mutualismo em Portugal187, o autor desenvolveu um conjunto de reflexões sobre as problemáticas do desenvolvimento do mutualismo português. Godolfim considerava, em primeiro lugar, que o Estado tinha grandes responsabilidades na forma desorganizada com que as associações mutualistas tinham evoluído desde 1848, «como as plantas do mato»188, culpando-o «pela ampla liberdade que lhe tem dado, e ao povo, pela inércia»189. Para este autor, o período de total liberdade de fundação que conheceram levou-as a reproduzir as fragilidades umas das outras, gizando-se assim um caminho de dependência, uma matriz negativa que grande parte das associações transportavam consigo190. Esta dependência só poderia ser interrompida através da intervenção estatal, lamentado o autor o facto trabalho da Comissão de 1866 não ter resultado, como era o seu objetivo, na produção da primeira legislação específica sobre mutualismo em Portugal devido à oposição do Ministro do Reino191, o Bispo de Viseu, D. Alves Martins192.

Outro dos problemas identificados por Godolfim era o excesso de benefícios oferecidos pelas associações aos seus associados em função das contribuições exigidas. Baseando-se no inquérito realizado em 1866, pela Comissão de 1866, Godolfim expõe a excessiva generosidade do mutualismo português, ou seja, «o espetacular número de benefícios que oferecem aos seus sócios e que não estão em harmonia com a quota que lhe sé pedida»193, identificando a desmesurada multiplicidade dos produtos mutualistas que ofereciam (algumas associações acumulavam os socorros médicos com as pensões, com o socorro na inabilidade, com os subsídios de funeral e com os subsídios para os medicamentos), e a deficiente relação entre as contribuições dos associados e os subsídios pagos pelas associações, ilustrando esta ideia com o exemplo de associações mutualistas de Lisboa que ofereciam subidos de doença de 50 a 60 reis semanais, enquanto se os

187 Para Godolfim, a Comissão de 1866 apresentou um modelo mutualista que seguia o modelo da Bélgica,

ou seja, dividia as associações mutualistas em dois tipos as livres e as reconhecidas pelo governo, gozando estas de uma proteção e apoio que as primeiras não teriam. Godolfim, op. cit., 1974, p. 199.

188 Godolfim, op. cit., 1974, p. 198. 189 Ibidem, p. 197.

190 No que respeita ao conceito de Path Dependence seguimos aquele desenvolvido por Douglass North,

na qual o autor relaciona a capacidade de mudança institucional e as dificuldades inerentes a essa mesma mudança em função do comportamento dos agentes económicos e das instituições. Ver Douglass C. North,

Institutions Institutional Change and Economic Performance, Cambridge, Cambridge University Press,

1990, pp. 94-104.

191 Sobre esta figura Godolfim escreveria que «o seu génio económico não lhe deixou ver as vantagens que

dela resultariam». Cf. Costa Godolfim, op. cit., 1974, p. 199.

192 D. Alves Martins, refira-se, foi Ministro do Reino entre 22 de julho de 1868 e 11 de agosto de 1869,

condição em que não deu seguimento ao trabalho da comissão e 1866.

associado ficassem doentes receberiam um subsídio de 160 a 200 réis diários194. As soluções apresentadas por Godolfim procuravam diminuir os efeitos negativos dessa path

dependence corrigindo, sobretudo, a multiplicidade de socorros mutualistas que os seus

membros podiam subscrever, limitando-os a dois: o socorro na doença e na inabilidade e o amparo aos órfãos. Procurou-se, sobretudo, evitar socorros que, pela sua imprevisibilidade e/ou grande extensão no tempo, apresentassem mais riscos financeiros, como era o caso mais evidente do subsídio de inabilidade195.

A necessidade de aferir o número de associações e de associados iniciada por Godolfim viria a tornar-se um tema central para os estudos posteriores, conforme denotam os trabalhos posteriores que tiveram uma grande preocupação em contabilizar o número de associações e de associados. Enquadram-se aqui os estudos de Guilherme Augusto de Santa Rita, O Socorro Mútuo de Lisboa (1901)196 ou de Domingos da Cruz, A Mutualidade em Portugal (1934)197. Estas obras têm também constituído as fontes

essenciais para outras análises quantitativas do mutualismo, assim como os estudos de José Lobo d’Ávila Lima, Socorros Mútuos e Seguros Sociais (1909)198, de A. de

Magalhães Basto, Origens e Tradições do Mutualismo Português e em Especial do

Portuense (1938)199, ou de Manuel Anselmo, O Mutualismo como Doutrina Social

(esboço Filosófico) (1938)200. A todos estes estudos é comum a preocupação de relacionar a quantidade de associações e de associados com a vitalidade do mutualismo.

