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Alemanha: as corporações e a previdência pública

Parte 1 Origens e Problemáticas do Mutualismo Português

1.1. O mutualismo na Europa: diferentes realizações do mesmo ideal? 1 Itália: Monti di Pietà e Società di Mutuo Soccorso

1.1.5. Alemanha: as corporações e a previdência pública

O debate desenvolvido em torno do mutualismo para o caso germânico desenrolou- se por vias substancialmente diferentes daqueles anteriormente apresentados. A principal justificação para esta diferenciação prende-se com o facto de os poderes públicos terem chamado a si a responsabilidade dos socorros sociais num período bastante anterior ao que ocorreria na generalidade dos outros países europeus. Com efeito, os seguros sociais obrigatórios foram implementados na Alemanha em 1883, uma implementação que só foi seguida de perto pela Itália (1886), pela Áustria (1888), pela Hungria (1891), pela Dinamarca (1892), pela Bélgica (1894) e pela França (1898). Já no início do século XX

essa introdução ocorreu na Noruega (1909) no Reino Unido na Islândia e na Suíça (1911), na Rússia (1912) e na Holanda (1913), sendo que nos restantes países essa introdução

Hopkins Press Ltd., 1997; Nicholas Broten, From sickness to death: the financial viability of the English

friendly societies and coming of the Old Age Pensions Act, 1875-1908, Londres, School of Economics and

Political Science, 2010; Martin Gorsky, et alii, «Health and Sickness in the Late-Nineteenth and Twentieth Centuries: The Hampshire Friendly Society and its Records» (comunicação apresentada no World Economic History Congress, em Utrecht), Utrecht, 2009.

ocorreu depois da I Guerra Mundial168. Em Portugal e em Espanha, em particular, os seguros sociais obrigatórios começaram a ser introduzidos depois de 1919169.

Face a esta realidade, o debate germânico é pautado, de grosso modo, pela análise do sistema existente antes de 1883, em particular, o estudo da transição do modelo assistencialista próprio do Antigo Regime para o sistema de seguros mútuos e destes para o modelo de seguros sociais obrigatórios. No que respeita ao primeiro ponto, o debate desenrola-se em torno da desestruturação do sistema assistencialista que foi sendo desenvolvido no interior de instituições cuja principal função era a organização do trabalho. Com efeito, no caso germânico a literatura destaca o papel das guildas como instituições das quais as associações mutualistas herdaram alguns elementos estruturantes170. Os estudos sublinham os mecanismos de proteção social que foram sendo desenvolvidos nas guildas, instituição ligadas à organização do trabalho que foram criadas na Idade Média e que se desenvolveram durante a Idade Moderna. Nestas instituições, que se organizavam numa estrutura hierárquica em torno de artesãos e tinham funções profissionais, económicas, religiosas e até festivas, era comum o mesteiral que as liderava organizar esquemas de proteção para os seus membros contra riscos de doença e de acidentes, mas também para cuidar de órfãos, para ajudar nos enterros e participar na ajuda em caso de perdas materiais dos seus membros. Num primeiro momento, ainda durante a Idade Média, a assistência não contemplava a

168 Sobre a construção do Estado-social e os seguros sociais obrigatórios na Europa ver Keith Laybourn, The evolution of British social policy and the Welfare State: c.1800-1993, Keele, Staffordshire, UK

University Press, 1995, pp.183-208; Rodney Lowe, The Welfare State in Britain since 1945, London, Macmillan, 1993, pp. 13-14; D. Fraser, The Evolution of the British Welfare State. A History of Social

Policy since the Industrial Revolution, 3.ª ed., Londres e Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2003; B. Harris, The Origins of the British Welfare State. Society, State and Social Welfare in England and Wales, 1800- 1945, Londres e Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2004; Timothy Beresford Smith, Creating the Welfare State in France 1880-1940, Montréal/ London/ Ithaca, McGuill/ Queen`s University Press, 2003; P. V.

