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6 FALANDO DE INTEGRALIDADE

6.4 A múltipla interpretação dos três casos holísticos

Falando de integralidade... concretiza-se de forma explícita que “o princípio doutrinário integralidade” trata de um objeto de estudo complexo e polissêmico. A tentativa de explicitação da compreensão dos informantes vem acompanhada de uma riqueza de vertentes, na abordagem da questão. Integralidade para esses sujeitos é: “acesso integral à saúde”; “um atendimento igualitário, multidisciplinar, abordando o usuário como um todo”; “é um direito de todos, pois o SUS é universal”; “trabalhar em equipe numa ação interdisciplinar”; “não é fácil para a Saúde”; “um princípio de vida”; “tratar o outro como pessoa”; “a saúde, é cuidar para a qualidade de vida”; “empoderar o usuário para que ele possa reagir e andar a vida”; “ainda não foi alcançada, pois ainda não alcançamos o ser

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tratado como pessoa”; “uma necessidade profissional e, também do usuário de ter consciência, para o (auto)cuidar”. Essas noções engendram convergências nas distintas realidades.

A integralidade é um conceito que surgiu no contexto específico da criação do Sistema Único de Saúde. É uma palavra que não existe no dicionário, não constitui um descritor em Ciências da Saúde. Não há referência à palavra integralidade na Constituição da República de 1988 e sim ao atendimento integral. O art. 198, inciso II, dessa Constituição prescreve que, no campo da saúde, haja “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” (BRASIL, 1988). Na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) há uma única referência à integralidade no artigo 7º, inciso II. O artigo determina que as ações devam ser realizadas, tanto nos “serviços públicos de saúde” quanto nos “serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS”, obedecendo ao princípio da “integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” (BRASIL, 1990). Contudo, qual é a gênese da palavra integralidade?

A palavra “integralidade” deriva do verbo integrar que, etimologicamente, vem do latim “integer”. A palavra inglesa integer (que significa em português inteiro, total, totalidade, coisa completa em si) tem sua origem alicerçada no latim/hindu: in (não) + tag (tocar). Integralidade vem de “inteiro” que significa aquilo que não foi tocado. Deveras, aqui foi relatada sua origem mas sua construção ainda perpetua...

Ao longo deste capítulo e tendo em vista a complexidade do tema em discussão, verifica-se que todas as questões analisadas nos distintos municípios, encontram-se interligadas, sendo possível concluir que a integralidade não se refere apenas a um princípio, a uma noção ou conceito coletivo, mas a toda uma postura que, segundo os profissionais, deverá ser voltada para atender às necessidades trazidas pelo usuário. Assim sendo, a integralidade constitui um elemento central para a consolidação de um modelo de saúde que incorpore, de forma mais efetiva, a universalidade, a equidade no atendimento às pessoas para alcançar ações resolutivas em saúde. Esses princípios do SUS foram argumentados como um princípio único: o do direito à saúde.

Dessa forma, cabe-nos o exercício do aprendizado constante, de saber lidar com o embate cotidiano entre essas posições discursivas e ideológicas na compreensão da integralidade. Os dados apontam que é preciso equipar o olhar para essa dimensão ampliada, extremamente fluida e móvel da integralidade, apreensível apenas em suas cristalizações, na

forma de situações concretas, vividas e compartilhadas que será discutida no capítulo seguinte. São situações em que o cálculo racional entra nesse fazer cotidiano permanente, segundo a compreensão exposta pelos informantes, mas pode ser refeito ou se perde para uns, quando aceitamos a subjetividade como uma abertura para enxergar o outro. São situações, portanto, carregadas de um inapreensível que nos convoca permanentemente a olhar, das mais variadas formas e nos mais variados tempos, um mundo de estar-junto cheio de delicadezas: de sofrimentos, queixas, murmúrios, que se interpõem entre o eu e o outro e que, não obedecem a uma ordem na vida cotidiana.

