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UNIDADE 3 – III P ROPOSTAS ARTÍSTICAS 61-

III.3. Da exatidão

Há quem ache que a palavra seja o meio de atingir a substância do mundo, a substância última, única, absoluta; a palavra, mais do que representar essa substância, chega mesmo a identificar-se com ela (logo é incorreto dizer que a palavra é um meio): há a palavra que só reconhece a si mesma, e nenhum outro conhecimento do mundo é possível. Há, no entanto, pessoas para quem o uso da palavra é uma incessante perseguição das coisas, uma aproximação, não de sua substância, mas de sua infinita variedade, um roçar de sua superfície multiforme e inexaurível.

Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, p. 90.

O texto dessa epígrafe é eminentemente teatral, já que se refere ao tratamento dado à palavra em sua materialidade sensível ou expressiva. A conferência que seria dedicada a esse tema inicia-se com uma invocação à deusa Maat, deusa da balança, (juntamente com a descontraída confissão de Calvino de que esse era o seu signo zodiacal) e, logo, o tema da exatidão passa a ser delineado, sistematicamente, a partir dos seguintes pontos:

1. um projeto de obra bem definido e calculado;

2. a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; temos em italiano um adjetivo que não existe em inglês, “icastico”, do grego

;

126 LEHMANN. O teatro pós-dramático, p. 59. 127 LEHMANN. O teatro pós-dramático, p.138.

3. uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.128

Observa-se, na primeira afirmação, o caráter imprescindível do projeto artístico, em suas possibilidades de abertura à sistemática processual, que inclui mudanças, haja vista a participação ou colaboração dos diversos integrantes, no caso do projeto teatral. Na segunda afirmação surge, mais uma vez, a importância da imagem, que foi inscrita sob o tema da visibilidade, entretanto, aqui vem associada à exatidão. Constata-se, por essa via, a dimensão icônica no seu processo de criação e as conexões na ordem da teatralidade.

A partir daí, Calvino critica as dificuldades de uso da linguagem, atribuindo causas diversas associadas às ideologias, à homogeneização da cultura de massa ou à difusão acadêmica de uma cultura média. Ele nota essas dificuldades, principalmente, a partir da multiplicação de imagens, tão comum na época em que escreveu e ainda crescente na atualidade.

Vivemos sob uma chuva ininterrupta de imagens; os media todo- poderosos não fazem outra coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de jogos de espelhos – imagens que em grande parte são destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e como significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória; o que não se dissolve é uma sensação de estranheza e mal-estar.129

Lehmann também atenta para os efeitos na percepção e na cognição, advindos da inflação de imagens da mídia, desatrelada de experiências sensíveis: “Resta saber se o permanente bombardeio de imagens e signos, aliado a uma cisão cada vez maior entre a percepção e o contato corporal sensível e real, treina os órgãos a registrar as coisas de modo cada vez mais superficial”.130 Aqui há uma complementaridade na crítica de ambos os autores quanto à profusão ilimitada de imagens neste milênio e suas consequências no campo da cognição e da criatividade.

Da crítica à inexatidão, Calvino passa ao elogio do vago, mostrando que ele não se opõe à exatidão. Trata da acepção desse termo em italiano – “vago significa também

128 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 71-72. 129 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 73. 130 LEHMANN. O teatro pós-dramático, p. 148.

gracioso, atraente”131 – e, para assim o demonstrar, faz inúmeras citações de Leopardi em que esses aspectos paradoxais são equilibrados. Logo, Calvino conclui: “O poeta do vago só pode ser o poeta da precisão, que sabe colher a sensação mais sutil com olhos, ouvidos e mãos prontos e seguros”.132 Com isso, Calvino aprecia as noções de infinito aí presentes, que também permeiam a sua obra, e afirma que:

só a esperança e a imaginação podem servir de consolo às dores e desilusões da experiência. O homem então projeta seu desejo no infinito, e encontra prazer apenas quando pode imaginá-lo sem fim. Mas como o espírito é incapaz de conceber o infinito, e até mesmo se retrai espantando diante da simples idéia, não lhe resta senão contentar-se com o indefinido, com as sensações que, mesclando-se umas às outras, criam uma sensação de ilimitado, ilusória mas sem dúvida, agradável.133

