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Histórias de vida na construção da assistência integral em saúde

5 O OLHAR DE UMA PESQUISADORA

5.2 Histórias de vida na construção da assistência integral em saúde

Nesses cenários, marcados pela situação geográfica no Vale da Miséria – assim conhecido o Vale do Jequitinhonha – exponho as marcas carregadas do trajeto por mim percorrido no espaço rural. Onde os caminhos foram descobertos com curiosidade e ansiedade que surgiram após contatos com os profissionais que demonstraram experiências inovadoras nas comunidades dos distritos de Datas-MG. Anteriormente, essas comunidades eram privadas de acesso aos Serviços de Saúde pela distância, pela falta de transporte, pelo número restrito de profissionais de saúde antes da implantação das equipes da ESF. O espaço geográfico onde atenho meu olhar é o distrito Fazenda Santa Cruz que me mostrou o “lugar” onde a natureza, a vida, a cultura, a realidade econômica foram perceptíveis na ocupação e constituição desse espaço social.

O distrito é distante da sede 18 km e a viagem teve duração de 55 minutos. O acesso é por estrada estreita, não pavimentada, com valas e buracos: o terreno é rochoso; o relevo exibe muitas serras e curvas na estrada; há onze córregos no trajeto e poucos possuem pontes. O carro passava vagarosamente pelas águas e, para atravessar um desses córregos, tivemos que sair do carro para que não atolasse. A vegetação é constituída de arbustos tortuosos, muitas flores do campo, a “sempre viva” aparece em muitas regiões. Ao avistar a localidade do alto da serra, vi casas pequenas e simples de onde saía fumaça de fogão à lenha. Os moradores chegaram às janelas ou à beira da estrada para verem o carro da saúde passar. Na porta da Unidade de Saúde, pessoas aguardavam a chegada do médico e da auxiliar de enfermagem com a caixa da medicação para ser distribuída. O porta-malas do carro foi aberto e, após cada prescrição médica, as pessoas buscavam a medicação.

O Posto de Saúde da Fazenda Santa Cruz tem uma estrutura bastante restrita, com precárias condições de conservação e higiene. É constituído por uma pequena sala, um consultório com maca, uma carteira de escola, duas cadeiras e um lavatório. Possui também um banheiro e um pequeno cômodo onde os prontuários são guardados em caixa de papelão. Não possui sala de vacinas nem de curativos. Os usuários atendidos em consulta médica são pessoas humildes, muito carentes, roupas amarrotadas, cabelos ressecados, magros em sua maioria, falavam pouco durante as consultas, limitavam-se às queixas principais e às necessidades a serem contempladas.

Essa realidade sensibilizou-me pela carência das pessoas e como esperam pela assistência à saúde. As condições de vida são expressas nas faces e posturas das pessoas: olhar baixo, respostas em tom pouco audível, trajes simples. São usuários com demandas e carências nutricionais, sociais e econômicas, em busca de uma consulta médica, um medicamento, um exame, buscar na saúde uma resposta para uma demanda complexa que exige resposta intersetorial. Comecei a questionar como viver e esperar pela assistência integral, nessas condições?

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Nas semanas seguintes, às quintas-feiras, dia em que a equipe da ESF presta assistência ao distrito Fazenda Santa Cruz, retornei ao “lugar”, ao espaço de cuidados que se diferencia dos demais por várias histórias vivenciadas e observadas durante a coleta de dados da pesquisa. Uma semana o médico vai; na outra, a enfermeira. O mesmo cenário foi apresentado semanalmente, as pessoas correm para a porta, janela ou para a estrada para ver passar o carro da saúde. Em uma dessas visitas, toda a equipe estava presente, o médico deu as consultas agendadas, a enfermeira atendeu a alguns usuários da demanda espontânea, pois as fichas para o médico “acabaram”. A ACS pegava o prontuário e a auxiliar fazia o recadastramento do Programa Leite pela Vida, do Fome Zero e do Bolsa Família. Nove famílias no distrito recebem esses benefícios. Em outro dia, muitas pessoas aguardavam a enfermeira para o grupo educativo sobre a Dengue. Estavam lá representantes das 44 famílias que vivem no distrito, exceto de uma família que enviou recado justificando a ausência. A participação humilde dessa comunidade nesse momento de compartilhar o conhecimento foi instigante para repensar o cuidado e as diversas nuanças que a integralidade apresenta. Após a reunião, as crianças se direcionaram à enfermeira, à auxiliar de enfermagem e até a mim e pediram a bênção. Eu respondia a cada uma “Que Deus a abençoe!”, e confesso minha emoção, ao perceber quando o profissional se confunde com seu lado humano e emocional, o objetivo com o subjetivo, diante de um simples ato, mas que possui uma força simbólica e cultural, que confere ao profissional de saúde um outro patamar, para além da assistência em saúde.

