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UNIDADE 3 – III P ROPOSTAS ARTÍSTICAS 61-

III.2. Da rapidez

Desde o início, em meu trabalho de escritor esforcei-me por seguir o percurso velocíssimo dos circuitos mentais que captam e reúnem pontos longínquos do espaço e do tempo. Em minha predileção pela aventura e a fábula buscava sempre o equivalente de uma energia interior, de uma dinâmica mental. Assestava para a imagem e para o movimento que brota naturalmente dela, embora sabendo sempre que não se pode falar de um resultado literário senão quando essa corrente de imaginação se transforma em palavras. O êxito do escritor, tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura do mot juste, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado.

Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, p. 61.

Uma lenda acerca de um anel mágico, retirada dos escritos de Barbey d’Aurevilly, é a exemplificação inicial de Calvino para o tema da segunda conferência – a “rapidez”. A partir da fascinação por essa história curta, em que a magia de um anel parece agir também

sobre os leitores, ele explicita com a “sucessão de acontecimentos que escapam todos à norma, encadeados um ao outro”,114 de forma que uma estranha história de amores acontece em torno do anel: “A corrida do desejo em direção a um objeto que não existe, uma ausência, uma falta, simbolizada pelo círculo vazio do anel, é dada mais pelo ritmo do conto do que pelos fatos narrados”.115 Com a breve narrativa do anel, o autor comenta sobre objetos mágicos que aparecem em narrativas diversas – romances de cavalaria, poesia italiana do Renascimento, entre outras. Ressalta as trocas de objetos que “dotados de certos poderes determinam as relações entre certo número de personagens”.116 Tratando dos contos breves e fascinantes, ressalta a importância dos objetos representativos ou constitutivos dessas personagens.

Se, por um lado, observa-se também no teatro contemporâneo o trabalho com histórias curtas ou com fragmentos de histórias, além de haver essa mesma relação de objetos que funcionam ligados às suas personagens, por outro, o autor explicita as relações entre os acontecimentos e o tempo rápido da narrativa. Assim ele resume a questão do tempo: “O segredo está na economia da narrativa em que os acontecimentos, independentemente de sua direção, se tornam punctiformes, interligados por sentimentos retilíneos num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto”.117 Na acepção temporal dada, poderiam ser incluídas diversas estéticas, inclusive a do teatro, da dança ou de certas performances.

Desse modo, o autor não considera a rapidez em si, visto que o tempo da narrativa poderia ser também “retardador, ou cíclico, ou imóvel”.118 Esse é outro procedimento caro ao teatro, a espacialização do tempo, de modo a delongar um episódio da narrativa para acentuá-lo, ou demonstrar um ciclo quando a encenação trabalha com alguma repetição sistemática, ou, ainda, imobilizar alguma circunstância, o que pode dar-se com um fragmento de uma obra, em suspensão, amplificando seus significantes.

Desse modo, Calvino cita uma nota usada pelos contadores de histórias que, na Sicília, dizem “o conto não perde tempo”,119 quando querem indicar um salto temporal ou

114 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 46. 115 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 46. 116 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 47. 117 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 48. 118 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 49. 119 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 49.

a supressão de algum trecho. Em resumo: não há detalhes desnecessários, mas há repetições rítmicas de situações ou frases, como ocorrem em histórias infantis, contos de fadas ou histórias populares; a marca da oralidade está presente nessas narrativas, conectando-as à teatralidade. Enfim, a “economia, o ritmo, a lógica essencial com que tais contos são narrados”120 caracterizam a rapidez com o que se desperta o interesse pela narrativa.

O escritor contrapõe o que chama de “tempo narrativo” e “tempo real” e cita a famosa novela oriental em que Sherazade vai de uma história a outra, dando continuidade a sua própria vida, através de encadeamentos e interrupções em momentos adequados, ao exemplificar as possibilidades da rapidez. Logo, Calvino chama atenção para o ritmo, o que certamente é um elemento que compõe a teatralidade de sua própria narrativa: “É um segredo de ritmo, uma forma de capturar o tempo que podemos reconhecer desde as suas origens: na poesia épica por causa da métrica do verso, na narração ou prosa pelas diversas maneiras de manter aceso o desejo de ouvir o resto”.121 Esse fragmento chama especial atenção, uma vez que também lembra o desconforto dos espectadores no teatro contemporâneo, o que se relaciona às dificuldades de resolução da situação entre tempo da narrativa e tempo transcorrido, o que sem dúvida guarda diferenças para atores que estão atuando e espectadores que se encontram na plateia. Necessariamente, a questão do tempo no teatro está associada à noção de ritmo, ainda que de forma diferenciada do conceito musical, implicando mesmo a noção de rapidez. Brecht teria sido o mestre no uso de possibilidades de jogo entre tempo narrativo e tempo real, e Lehmann admite que as bases lançadas pelo criador do efeito de “distanciamento” incorreriam, tempos depois, nos processos relacionados ao teatro pós-dramático, que explodem a temporalidade convencional das narrativas, destituindo-lhes a sequência de passado, presente e futuro, ou alterando-a substancialmente, como ocorre em processos do inconsciente.

Calvino, então, salienta a relação entre velocidade física e a mental, tomando cuidado para não exaltar a segunda, mostrando que um raciocínio lento poderia ter maior valor do que o ligeiro. Nesse sentido, superando a noção de velocidade mental, numa associação entre rapidez com simultaneidade de ideias e imagens, Calvino concorda com Leopardi e cita do Zibaldone:

120 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 49. 121 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 51.