A predominância desta análise quantitativa foi decerto encorajada pela presença de inquéritos e outras fontes estatísticas produzidas em função dos diversos congressos associativos realizados durante a segunda metade do século XIX, encontros nos quais foi vincada a necessidade de se desenvolver um maior conhecimento estatístico do movimento mutualista. Destacamos aí o Primeiro Congresso das Associações

Portuguesas (1883)201 e os Trabalhos Complementares do Primeiro Congresso das

194 Ibidem, p. 199.

195 Godolfim defendeu também que para a estabilidade financeira das associações no suporte a estes fins

deveriam as associações ter «uma caixa de crédito, funcionando na mesma forma que o Montepio Geral, a Caixa de Crédito Industrial e outros estabelecimentos deste género». Cf. Costa Godolfim, op. cit., 1984, pp. 205-206.

196 Guilherme Santa Rita, op. cit., 1901.

197 Domingos da Cruz, A Mutualidade em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934.

198 José Lobo d’Ávila Lima, Socorros Mútuos e Seguros Sociais, Coimbra, Imprensa da Universidade,

1909.

199 A. de Magalhães Basto, Origens e Tradições do Mutualismo Português e em Especial do Portuense,

Porto, Tip. Leitão, 1938.

200 Manuel Anselmo, op. cit., 1938.

Associações Portuguesas (1883)202. Acrescem aqui os vários esforços dos poderes públicos para produzir informação estatística sintetizada sobre o movimento, destacando- se as edições do Anuário Estatístico, publicado pelo Ministério das Obras Públicas desde 1875203, os inquéritos e a informação quantitativa difundidos no Boletim da Providência

Social desde 1916 (sobretudo o inquérito às associações mutualistas publicado em

1916)204, alguns dados apresentados no Boletim do Trabalho Industrial (em particular, a «Inquirição pelas Associações de Classe sobre a Situação do Proletariado – Apuramento das Respostas ao Questionário da Repartição do Trabalho», efetuado por J. de Oliveira Simões, em 1910)205.

O Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP)206 continua a ser o principal depositário para o período em estudo, ainda que cronologicamente a informação aí contida seja sobretudo útil até 1910, dispersando-se a partir dessa data por outros arquivos, como a Torre do Tombo ou o Arquivo do Ministério do Trabalho, para mencionar os mais significativos. Todavia, grande parte da documentação produzida pelas associações mutualistas permanece na posse daquelas ainda existentes, ou em parte incerta em relação às já extintas. Trata-se de documentação fundamental para a construção da história do mutualismo português que urgia reunir e classificar.

Destoam desta limitação alguns estudos de cariz monográfico que foram sendo produzidos a partir ainda do século XIX. Apesar do seu cariz comemorativo cercear uma parte significativa do seu valor documental, sobretudo no que respeita a dados quantitativos e aos mecanismos de decisão, e ser escassa a sua produção, no número de associações retratadas, a sua edição não deixa de constituir fontes significativas para o estudo do mutualismo. Destacamos, neste grupo, O Montepio dos Servidores do Estado (1979)207, Cem Anos de Mutualismo, que retrata os primeiros cem anos da Associação de

Socorros Mútuos dos Empregados no Comércio e Indústria (ASMECI) (1954), de

Elmano Coelho208, Cem Anos Depois, sobre a Associação de Socorros Mútuos dos Empregados no Comércio de Lisboa (ASMECL) (1954), de Mário Nunes e Joaquim Pina

202 AA.VV., Trabalhos Complementares do Primeiro Congresso das Associações Portuguesas […],

Lisboa, Typ. Universal, 1883.

203 Anuário Estatístico de Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1875-1931. 204 Boletim da Previdência Social, n.º 1-23, Lisboa, Imprensa Nacional, 1916-1932. 205 Boletim do Trabalho Industrial, Lisboa, n.º 1-121, Imprensa Nacional, 1906-1929.

206 Atualmente esta documentação encontra-se sob a tutela do Arquivo Histórico da Economia, como o

fundo da Secretária-geral do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e da Inspeção Geral das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.

207 AA.VV., O Montepio dos Servidores do Estado, Lisboa, INCM, 1979.

208 Elmano Coelho e Lage Simões, Cem Anos de Mutualismo, Edição Comemorativa do Centenário da Associação de Socorros Mútuos dos Empregados no Comércio e Indústria, Lisboa, ASMECI, 1954.

Monteiro, A Previdência Portuguesa: Associação Mutualista: 75 Anos ao Serviço do

Mutualismo: 1929-2004 (2004)209, entre outros. Acresce aqui a significativa produção de estudos sobre o Montepio Geral que apresentaremos mais à frente.

