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UNIDADE 4 – IV T RANSCRIAÇÕES :

IV.4. A música enquanto imagem dialética

Quanto à música do espetáculo Partido, houve uma pesquisa que extrapolou a dimensão literária, uma vez que houve uma escolha de outros contextos, a saber, os trabalhos de Gurdjieff (1877-1949) e Thomas de Hartmann234 (1885-1956). Ernani Maletta salienta que não apenas a música desses compositores foi utilizada, já que se constituiu de um rico trabalho polifônico. Foram experiências com a teoria de Gurdjieff, através de seus textos, das músicas e dos movimentos propostos. A multiplicidade de gestos e ações que auxiliam na percepção de si mesmo, em diálogo com a música, composta para essa

233 GIOANOLA. Modalità del fantástico nell’opera di Italo Calvino, p. 31. “Sacrosanti i cenni al

«malessere» alla «pena segreta», alla «disperazione»: il «pathos della distanza» si fa certamente più cupo col passare degli anni, spegnendosi a poco a poco le sicurezze ideologiche, l’ottimismo epistemologico e la stessa soddisfazione dello scoprirsi felice scrittore, ma la sofferenza è proprio quella della coazione all’intelligenza, fino ai limiti del virtuosismo, è la condanna a quella metaletteratura che svela fino in fondo, nella definitiva riduzione della scrittura a se stessa e al foglio che la contiene, l’unidimensionalità irredimibile dell’opera, parallela all’unidimensionalità dell’io debole e diviso”.

234 Thomas Alexandrovich de Hartmann, músico que nasceu na Ucrânia, estudou em São Petesburgo;

pianista e “compositor consagrado na Rússia, quando conheceu Gurdjieff em 1916, com o qual passou a compor a música que faz parte do conjunto de sua obra. É um dos fundadores da Fundação Gurdjieff de Nova York”; em: MALETTA. A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas, p. 185.

finalidade, favoreceu a construção da polifonia de maneira muito especial em Partido. Assim, acerca dessa musicalidade, o pesquisador afirma:

Os movimentos em questão trabalham uma multiplicidade de gestos e ações, que conduzem a uma melhor compreensão do corpo, da mente e das emoções, num diálogo perfeito com uma música composta especialmente para acompanhá-los e que é única por ser uma específica combinação de elementos: as melodias étnicas, a música ritual de templos e monastérios remotos e a cadência da Liturgia Ortodoxa – tudo isso transformado por Gurdjieff e desenvolvido por Thomas de Hartmann. O trabalho de Gurdjieff merece ser referência fundamental na construção de uma estratégia sistematizada para a formação polifônica do ator.235

A música cênica desse espetáculo não nascera inteiramente das imagens literárias, e as canções que nelas se inspiram completam o estranhamento. Para Bornheim, a música gestual “é uma música que possibilita o ator apresentar certos gestos fundamentais”.236 Nota-se que o trabalho com as técnicas do canto coral foram amplamente utilizadas na construção de Partido. Assim, o pesquisador e diretor musical afirma acerca dessa opção: “a experiência polifônica através da música estimulava não apenas o ouvido, mas também o corpo a incorporar múltiplas vozes”.237

Por outro lado, a música cênica – constituída de vozes e sons percussivos – integrou todos os elementos da dramaturgia. Aos ouvidos dos espectadores/leitores, as engrenagens das estranhas máquinas construídas por Pedroprego, nessa transcriação do texto literário para a cena, soaram de maneira integrada ao conjunto das cenas.

Quanto ao efeito de distanciamento, é interessante salientar o aspecto das letras das músicas, quase todas compostas a partir de recriação. As letras trazem elementos da fábula, no entanto, totalmente diferentes do texto que lhes deram origem. O que seria a música polifônica, a partir de Maletta, senão esse aproveitamento sonoro vindo de todos os componentes cênicos: dos corpos e movimentação dos atores, das suas vozes e, inclusive, dos objetos de cena e até do próprio cenário? Curiosamente, o conceito de polifonia, advindo da música, encontra ampliação no âmbito teatral, e por todos os seus elementos (dramaturgia, figurino, iluminação, direção). Embora Maletta valorize todas essas vozes

235 MALETTA. A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas. Cf.: nota de rodapé

172, p. 187.