A rapidez e a concisão de estilo agradam porque apresentam à alma uma turba de idéias simultâneas, ou cuja sucessão é tão rápida que parecem simultâneas, e fazem a alma ondular numa tal abundância de pensamento, imagens ou sensações espirituais, que ela ou não consegue abraçá-las todas de uma vez nem inteiramente e cada uma, ou não tem tempo de permanecer ociosa e desprovida de sensações.122

Com muita propriedade, essa acepção de rapidez faz alusões ao modo de funcionamento da encenação, porque se refere justamente às características ou ao potencial imagético do teatro, em sua possibilidade de condensar sentidos, pensamentos, conceitos, sensações, discursos, em imagens visuais e sonoras dinâmicas que apontam em várias direções, e que podem ser captadas de diferentes modos pelo espectador.

Ao cinema, parece ter sobressaído essa condição de aceleração de imagens, pelas especificidades tecnológicas de sua linguagem, ao passo que o teatro, por provocar ampliação do tempo presente, em sua efemeridade, sobrepõe tempos diversos. Seja acelerar ou retardar o tempo, ambos os recursos são produtores de sentidos, dentro das considerações dialéticas do signo, do tempo espacializado que essas artes permitem. O teatro, por sua condição de presentificação em ato, traz uma conjugação de lentidão e rapidez diferente daquela proporcionada pelo cinema, dados seus atributos tecnológicos de condensação e aceleração, ou dos inúmeros artifícios da imagem filmada. É por isso mesmo que o teatro contemporâneo tem reunido ou se utilizado de formas cinematográficas em suas composições mistas, ou miscigenadas, de arte.

É desse modo que, relativizando a questão do tempo real e tempo da narrativa, o escritor confessa sua predileção pelas short stories, chegando, assim, a identificar como essa operação da rapidez se processa em sua própria criação, como demonstra a epígrafe no início deste tópico.

Assim, ao se definir a rapidez, observa-se uma ênfase na exatidão, a próxima qualidade a ser discutida, justamente quando Calvino se refere à palavra justa ou insubstituível. Isso também traz ótimas consequências para o teatro, em que a dificuldade de lidar com as palavras e com as questões rítmicas ou de uso do tempo – o tempo do artista em contraste com o tempo do espectador –, por vezes, é de difícil solução. O exemplo maior da rapidez em suas narrativas, e que, ao mesmo tempo, se conecta à quinta proposta, a saber, a multiplicidade, é atribuído ao modo de escrita de Jorge Luis Borges:

122 Nota do Zibaldone di pensieri, de Leopardi (1821). Citado e traduzido em: CALVINO. Seis propostas

O que mais me interessa ressaltar é a maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos; sua maneira de narrar sintética e esquemática que conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade de ritmos, dos movimentos sintáticos, em seus adjetivos inesperados e surpreendentes.123

De volta às imagens mitológicas, Calvino compara os tempos e habilidades entre Mercúrio e Vulcano, dando sugestões para o trabalho do escritor, que poderia servir, também, ao trabalho de uma gama de outros artistas:

o tempo de Mercúrio e o tempo de Vulcano, uma mensagem de imediatismo obtida à força de pacientes e minuciosos ajustamentos; uma intuição instantânea que apenas formula e adquire o caráter definitivo daquilo que não poderia ser de outra forma; mas igualmente o tempo que flui sem outro intento que o de deixar as idéias e sentimentos se sedimentarem, amadurecerem, libertarem-se de toda impaciência e de toda contingência efêmera.124

Novamente, em seus argumentos acerca da escrita literária, em torno da rapidez, aparecem os elementos constitutivos do teatro, em especial a questão do tempo enquanto

insight luminoso e espontâneo, efemeridade, tudo que está conjugado com longos processos de amadurecimento da linguagem cênica.

Há algumas relações possíveis entre a rapidez e as considerações estabelecidas por Lehmann em torno da comparação entre teatro dramático e pós-dramático:

O estado é uma figuração estética do teatro que mostra mais uma composição do que uma história, embora haja atores vivos e representando. Não é por acaso que muitos artistas do teatro pós- dramático vieram das artes plásticas. O teatro pós-dramático é um teatro de estados e de composições cênicas dinâmicas.125

É, ainda, nesse sentido – de estado, de figurações ou de composições –, que a rapidez, conjugada à exatidão e à multiplicidade, podem ser equiparadas. Lehmann fala de uma “semântica das formas”, e é por isso que sua análise compara esse teatro ao que ele

123 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 63. Note-se que os

procedimentos explicitados nos textos de Borges também foram utilizados em As cidades invisíveis, (publicado em 1972, em italiano, e em 1990, em português).

124 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 63. 125 LEHMANN. O teatro pós-dramático, p. 114.

chama de um “teatro energético”.126 Observa-se, então, algumas coincidências entre o que foi concebido como rapidez e essa dimensão dinâmica e energética do teatro pós- dramático. Aspectos correlatos, embora diferenciados, considerando que a semiologia teatral abarca diferentes signos. Calvino tratou, na literatura, da busca de uma palavra justa, insubstituível, que, no encontro entre sons e significantes, trouxesse a densidade do signo, ao passo que Lehmann, no teatro, aponta para a “abundância de signos simultâneos”127 como uma profusão da realidade. Eis como se conectam as potências do real, em conjunto com a escritura, literária ou cênica, nos registros imaginário e simbólico.