Como essa, várias histórias de vida, foram ouvidas, contadas e presenciadas: a luta pela sobrevivência de uma mãe com oito filhos e marido alcoólatra, desempregado e quando encontra trabalho presta serviço como lavrador que totaliza no máximo R$50,00 mensais. Essa família recebe benefícios dos programas sociais governamentais que totalizam R$112,00, menos que ¼ do salário mínimo vigente no país. Mediante esse fato, pergunto à senhora se essa renda dá para viverem, e feliz ela responde: “Ah, minha gente, já tá bom, antes não tinha nem isso, agora tem o leite para as crianças e o dinheiro pra comprar o que comer. É regrado, o leite e a comida têm que ser guardado para o mês, come mais quando tem e menos quando está pouco. Quando as crianças vêm pra escola eu falo pra elas comerem até encherem a barriga, assim o que tem em casa fica para a intera” (NO). Essa história de vida retrata muitas outras que foram ouvidas nessa realidade onde a miséria faz parte do dia a dia.

Em conversas informais, uma enfermeira, nascida e criada na região, relata que a comunidade da Fazenda Santa Cruz não é unida; em outros distritos, as pessoas se unem e melhoram as condições de vida. Ela atribui essa falta de união à característica marcante de famílias que descendem de garimpeiros. “O garimpo leva a essa desunião, quando uma família dominava uma lavra de diamante, era destinada a posse e a concorrência, promovendo

o afastamento das pessoas. Na comunidade, nada vai pra frente. A Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) já tentou e deu incentivo para muitas coisas, mas as pessoas não se unem” (NO).

Após o primeiro dia de observação em campo no município de Datas, pensei em como descrever os momentos vividos em situações em que não era somente o profissional da equipe ESF que estava ali, “tinha o ser (do) humano” (AYRES, 2004). Muitos eventos me chamaram a atenção, mas um tornou-se marcante: na manhã do primeiro encontro, ao acompanhar a enfermeira (E4) na sala de vacinação fomos surpreendidas com alguém que bate na janela pedindo socorro. A enfermeira pega sua bolsa, bate na porta do consultório da médica da equipe e sai correndo. Em um impulso, corri, seguindo-a pelas ruas sem saber ainda o que havia acontecido. Chegamos a um domicílio, onde os familiares choravam desesperados. Momentos depois chegaram a médica, a auxiliar de enfermagem e uma ACS. A médica constata o óbito de uma senhora já idosa. A enfermeira tenta, nesse momento, confortar os familiares e toma as seguintes providências: pede para a auxiliar buscar material para preparar o corpo, pede à nora da senhora falecida que providencie bacia com água, toalha e roupa para vesti-la. Liga de seu celular para o filho da senhora, comunicando-lhe o óbito e orienta-o a providenciar a urna e a avisar o coveiro. O ritual pós-morte inicia-se: a enfermeira, a auxiliar e a ACS fazem a preparação do corpo. Depois de uma hora, a urna chega e elas, juntamente com o rapaz do serviço funerário, colocam o corpo na urna, cobrem-no com um lençol enquanto aguardavam as flores. Pessoas da comunidade prepararam a sala para o velório. Retiraram os móveis da sala e o único que ficou foi coberto por uma colcha branca. A parede de fundo, onde colocaram a urna, foi forrada com toalhas de renda branca com galhos de avenca verde afixados. Abordei a enfermeira sobre esse ritual e ela me explicou que é tradição, eles usam o branco como símbolo da paz e a parede revestida é uma imagem reproduzida do céu. Retornamos à Unidade e, ao final da tarde, os familiares solicitaram a presença da enfermeira no velório, pois o corpo estava muito edemaciado e aguardavam a decisão de antecipar ou não o horário do sepultamento. Os familiares queriam a recomendação do corpo, a enfermeira foi até a ministra da Eucaristia e pediu que visse com o padre essa possibilidade. No velório, o terço era rezado, alguns familiares em volta da urna, outros em um quarto onde era servido chá, com a intenção de proporcionar calma.