236 BORNHEIM. Brecht: a estética do teatro, p. 300. 237 BORNHEIM. Brecht: a estética do teatro, p. 190.

da composição teatral, abaixo se destaca aquilo que ele mesmo afirma sobre o trabalho dos atores:

Durante todo o espetáculo, os atores são convidados a serem explicitamente múltiplos, construindo um discurso para suas personagens que incorpora múltiplas vozes e seus diferentes pontos de vista. E, de acordo com a orientação do diretor, devem atuar respeitando a absoluta autonomia de cada uma dessas vozes que, apesar de simultâneas, devem preservar, cada uma, sua energia cênica própria, e suas características diferentes das demais. Assim, por exemplo, enquanto movimentam objetos e estruturas do cenário, num andamento bastante rápido, executando muitos gestos e movimentos num pequeno espaço de tempo – incorporando um discurso simultaneamente plástico e gestual que contam de sua maneira uma parte da história – os atores devem incorporar uma outra voz que se propõe a cantar uma canção bastante tranqüila e lenta, com muita suavidade, a cappela, num arranjo a quatro vozes, que acrescenta outros elementos da fábula. Em outro momento, também um exemplo de virtuosismo polifônico, os atores cantam outro arranjo, a quatro vozes ao mesmo tempo em que executam um complexo desenho coreográfico, carregando objetos, deslocando-se também de costas e ajoelhados, num diálogo com o cenário que se move, sem perder o corpo e a personalidade de cada personagem que representam e estabelecendo a emoção adequada à cena.238

A experiência polifônica torna a imagem teatral rica, já que a musicalidade constrói a cena compondo sua multiplicidade: a dramaturgia, a interpretação e a cenografia. O conceito de formação polifônica, tendo abarcado uma amplitude teórica e prática, foi muito bem demonstrado no processo e no resultado cênico de Partido, conforme a tese de doutorado do professor e músico Ernani Maletta. Vale lembrar que toda a produção vocal do espetáculo ganhou contornos novos com as conquistas realizadas pelas técnicas do canto coral, na proposta polifônica do músico e preparador vocal, do diretor teatral e dos atores. Nesse sentido, a partição da música – que ficou sem a execução de instrumentos musicais convencionais – reforçou a fundamental importância da canção (e da voz) bem composta e bem executada em cena, com as suas ricas possibilidades: mesmo “partida”, a música soou em sua completude.

Assim, dado o contexto literário e musical da criação desse espetáculo, é possível, ao ouvir a trilha sonora, entender melhor o resultado das composições sonoras resultantes desse múltiplo processo artístico. A visibilidade do texto e a textura do espetáculo

apareceram bastante articuladas nessa estética que tanto provocou a reflexão sobre o que é “partido” no ser humano e na arte.

A escolha da história fantástica, a sua estranheza, o apontamento da contradição entre bem e mal seriam sinais do efeito de estranhamento. Na cena final do espetáculo, as referências pessoais ditas, a nudez do ator, trazendo à tona não só o artista, mas a dimensão sócio-histórica do sujeito, uma vez que o texto do ator poderia ser o de qualquer espectador, de Minas Gerais ou do mundo. A dimensão do gesto é completada, nessa cena, pelo ritmo marcado com a finalização de cada parte do texto, como uma espécie de refrão, “partido”. Enfim, há marcas do efeito de estranhamento na música, visível em cena, unida à ação e ao quadro cênico. Tudo isso corrobora para que, nesse espetáculo, a reunião de todos esses procedimentos tenha dado um resultado artístico em forma de questionamento, tanto para os artistas quanto aos espectadores, pela surpreendente reflexão suscitada acerca do ser humano apresentado, “partido”.

Se, na etimologia primitiva, o teatro é o lugar de onde se vê, dialeticamente, não poderia ser o lugar de onde se olha? Daí se pensar na questão do olhar, enquanto estranhamento, enquanto distância e aproximação, conforme a concepção de imagem dialética que se dá no vazio do entreolhar.239

239 Aqui é preciso entrever o teatro enquanto jogo dialógico, em uma perspectiva bretchtiana, por exemplo,

ou ainda, aludir à obra de arte no âmbito daquilo que é especialmente desenvolvido por Georges Didi- Huberman, em O que vemos, o que nos olha, 1998.