Os esforços de quantificação procuravam, essencialmente, acompanhar o desenvolvimento do mutualismo, com especial atenção à influência dos poderes públicos nesta evolução. Apesar da análise quantitativa ter estado longe de produzir afirmações consensuais, existe alguma unanimidade em torno das linhas de rumo seguidas e sobretudo, sobre a relação do movimento com o Estado. Com efeito, os autores citados concordam que o mutualismo estava longe de atingir o seu potencial de crescimento prometido pelos nobres ideais mutualistas europeus devido à lentidão da intervenção estatal em regular e até coordenar estas associações. A temática da relação Estado- Mutualismo provocou um extenso debate no interior do movimento mutualista desde meados do século XIX, eclodindo nos congressos de 1911 e de 1916 como uma temática

central. Nestes encontros e nos textos produzidos anteriormente, os principais autores (que são essencialmente apologistas do movimento) procuraram definir e avançar as medidas que deveriam ser implementadas pelos poderes públicos para fortalecer o movimento. Evidenciam-se, de entre as teses apresentadas ao Congresso Mutualista de 1911, a tese de Armelim Júnior, «Da Ação do Estado na Mutualidade»210, a tese de Desidério Augusto F. de Beça, «Da mutualidade militar no nosso país – vantagens do seu estabelecimento no exército português»211, ou a tese «Dos tribunais arbitrais mutualistas e do regulamento do processo», de António dos Santos Pousada212, só para mencionarmos as mais evidentes. No que respeita ao Segundo Congresso Mutualista, é revelador que dois dos três temas discutidos no congresso tenham sido «a forma como foi organizada a

209 Mário Nunes e Joaquim Pina Monteiro, A Previdência Portuguesa: Associação Mutualista: 75 Anos ao Serviço do Mutualismo: 1929-2004, Coimbra, A Previdência Portuguesa-Associação Mutualista, 2004. 210 Armelim Júnior, «Da ação do Estado na mutualidade», tese apresentada ao Primeiro Congresso Nacional

da Mutualidade. Teses Actas das Sessões e Documentos publicado sob a direção do Secretário Geral do Congresso José Ernesto Dias da Silva, (Lisboa, 18 a 22 de junho de 1911, Sociedade de Geografia e no Teatro Nacional Almeida Garrett), Lisboa, Imprensa Nacional, 1911.

211 Desidério Augusto F. de Beça, «Da mutualidade militar no nosso país – vantagens do seu

estabelecimento no exército português», Primeiro Congresso Nacional da Mutualidade. Relatórios, Teses

Actas das Sessões e Documentos publicado sob a direção do Secretário Geral do Congresso José Ernesto Dias da Silva (realizado em Lisboa nos dias 18 a 22 de junho de 1911 na sala Portugal da Sociedade de

Geografia e no Salão Nobre do Teatro Nacional Almeida Garrett), Lisboa, Imprensa Nacional, 1911, pp. 145-152.

212 António dos Santos Pousada, «Dos tribunais arbitrais mutualistas e do regulamento do processo»,

Primeiro Congresso Nacional da Mutualidade. Primeiro Congresso Nacional da Mutualidade. Relatórios,

Teses Actas das Sessões e Documentos publicado sob a direção do Secretário Geral do Congresso José Ernesto Dias da Silva (realizado em Lisboa nos dias 18 a 22 de junho de 1911 na sala Portugal da Sociedade

de Geografia e no Salão Nobre do Teatro Nacional Almeida Garrett), Lisboa, Imprensa Nacional, 1911, pp. 293-30.

previdência social do Ministério do Trabalho, sem prévia consulta de mutualistas, e com pouca representação da mesma no conselho superior de previdência. E a lei que a I República pretendeu aprovar que quer as associações de socorros mútuos paguem as despesas com o mutualismo oficial», em particular «o projeto de lei de reforma das associações de socorros mútuos apresentado à Câmara dos Deputados em 17 de abril de 1914 pelo então Ministro do Fomento»213.

