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A música gospel: no limiar de um novo tempo

No documento Luzia Maria de Oliveira Sena (páginas 41-46)

Experiência religiosa através da música e da dança

1.1. Música e dança na experiência religiosa

1.1.8. A música gospel: no limiar de um novo tempo

O termo gospel (“evangelho”, em inglês) tem sua origem nos Estados Unidos da América (EUA), onde é comumente usado para designar a “música religiosa moderna ou a música contemporânea de Igreja”, segundo a jornalista e cientista social Magali do Nascimento Cunha (2007). Sobre isso, e em consonância com o pensamento de Cunha, Márcia Leitão Pinheiro acrescenta:

O vocábulo gospel é utilizado, no meio religioso norte-americano, desde o final do século XIX, servindo para distinguir os hinos, cantados nos serviços religiosos dominicais, dos gêneros populares de canções com os quais a comunidade buscava alguma elevação espiritual e demarcação de certa relação comunitária.

Além do aspecto religioso, o gospel também possui por característica o entretenimento e faz parte de performances e repertórios de cantores populares. (PINHEIRO, 2009:62)

Nesse sentido, Cunha (2007) esclarece que, na sua origem, o gospel não se referia a toda e qualquer música religiosa, mas a um determinado tipo de música surgida em comunidades protestantes negras dos EUA. Ou seja, esse gênero de música tem suas raízes nos negros spirituals,4 nos quais se baseiam a música negra estadunidense (blues, ragtime) e as músicas populares do movimento urbano de avivamento5 religioso do século XIX. Uma das

características desse movimento, dentre outras, é o acento na emoção. As composições das músicas, que eram utilizadas nas reuniões e manifestações religiosas dos grupos avivalistas, refletiam esse traço fortemente emocional.

Referindo-se à música gospel no contexto urbano, Cunha (2007) observa que a música gospel é resultante de uma mistura de elementos tradicionais protestantes com manifestações da modernidade presentes nas expressões do pentecostalismo reavivado. Nesse sentido, a música gospel se inspira mais no movimento revival, mais emocional e espontâneo, que na clássica hinologia protestante.

Embora o pioneiro desse gênero de música seja Charles Tindley (1856- 1933), é a Thomas Dorsey (1899-1993) que é dada a atribuição de pai da música

gospel. Filho de um pastor e amante do blues, o compositor e arranjador Dorsey,

inspirado em Tindley, abandonou a música com letras seculares e começou a

4 Segundo Cunha (2007) os negro spirituals têm a sua origina na experiência de escravidão

dos séculos XVII e XVIII, nos EUA, quando os escravos, nas poucas horas de descanso de que dispunham, ou mesmo ritmando o próprio trabalho na lavoura, dançavam e cantavam em sua língua materna. Os negros convertidos ao cristianismo começaram a adicionar conteúdos religiosos a esses cantos, inspirados nos hinos protestantes, elevando a Deus o seu lamento e as angústias da escravidão, na esperança de tempos melhores. Depois de aprenderem a língua dos seus senhores, passaram a cantar em inglês, o que possibilitou a popularização desse tipo de música.

5 Uma primeira etapa do movimento de avivamento ou revival ocorreu, nos EUA, no século

XVIII, como uma reação ao processo de secularização desencadeado pelo Iluminismo. A segunda etapa que ocorreu no século seguinte foi um movimento urbano de cunho evangelista.

escrever música religiosa, porém em ritmo de jazz e blues. Segundo informa Cunha,

as lideranças religiosas tradicionalistas reagiram e consideram esse mistura do sagrado (spirituals e hinos) e do secular (blues e jazz) como “música do demônio” e a rechaçaram. A insistência de Thomas Dorsey de romper as barreiras eclesiásticas e levar adiante a sua criação ganhou adesões e conseguiu propagar suas músicas, o que levou ao surgimento de outros compositores (CUNHA, 2007:28).