Desse modo, “talvez seja preciso deixar que o eu e, naturalmente, o eu crítico, se dissolva, para melhor ouvir a sutil música nascente, para melhor dar conta da profunda mudança que se opera sob os nossos olhos” (MAFFESOLI, 1998, p. 113). Portanto, vamos equipar nosso olhar, ouvir o mato crescer, para deveras engendrar a integralidade, elemento central para a consolidação de um modelo de qualidade de vida para atender ao direito à saúde que é de todos.

7 (DES)CAMINHOS E (IM)POSSIBILIDADES DE PRÁTICAS

INTEGRAIS NA ESF

“Alguns podem considerar que tal visão é utópica. Contudo, aqui e acolá uma série de propostas de mudança nas práticas e nos arranjos dos serviços caminha no sentido de concretização da integralidade. E uma série de experiências já concretiza essa aparente utopia. A ideia de que nenhuma pessoa que entra num serviço de saúde deve sair dele sem alguma resposta concreta desse serviço, ideia chave nas propostas de acolhimento, as teses que enfatizam a necessidade de uma escuta atenta por parte de todos os profissionais que atuam nos serviços de saúde (do segurança ao médico), as flexibilizações das rotinas sobre os fluxos dos usuários nos serviços de saúde de modo a permitir o desenho de um fluxo negociado para cada pessoa, as ideias de clínica ampliada, enfim, uma série de ideias e propostas têm sido formuladas e experimentadas em vários locais. Como também há muitos profissionais que, mesmo sem uma formulação teórica da proposta, ou mesmo sem utilizar o termo, praticam a integralidade no seu cotidiano”.

Ruben Araujo de Mattos

Ao abordar o tema em estudo, observei, nas falas dos informantes, uma incorporação e uma apropriação das noções inerentes à integralidade em saúde no contexto da ESF, como já foi descrito. No âmbito das ciências da saúde, várias são as discussões sobre como contribuir para novas formas de pensar e agir nos espaços de atenção à saúde no sentido de efetivar a transformação de uma assistência focada na pessoa e não na doença. Para isso acontecer, o trabalho coletivo na ESF deve se sustentar num conhecimento que inclui as determinações biopsicossociais de saúde-doença, numa forma de atender aos princípios da universalidade, equidade e integralidade.

As concepções ideológicas e os acontecimentos históricos que marcaram a assistência à saúde no Brasil foram fundamentais para que a integralidade se tornasse um dos princípios do SUS. Tentar compreender a integralidade sob uma única forma ou dimensão seria fazê-la perder sua característica “polissêmica”. Por isso, entendê-la no âmbito das práticas em saúde torna-se importante, uma vez que estamos tratando do indivíduo e do coletivo e tentar encaixá-los em uma determinada teoria/ideologia seria limitar e, até mesmo, impedir o aparecimento de novas formas de se fazer e cuidar em saúde.

Daí a importância de se reconhecerem as práticas que possam contemplar o fenômeno “integralidade” em suas diferentes nuanças e captar esse processo como elaborador de conhecimento no fazer em saúde.

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A construção da integralidade incide de forma gradual no SUS, transformando ações e práxis, modificando todo um cenário, de base positivista, fundamentando-se no cotidiano dos Serviços, o qual é determinado pelas especificidades dos contextos vividos.

Nas entrevistas, os informantes, ao descreverem sobre a sua prática cotidiana e o desenvolvimento, ou não, da integralidade nas ações da equipe de trabalho, contemplam, em suas falas, todas as atividades desenvolvidas, obedecendo a sua agenda profissional e a suas atribuições como membro da equipe da ESF. Esta categoria discute a integralidade no âmbito das práticas mostrando os (des)caminhos e as (im)possibilidades no cotidiano dessas equipes da ESF.

Da mesma maneira, a interpretação dos dados ocorre em cada cenário, com suas peculiaridades, para depois apresentar as semelhanças e as diferenças que caracterizam as distintas realidades.