Nesse mesmo dia, ao sairmos da casa, a poucos metros do velório, uma jovem senhora grita pelo nome da enfermeira pedindo-lhe ajuda. Uma adolescente tentou suicídio ingerindo duas cartelas de captopril 25 mg e quatro diazepam. A enfermeira ligou para o motorista da ambulância local e, em menos de 10 minutos, já estava no domicílio para transportar a moça.

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Mas, no final da tarde, os médicos não mais se encontravam em Datas e nem foi encontrado o profissional médico em Gouveia, todos viajaram, e ela foi levada para o pronto atendimento de Diamantina. Ao caminharmos em direção à Unidade, um carro passou com som alto, a enfermeira menciona “falta de respeito, o velório ali, se fosse carro daqui eu chamaria atenção” (NO). Esses aspectos culturais marcam o viver com fortes laços, crenças e valores compartilhados nesses contextos e que serão assumidos como determinantes de muitos atos nesse cenário da pesquisa. Para Maffesoli (1988, p. 257), “o que constitui a cultura é a opinião, ‘o pensamento das ruas e das praças’, que são ingredientes essenciais do cimento emocional da socialidade. Somente a posteriori elabora-se, então, o conhecimento erudito” (grifo do autor).

No final do dia, uma ACS e uma auxiliar de enfermagem comentam que, na comunidade, elas são requisitadas para tudo, usam a expressão “somos igual Bombril, temos mil e uma utilidades” (NO). A ACS completa “o trabalho é bom, mas bastante difícil, pra tudo nós somos chamadas, às vezes, eles sabem que a gente não tem mais o que fazer, mas mesmo assim eles nos procuram” (NO). Ao conversar com as enfermeiras do município (E4 e E5) sobre a rotina das equipes da ESF, elas relatam que, como são referência e suporte, fazem de tudo. “Não tem quem faz, então preparamos o corpo quando a morte é em domicílio, transportamos pacientes em qualquer situação de emergência, não temos SAMU, mas temos que fazer o serviço de transporte sem tecnologia de suporte avançado. Em casos de pacientes acamados debilitados, fazemos todos os cuidados, mesmos os de higiene quando a família se nega ou se ausenta. Em alguns casos, a assistência social nos ajuda. A equipe assume até o banho, eu (E4) já preparei e dei comida, porque senão morria de fome” (NO). E4 acrescenta: “Tenho quase cinco anos de trabalho na ESF, mas não sei se dou conta de mais cinco, é bom, mas é difícil e cansativo” (NO).

A visão desse espaço de cuidados em saúde traz à tona diversas discussões recorrentes na literatura nesses últimos anos, referentes à integralidade em saúde: há muitos profissionais que, mesmo sem uma formulação teórica da proposta, ou mesmo sem utilizar o termo, praticam a integralidade em seu cotidiano (MATTOS, 2004a). Para Maffesoli (1988), não basta a lógica dos conceitos, redutora e totalitária, o conhecimento empírico ultrapassa as construções racionalizadoras.

Para o autor, “todo fenômeno, seja qual for, justamente por ser uma cristalização da complexidade do mundo, por um lado, é passível de múltiplas explicações; reintegra-se, por outro lado, como elemento explicativo em outras constelações” (MAFFESOLI, 1988, p. 29).

Após a conclusão do trabalho de campo compreendo que os Serviços de Saúde constituem um cenário vivo, onde o usuário e o trabalhador de saúde produzem, no cotidiano da ESF, uma relação de troca, pois ambos são portadores de necessidades e desejos. Nessa relação, produz-se um ato, uma atitude, que pode contemplar a integralidade do ser. Na compreensão desses dados empíricos oriundos da observação, percebo que, para melhorar a qualidade de vida e promover a saúde de um indivíduo, é necessário que se considere o contexto em que se insere, o espaço em que ele vive, para que os fazeres sejam algo que exista para os dois, usuário e profissional, porque esses “fazeres” não têm existência sem verdadeiros encontros. O princípio da integralidade reflete visões de mundo coerentes em seus microcontextos, desveladas nas singularidades das práticas cotidianas, demonstrando uma ampliação da ideia de integralidade em saúde que pode favorecer ou desfavorecer a construção desse princípio nessas realidades.