Dutton, Origins of the French Welfare State. The Struggle for Social Reform in France, 1914-1947, Cambridge, Cambridge University Press, 2002; M. D. Calle Velasco e M. Esteban de Veja. «Los orígenes del Estado social en España», Ler História, n.º 37, 1999, pp. 22-43; Heide Barmeyer, «Bismarck and the Origins of the Modern Welfare State in 19th Century Germany», in Henrik Jensen e Anne Catherine Isaacs (coord.), The Welfare State: Past, Present, Future, Pisa, Edizioni Plus/ Università di Pisa, 2002, pp. 1-57; L. Machtan, «A Construção do Estado social alemão e a política social de Bismarck», Ler História, n.º 37, 1999, pp. 2-21.

169 Sobre a introdução dos seguros sociais obrigatórios em Portugal ver José Luís Cardoso e Maria Manuela

Rocha, «O seguro social obrigatório em Portugal (1919-1928): ações e limites de um Estado previdente»,

Análise Social, vol. XLIV, n.º 192, 2009, pp. 439-470; A. J. de C. Fernandes, A Segurança dos

Trabalhadores através do Seguro Social, Lisboa, Editorial Império, 1947; M. H. Pereira, «As origens do

Estado-providência em Portugal: as novas fronteiras entre o público e o privado», in Nuno Severino Teixeira e António Costa Pinto (coord.), A Primeira República Portuguesa – entre o Liberalismo e o

Autoritarismo, Lisboa, Edições Colibri, 1999, pp. 47-76.

170 A importância das guildas é destacada por G. Stollberg, «Les Sociétés de Secours Mutuels Dans

l’Allemagne», in Michel Dreyfus e Berard Gibaud (coord.), Mutualités de Tous les pays. “Un passé riche

atribuição de quaisquer subsídios. No entanto, essa ajuda foi progressivamente adquirindo a forma de ajuda monetária. No mesmo sentido, a ajuda tornava-se mais abrangente sendo estendida à velhice, à doença e à oferta de produtos farmacêuticos. As guildas e as confrarias passaram a prestar auxílio em dinheiro aos seus membros em caso de prisão, de invalidez e de velhice, sendo o dinheiro entregue à mulher ou viúva do membro da guilda. Ou seja, existe uma clara similitude entre as necessidades sociais que as guildas procuravam satisfazer e o tipo de socorros que viriam a ser oferecidos pelas associações mutualistas. Todavia, esta assistência era apenas disponibilizada para os membros mais pobres e tinha um carácter assistencialista e não providencialista, não contemplando a contribuição de quaisquer contribuições pelos membros das guildas, nem previa o pagamento de subsídios regulares, como viria a ocorrer no mutualismo. Note-se que as corporações de ofício tiveram, a partir do século XIV,uma difusão por quase toda

a Europa, o que sugere que a rápida difusão do mutualismo por diversos países europeus poderá ter beneficiado desta base comum.

O século XV conheceu assim uma mutação importante na forma como prestavam os seus socorros, com as guildas, as confrarias e as irmandades a começarem a fundar caixas de doenças para ajudar monetariamente os membros que se encontravam doentes e auxiliar os mais pobres. A significância da criação destas caixas resulta do facto da ajuda pecuniária ser financiada por quotizações regulares dos membros das corporações de ofícios, ainda que os subsídios fossem concedidos sob a forma de empréstimos sobre os bens do mutuário. Esta proteção era feita seguindo a própria hierarquia da instituição que era induzida pela organização do trabalho, ou seja, cabia ao mestre a sua implementação e organização junto dos membros da guilda, sendo as mais comuns de padeiros, de sapateiros e de outras profissões análogas171.