Na verdade, permaneceram quase inalteradas as principais temáticas em torno das quais se desenvolveu o debate sobre o desenvolvimento do mutualismo em Portugal até ao início da década de 1930. Esta facto sugere-nos que os problemas existentes em meados do século XIX eram, de grosso modo, aquelas que pautavam o movimento no

início do século XX. Enquadrava-se aí, como problemática mais significativa, como

referimos, a constatação pelos atores mutualistas que o movimento teria grandes dificuldades de afirmação em Portugal sem uma intervenção dos poderes públicos. Esta temática tem sido uma das mais frequentemente retratadas na literatura especializada. Vasco Rosendo defende que os problemas do mutualismo oitocentista português resultam da pouca intervenção estatal no movimento, ou seja, desenvolveu-se precisamente por ser «livre»214. Defendemos no entanto, a este respeito, que não só o «mutualismo livre» não se apresentava entre o movimento mutualista como um dogma inquestionável, como é possível identificar diversos elementos que nos evidenciam que, de certa forma, o movimento mutualista se considerava órfão dos poderes públicos e via no Estado a solução mais eficaz para os problemas que o mutualismo conhecia. Note-se que o debate em torno da temática não questionava a necessidade de intervenção estatal, mas apresentava perspetivas díspares sobre a forma e a profundidade dessa intervenção. A unanimidade contida a esse respeito resulta, em nosso entender, da própria dualidade do movimento. Ou seja, quando as reflexões mutualistas preconizam uma maior intervenção estatal elas defendiam, sobretudo, que o Estado interviesse junto das pequenas associações mutualistas, que eram maioritariamente de fundo profissional.

213 Segundo Congresso Nacional de Mutualidade. Relatórios, Teses, Actas das Sessões e Documentos publicados pelo Secretário-Geral do Congresso, José Ernesto Dias a Silva (Lisboa, 1 a 4 de dezembro de

1916, Sociedade de Geografia de Lisboa e Teatro S. Carlos), Lisboa, Imprensa Africana, 1918.

214 A afirmação de Vasco Rosendo é colocada, no entanto, por oposição à limitação que o Estado Novo

colocaria às associações mutualistas a partir da década de 1930. Ou seja, naquelas que considera serem a segunda (1851-1870), a terceira (1770-1900) e a quarta fases do mutualismo português (1900-1930) o movimento conheceu, ainda que com diferenças entre cronologias, um desenvolvimento que foi cerceado pelo aparelho corporativo do Estado Novo que fez decair grandemente o número de associações, que passaram de 527 em 193 para 185 em 1865. Cf. Vasco Rosendo, op. cit., 1996, pp. 265-272.

Mas outros temas são apresentados como justificação para o reduzido desenvolvimento do movimento em Portugal. Outra explicação que emerge deste corpus é que o relativo subdesenvolvimento destas ideias se devia a elementos intrínsecos: deficientes sistemas de governabilidade das organizações, incompatibilidade entre os modelos mutualistas implementados e o quadro socioeconómico, a excessiva generosidade das associações no que respeitava à relação contribuições dos associados/socorros prestados, o aproveitamento de alguns indivíduos da imagem de credibilidade do mutualismo, e a excessiva concorrência entre pequenas associações. Para resolver estes problemas, estes autores propõem, essencialmente, melhorar a coordenação global do movimento e apelar para a intervenção dos poderes públicos para atenuar o desequilíbrio entre as grandes e as pequenas instituições215. Esta visão começou a esboçar-se logo no Congresso Social de 1865, que inspira os inquéritos conduzidos pela Comissão de 1866, e continuou a ser enunciada nos restantes encontros associativos realizados entre 1865 e 1930216. Como se percebe, trata-se de um quadro interpretativo

fortemente comprometido com uma agenda institucional definida, do qual podemos esperar bastantes dados e hipóteses, mas não uma verdadeira perspetiva historiográfica.

Por sua vez, os trabalhos propriamente historiográficos que surgiram estavam orientados para o presente e com uma agenda reformista. A obra de maior amplitude sobre a evolução do mutualismo em Portugal continua a ser, globalmente, a de Vasco Rosendo,

O Mutualismo em Portugal: dois séculos de História e Suas Origens (1996)217, trabalho onde o autor procura identificar as origens do fenómeno mutualista, uma análise de grande profundidade cronológica onde apresenta as primeiras realizações do mutualismo português. Este amplo estudo foi complementado por outros de índole mais académica, incidindo sobretudo no século XX: José Luís Cardoso e Maria Manuela Rocha, «O Seguro

Social Obrigatório em Portugal (1919-1928): Ações e Limites de um Estado Previdente», publicado na revista Análise Social, em 2009218, ou de Miriam Halpern Pereira «As Origens do Estado-Providência em Portugal: As Novas Fronteiras Entre Público e

215 Trata-se de uma solicitação que já tinha sido apresentada pela Comissão de 1866, mereceu a atenção de

Godolfim e de outros atores mutualistas, sendo Santa Rita e Domingos da Cruz os casos mais evidentes, e esteve igualmente subjacente aos diversos congressos onde o mutualismo foi discutido.

216 Realizaram-se, entre 1840 e 1930, O Congresso Social, que foi promovido pelo Centro Promotor das

Artes Laboriosas, em outubro de 1865, Os Primeiros Congressos das Associações Portuguesas, de 1881 e