O autor evoca, então, Roland Barthes, em cuja mente coabitariam “o demônio da exatidão e o da sensibilidade”, para falar de seu elogio “da ciência do único e do irrepetível”,134 em La chambre claire. Que alusão mais apropriada ao fenômeno teatral, ainda que nesse ensaio Barthes se refira à fotografia. Calvino também cita, a esse respeito, Paul Valéry, pelo máximo rigor e exatidão possíveis na escolha das palavras. Em resumo, o escritor se refere à exatidão, em seu contraponto à ideia de infinito, da seguinte maneira:

Eu me propunha a falar da exatidão, não do infinito e do cosmo. Queria lhes falar de minha predileção pelas formas geométricas, pelas simetrias, pelas séries, pela análise combinatória, pelas proporções numéricas, explicar meus escritos em função de minha fidelidade a uma idéia de limite, de medida... Mas quem sabe não será precisamente essa idéia de limite que suscita a idéia das coisas que não têm fim, como a sucessão dos números inteiros ou as retas euclidianas?...135

A síntese acima parece ser a explicitação da sua criação literária O cavaleiro

inexistente (1959). Nessa obra, a personagem Agilulfo é feita de linguagem e de um corpo artificial, uma armadura vazia, apenas um figurino, como o do teatro, que se move entre a exatidão dos seus procedimentos de cavalaria e as possibilidades infinitas da narrativa sobre si mesmo. Na busca da exatidão, assim como essa sua personagem, Calvino se

131 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 73. 132 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 75. 133 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 78. 134 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 79. 135 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 82.

mostra obsessivo com os detalhes, como ele mesmo assume: “Uma outra vertigem se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejo-me tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como antes me dispersava no infinitamente vasto”.136 O

cavaleiro inexistente consiste na própria encenação dessa operação, como uma escrita ao mesmo tempo fictícia e metalinguística, superpondo histórias, desconstruindo e brincando com os temas, lugares e personagens, francamente recriados.

Essa marca de potencializar o trabalho com o infinitamente grande ou com o infinitamente pequeno aparece de modos distintos, especialmente em algumas obras, tais como As cosmicômicas (1965) e Palomar (1983); em ambas, o olhar exerce uma forte relação entre os acontecimentos da ficção, resultados de uma observação minimal, e o leitor é colocado como uma espécie de espectador teatral. Não tão somente o universo físico, mas, principalmente, o universo relacional das situações humanas é apresentado em sua perspectiva infinitesimal. Também em Os amores difíceis (1970), esse exercício do olhar meticuloso se apresenta, mas, de certa forma, pode-se dizer que ele percorre toda a sua escritura.

Essa proposta também se confunde com a visibilidade, pois, para que se opere a observação macro ou microcósmica é que funciona esse olhar perspicaz, claro e preciso; minucioso, mas sem prolixidade, em histórias curtas, em contos independentes, embora conectados com toda a obra do escritor. Em todos eles, a exatidão, a visibilidade e a rapidez são empreendidas.

Já nos romances de ficção, tais como os que compõem a trilogia Os nossos

antepassados, os textos são mais longos, com inúmeros episódios e multifacetados temas, entretanto, a rapidez continua sendo uma qualidade da narrativa, atrelada justamente à exatidão.137 É o que se busca demonstrar neste estudo, ao se tratar de cada uma das obras que compõem Os nossos antepassados.

A metodologia usada por Calvino para tratar dos processos de criação é a dos jogos de oposições, retirada da leitura de livros científicos: “De um lado, a redução dos acontecimentos contingentes a esquemas abstratos que permitem o cálculo e a demonstração de teoremas; do outro o esforço das palavras para dar conta, com a maior

136 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 83 137 Cf.: CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 84.

precisão possível, do aspecto sensível das coisas”.138 E, para afirmar a força da imagem como maneira de trazer a linguagem artística para as fronteiras entre imaginário e simbólico, margens do real, diz o escritor:

Na verdade, minha escrita sempre se defrontou com duas estradas divergentes que correspondem a dois tipos diversos de conhecimento: uma que se move no espaço mental de uma racionalidade desincorporada, em que se podem traçar linhas que conjugam pontos, projeções, formas abstratas, vetores de forças; outra que se move em um espaço repleto de objetos e busca criar um equivalente verbal daquele espaço enchendo a página com palavras, num esforço de adequação minuciosa do escrito com o não escrito, da totalidade do dizível, com o não dizível. São duas pulsões distintas no sentido da exatidão que jamais alcançam a satisfação absoluta: em primeiro lugar, porque as linguagens naturais dizem sempre algo mais em relação às línguas formalizadas, comportam sempre uma quantidade de rumor que perturba a essencialidade da informação; em segundo, porque ao se dar conta da densidade e da continuidade do mundo que nos rodeia, a linguagem se revela lacunosa, fragmentária, diz sempre algo menos com respeito à totalidade do experimentável.139