Com o período de protoindustrialização e de industrialização as caixas de doença criadas pelas guildas conheceram um rápido desaparecimento, mas por sua vez assistiu- se a uma explosão das caixas de doença de fundação profissional criadas no interior das fábricas. Stollberg refere que entre 1815 e 1850 foram fundadas, apenas na Vestefália, 64 associações tradicionais de compagnons reservadas a um ou dois ofícios, e 26 que englobavam todos os ofícios, ou seja, os socorros prestados mantiveram a sua anterior ligação ao mundo do trabalho, mas já com alguma transversalidade à profissão172. Já entre

1860 e 1870 o número deste tipo de instituições passou, em toda a Prússia, de 2219 (com

171 G. Stollberg, op. cit., 1995, pp. 15-26. 172 Ibidem, p. 18.

157 664 membros) para 2957 (com 234 771 membros). Nestas mesmas datas as caixas destinadas especificamente aos operários, de formação mais recente, passaram de 779 (com 170 847 membros) para 1533 (com 358 232 membros)173.

Esta base de instituições direcionadas para a assistência viria revelar-se fundamental quando durante o século XIX o Estado germânico passou a promover diretamente caixas de doenças e de pensões174, ocorrendo depois de 1808 uma mutação para um sistema diferente, quando as guildas se começam a extinguir. Um momento decisivo ocorreu apenas em 1845 e 1854, quando a Prússia aprovou uma legislação que incentivava as autoridades municipais a exigirem aos membros das extintas guildas a adesão a caixas de doença organizadas pelos municípios.

Já sob o Império Alemão, iniciado no início da década de 1870, estas caixas de doença adquiriram, em 1876, uma unidade jurídica própria, tendo ficado independentes de outras formas de organização ligadas ao mundo do trabalho, em particular dos sindicatos. Mas o impulso significativo ocorreu em 1883, quando Bismarck começou a implementar uma política social desenvolvida pelo Estado, na qual os poderes públicos estabeleceram as suas próprias formas de seguro175. Note-se que neste primeiro esboço de estado-social na Europa as associações mutualistas foram integradas no sistema, dado que os seguros sociais obrigatórios recorriam a instituições de auxílio independentes do Estado no seu funcionamento, em particular, as mutualidades. Fixou-se nessa altura, que as caixas de seguro obrigatório teriam várias formas: as caixas de doença direcionadas para os diversos sectores industriais (as Ortskrankenkassen), as caixas de doença específicas para cada indústria (as Betriebskrakenkassen), as caixas de doença municipais (Gemeindekrankenversicherung) e as sociedades que se tinham fundado com a lei que estava em vigor (Eingeschriebene / Landesrechtliche Hilfskassen)176. Uma nova legislação aprovada em 1892 obrigou estas instituições (e aquelas criadas à luz da lei de 1883) a ter de efetuar o pagamento aos seus médicos diretamente em dinheiro, passando a fixar um montante fixo aos seus membros por cada dia de doença. Face a este enquadramento, o mutualismo na Alemanha não chegou a conhecer uma fase de desenvolvimento livre – não obstante a criação de caixas de doença – dado que cedo foi

173 Ibidem, pp. 17-19. 174 Ibidem.

175 Sobre a importância de Bismarck para a construção do Estado-social alemão ver L. Machtan, op. cit.,

pp. 2-21; Heide Barmeyer, «Bismarck and the Origins of the Modern Welfare State in 19th Century Germany», in Anne Catherine Isaacs (coord.), The Welfare State: Past, Present, Future, Pisa, Edizioni Plus/ Università di Pisa, 2002, pp. 1-57 e pp. 87-110.

inserido nas políticas sociais governamentais. No entanto, este pioneirismo da intervenção do Estado alemão nas questões sociais, em particular a introdução dos seguros sociais obrigatórios, seria amplamente discutido quando nos outros países europeus se procurou instituir seguros semelhantes. Neste contexto, o exemplo alemão relega-nos para o papel das associações mutualistas em função da criação de sistema de seguros sociais obrigatórios.