• Nenhum resultado encontrado

UNIDADE 4 – IV T RANSCRIAÇÕES :

IV.3. Das imagens dialéticas

Nos escritos de Brecht, há definições para o teatro épico, que influenciou, do ponto de vista estético, as gerações seguintes, no modo de conceber o fazer teatral. Ainda na contemporaneidade, há fortes marcas dessa perspectiva, de diferentes formas, explícitas, diluídas ou associadas a outros movimentos, ou mesmo na frequência com que textos do autor são escolhidos para montagens cênicas ou pesquisa.223

Se, em Partido, do Galpão, não estão presentes todos os elementos que definem o efeito de “distanciamento”, na cena final do espetáculo, parece ser esse o caso, e de forma coerente com a contemporaneidade, que reúne, em um mesmo espetáculo, estéticas e mecanismos distintos. A ruptura ou o modo como o ator se dispõe – nu e inteiro – em um conjunto de elementos partidos, aproxima a dimensão do gesto, causando surpresa ou espanto no espectador, justamente por apresentar uma reflexão sobre si mesmo e sua circunstância humana ou social.

Gerd Bornheim, em sua obra Brecht: a estética do teatro (1992), elenca uma série de definições possíveis acerca do efeito de distanciamento, a partir de rigoroso estudo dos trabalhos desse autor. Destacam-se, a seguir, alguns desses aspectos, para se completar esta análise em torno da imagem dialética no teatro.

Essas narrativas, tanto a literária quanto a teatral, propõem o jogo entre ficção e realidade, fazendo com que se encontre um onde se espera o outro. Aspectos relativos à recepção do público, quando há situações de efeito de distanciamento são, então, definidos por um princípio obrigatório: “o espanto que arranca as coisas de suas rotinas desgastantes e as torna estranhas, como se estivessem sendo vistas pela primeira vez”.224 É o que ocorre na cena final de Partido.

Quanto à interpretação, ao trabalho do ator com relação ao efeito de distanciamento, na busca de criação de imagens “dialetizantes”, vale citar o resumo dessa questão feito por Bornheim:

223 O próprio Galpão montou “Um homem é um homem”, de Brecht, entre 2005 e 2007, demonstrando a

afinidade dessa trupe com o teatro épico dialético.

Brecht pretende que o ator deva ser plenamente ele mesmo e o espectador também deva ser integralmente ele mesmo. E mais: que haja um contato direto entre ambos. A partir daí, entende-se o pressuposto básico do distanciamento: se o ator não desaparece atrás da personagem é porque, além de mostrar-se como ator, ele mostra também o personagem, e o espectador vê o ator que mostra e se mostra, e o personagem que é mostrado [...].225

Essa visão brechtiana implica uma ideia de encenação muito distinta da abordagem tradicional do teatro, a de trazer a ilusão, ou a mimesis, conforme tratado anteriormente. Na perspectiva do estranhamento, o que se objetiva é acentuar as próprias contradições da realidade demonstradas em cena.

O jogo das contradições leva a uma contradição mais fundamental; e se isso se faz presente em cena é porque a própria história é essencialmente tecida de contradições. E esta a vocação inteira de um ator: tornar presente, em cena a contradição mais fundamental.226

Curiosamente, em Partido, o Galpão trabalhou com a concepção literária, nos seus elementos diversos, imagens sobre imagens, em um desdobramento rico de ficções. O cenário fez a alusão às páginas do livro. A personagem narradora, o Menino, trazia presente o livro, seja para uma leitura ou para utilizar-se dele como chapéu – a constituição, no campo da imagem cênica, de outra ficção, se se considerar a escritura. A literatura e o fazer teatral a partir dela estiveram à mostra, reforçando o que diz o estudioso de Brecht, “A cena não deve propiciar a ilusão perfeita”.227

Em outra alusão ao estranhamento, enquanto procedimento literário de Calvino, Barenghi afirma:

Calvino preferiria mudar as condições de existência do ato narrativo: os lineamentos mais ou menos implícitos dos locutores, os seus timbres de voz, as suas motivações, os pressupostos de seus narrares: e, portanto, as formas de estilização do conto, os limites de gênero e assim por diante. Ajudariam ainda, a tal respeito, noções elaboradas da cultura literária russa, tal como os conceitos de skaz, ou de ostrannenie. “Estranhamento”: que, no fim, é como dizer, segundo uma expressão

225 BORNHEIM. Brecht: a estética do teatro, p. 259. 226 BORNHEIM. Brecht: a estética do teatro, p. 273. 227 BORNHEIM. Brecht: a estética do teatro, p. 294.

nietzschiana felizmente retomada por Cesare Cases, o “pathos da distância”.228

Essa manutenção da imagem, ou o imaginário, enquanto recursos do fantástico ou da fantasia, presentes tanto na literatura quanto no espetáculo Partido favorece uma aproximação crítica da realidade, ou da arte em sua abordagem do real.