Nessa exposição dos paradoxos de seus procedimentos artísticos, em direções opostas, converge uma aproximação com a ideia de teatralidade, no tocante ao jogo com a densidade dos signos, que, segundo Lehmann, o teatro pós-dramático traz, e que consiste em “uma superabundância ou uma notável diluição dos signos”. A isso, Lehmann ainda complementa: “uma dialética de pletora e privação, de cheio e vazio”. Quanto ao aspecto fragmentário ou de recusa da totalidade, o teatro pós-dramático é o que seria a expressão máxima dos jogos entre cheio e vazio, como afirma: “Torna-se decisivo que o abandono da totalidade não seja pensado como deficit, mas como possibilidade libertadora – de expressão, fantasia e recombinação – que recusa a ‘fúria do entendimento’ (Jochen Hörisch)”.140 De algum modo, isso também ocorrerá na narrativa de Calvino, especialmente nos contos, e mesmo quando há o romance longo, como é o caso de O barão

nas árvores, que é feito de histórias curtas, interrompidas, com inserção de subtemas independentes, contos dentro de outros contos, com alguma conexão entre si, mas sem uma ideia totalizante, escapando sempre para o imaginário fantástico.

Calvino demonstra, ainda, o seu interesse por argumentos científicos, longe da perspectiva do entendimento e da ideia totalizante de compreensão do mundo, mas sim

138 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 88. 139 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 88. 140 LEHMANN. O teatro pós-dramático, p. 147.

como possibilidade imaginativa da argumentação sugerida pelo enunciado científico. Para tanto, cita o prefácio de um livro científico em que busca imagens inspiradoras, nesse caso, a chama e o cristal da obra de Piattelli-Palmarini.

Cristal e Chama, duas formas da beleza perfeita da qual o olhar não consegue desprender-se, duas maneiras de crescer no tempo, de despender a matéria circunstante, dois símbolos morais, dois absolutos, duas categorias para classificar fatos, idéias, estilos e sentimentos.141

Ainda na perspectiva da escritura, o autor compara Mallarmé e Ponge como exemplos da exatidão, a partir da metáfora da chama e do cristal, respectivamente:

em Mallarmé a palavra atinge o máximo de exatidão tocando o extremo da abstração e apontando o nada como substância última do mundo; em Ponge o mundo tem a forma das coisas mais humildes, contingentes e assimétricas, e a palavra é o meio de dar conta da variedade infinita dessas formas irregulares e minuciosamente complexas.142

Os procedimentos destacados em Ponge e Mallarmé são exatamente aqueles buscados em diversas concepções teatrais da atualidade. Calvino define, em seguida, a função da palavra nesse campo, em que o tratamento dado à palavra é o de sua corporificação, ou da materialidade, como ocorre justamente no teatro. A palavra-coisa, a apresentação cênica dada pelo movimento corpóreo, imagens integradas ao trabalho vocal. “A palavra associa o traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo”.143 A partir desses procedimentos é que se pode encontrar a teatralidade em sua obra. Com essa afirmação é possível notar uma escrita vinculada ao imaginário, a forma do exercício simbólico no seu infinito bordejamento do real, narrativa que, embora seja extremamente clara, aponta para a dimensão do desejo inconsciente, marca indelével dos processos de criação artísticas, ainda mais acentuados nas manifestações contemporâneas.

Se, nesta tese, há a corroboração de uma teatralidade na escrita, a exatidão é uma de suas vicissitudes, uma séria é útil proposta para o teatro na contemporaneidade. A título de conclusão, para explicitar a relação entre a literatura que busca a exatidão no atrito dos elementos da realidade que se desdobram em linguagem, com a carga da imagem no teatro,

141 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 85. 142 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 90. 143 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, p. 85.

há a seguinte afirmação: “Por isso o justo emprego da linguagem é, para mim, aquele que permite o aproximar-se das coisas (presentes ou ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando o que as coisas (presentes ou ausentes) comunicam sem o recurso das palavras”.144 Aqui, as relações com a linguagem artística e a própria dimensão do teatro físico, pautado nas partituras corporais, aparecem. É esse pensamento que conduz à próxima e essencial proposta.