De certa forma, a cenografia foi bem nua, com uma iluminação que possibilitou as mudanças de quadros de cena. Foram deixadas à vista as engrenagens, as roldanas e as cordas que movimentavam os painéis, as páginas gigantes de um livro, no desenrolar da fábula, e os próprios atores ao manejá-las, mudavam o cenário, fazendo mesmo parte do jogo de mostrar a encenação, pela movimentação útil na transposição das cenas. Diz Bornheim a esse respeito: “A exploração do espaço cênico num sentido novo [...] a transmutação da estabilidade para o movimento, ouvidas nisso tudo as metamorfoses que acontecem no mundo atual [...] o espaço é o mundo”.229 E, ainda, complementa com a seguinte sugestão: “Desnudar o ambiente, tirar a decoração supérflua, tornar o espaço mais versátil, flexibilizá-lo ao máximo”.230 Algumas alusões à metalinguagem cênica também foram usadas no sentido de demonstrar o jogo do teatro-livro, provocando o riso, conforme se pode ler nos fragmentos do texto teatral.

Cena 14 – Na oficina de Pedroprego Medardo:

E essas coisas, o que são? Pedroprego:

São meus objetos de trabalho, senhor. Medardo:

Objetos de trabalho... E isso aí, o que é? Pedroprego:

São minhas máquinas, mestre. Medardo:

Máquinas? Pedroprego: Sim, senhor. Medardo:

Mas isso são malas, senhor Pedroprego, malas!

228 BARENGHI. Italo Calvino, le linee e i margini, p. 36-37. “Calvino preferirebbe modificare le condizioni

di esistenza dell’atto narrativo: i lineamenti più o meno impliciti dei locutori, il loro timbro di voce, le loro motivazioni, i presupposti del loro narrare: e quindi le forme di stilizzazione del racconto, i confini di genere, e così via. Soccorrerebbero ancora, a tale riguardo, nozioni elaborate dalla cultura letteraria russa, quali i concetti di skaz, o di ostrannenie. «Estraniamento»: che è poi come dire, secondo l’espressione nietzschiana felicemente ripresa da Cesare Cases, il «pathos della distanza»”.

229 BORNHEIM. Brecht: a estética do teatro, p. 296. 230 BORNHEIM. Brecht: a estética do teatro, p. 297.

Pedroprego:

Depende como o seu único olho as vê, senhor, é com elas que eu trabalho.

[...] Medardo:

Antes mostre-me com tudo isso se move. Pedroprego:

Posso mudar tudo isto do jeito que eu quiser. Medardo:

Do jeito que eu quiser! Pedroprego: Empurrar para lá... Medardo: Para cá, senhor... Pedroprego: Trazer para cá... Medardo: Para lá! Pedroprego:

Passar uma a uma como se fossem as páginas de um livro senhor. Medardo:

Páginas de um livro... Pedroprego:

E também posso fazer sumir e aparecer objetos e personagens. Medardo:

Personagens, senhor Pedroprego? Pedroprego:

E se o senhor quiser posso deixá-las cair de repente como se fosse um livro que se fechasse ou a morte que chegasse, senhor.231

Observe-se que a cena apresenta um jogo de poder, em que o Mesquinho, o lado perverso de Medardo, está se preparando para induzir o construtor Pedroprego a construir forcas. Na apresentação da personagem e durante o diálogo, o cenário vai sendo movido, em uma clara demonstração do teatro, ao mesmo tempo em que a alusão à literatura também é feita. Isso ocorre, ainda, em outros momentos do espetáculo, como se pode ver no diálogo entre a ama Sebastiana e o Menino.

Menino:

Ama, que manchas são essas no seu rosto? Sebastiana:

Maquiagem. É para fazê-los pensar que também tenho lepra. Prá viver aqui, toda prudência é pouca.232

231 CALVINO, Italo. Partido/Italo Calvino; adaptação e dramaturgia por Cacá Brandão. Belo Horizonte:

Autêntica; PUC Minas, 2007. p. 40-43.

232 CALVINO, Italo. Partido/Italo Calvino; adaptação e dramaturgia por Cacá Brandão. Belo Horizonte:

Na citação, há uma sobreposição de referências quanto à maquiagem. Na narrativa de Calvino, a personagem ama Sebastiana simula a lepra, ao passo que, na encenação, a atriz dá à entonação uma nuança cômica, fazendo uma alusão metalinguística à maquiagem no teatro. Isso, de forma muito breve, mas perceptível aos espectadores. Observa-se, então, que as propostas artísticas apontadas por Calvino são conjugadas – tanto a multiplicidade quanto a rapidez – também no âmbito da encenação.

Metaliterários são os procedimentos da cena, também amplamente presentes na escritura de Calvino, como bem resume Gioanola, ao tratar do fantástico nesta literatura:

Sacrossantos os acenos ao “mal-estar”, à “pena secreta”, ao “desespero”: o “pathos da distância” se faz, certamente, mais obscuro com o passar dos anos, se apagando, pouco a pouco, as seguranças ideológicas, o otimismo epistemológico e a mesma satisfação do descobrir-se feliz escritor, mas o sofrimento é justo aquele da coerção à inteligência, até os limites do virtuosismo, é a condenação àquela meta-literatura que revela até o fundo, na redução definitiva da escrita a si mesma e à folha que a contém, a dimensionalidade única da obra, paralela à dimensionalidade única do eu fraco e dividido.233