A partir da década de 1930, a música gospel ganha visibilidade no interior da cultura negra estadunidense e se populariza, especialmente, através das gravadoras comerciais e das estações de rádio, extrapolando assim os muros religiosos tradicionais e os espaços das Igrejas, tornando-se um gênero musical que combina ritmos modernos como, o pop e o rock, com conteúdos especificamente religiosos.

Mesmo assim, ainda persiste, por parte das Igrejas, certa reação negativa aos ritmos seculares e a utilização de instrumentos considerados profanos, como o violão, a guitarra, o teclado e a bateria, para fins religiosos, restringindo-os praticamente às reuniões ou encontros de jovens. Aos poucos essa realidade foi se modificando, especialmente influenciada pelo surgimento de vários conjuntos musicais e de trabalhos inovadores realizados por grupos e comunidades evangélicas nos EUA, como estratégias de evangelização da juventude, no final da década de 1960. Dentre essas inovadoras estratégias de evangelização, destacamos o surgimento, em várias cidades daquele país, de cafés ou

nightclubs, denominados de His Place [“seu lugar”], abertos para a juventude durante 24 horas, recorrendo também, como forma de atrair os jovens, à música

pop e o rock e toda a instrumentação musical própria à esse gênero de música.

Essas iniciativas alcançaram resultados surpreendentes como, por exemplo, o de ter atingindo os integrantes do movimento hippie:

Muitos se converteram e foram batizados mas não queriam deixar de lado algumas bases de seu estilo de vida, que consideravam compatível com a fé cristã: a busca da paz, amor, realidade e vida, a rejeição do consumismo capitalista, da hipocrisia religiosa e da cultura norte-americana.

A ampla adesão dos jovens grande parte oriunda desses movimentos ao cristianismo protestante nos EUA no final dos anos 60 provocou algumas consequências para aquele campo religioso: igrejas tradicionais adotaram estilos mais informais nos cultos para incluir os novos convertidos e passaram a admitir até mesmo no seu staff pessoas provenientes do movimento hippie (CUNHA, 2007:72)

O surgimento do Movimento de Jesus e do Jesus Music [“Música de Jesus”], que combina rock e gospel, constituiu o suporte básico do desenvolvimento do avivamento religioso da juventude, incrementado pelos grandes festivais de “Jesus Rock” e pelo apoio das gravadoras que viam nisso uma boa oportunidade para a indústria fonográfica.

A partir desse período, a música gospel ganha cada vez mais espaços nas práticas das Igrejas, especialmente naquelas de cunho pentecostal, como mediação do encontro com Deus. Surgem então os inúmeros grupos ou ministérios de adoração e louvor, bandas e grupos musicais que utilizam esse gênero musical nos cultos e celebrações, acompanhados de danças e de efusivas expressões corporais. Além disso, a música gospel é usada, sobretudo, como forma de atrair e congregar os jovens através de shows e outros eventos similares. Entretanto, é bom lembrar que o desenvolvimento e a expansão da música gospel no Brasil têm suas origens na primeira fase do crescimento pentecostal, nas décadas de 1950 e 1960, período em que ocorre uma grande concentração populacional nas cidades, resultante do êxodo rural. É nessa época

que os pentecostais romperam com a tradição da hinologia protestante: introduziram ritmos e estilos mais populares nas canções, incluíram instrumentos de percussão e sopro no acompanhamento e compuseram pequenas canções com melodias e letras simples de serem cantadas nos cultos algo mais próximo do que seria mais tarde popularizado entre os evangélicos como “corinho”. (CUNHA, 2007:69).

No Brasil, a consolidação e a popularização da música gospel ocorreram por volta dos anos de 1970 e 1980, impulsionadas pelo surgimento de bandas, gravadoras, programas e apresentações musicais criados ou promovidos pelas Igrejas. A partir dos anos 1990, a música gospel recebe um impulso, relacionado diretamente com a Igreja Renascer em Cristo, que transformou o termo gospel em

marca de sua propriedade, utilizando-a para vários produtos administrados pela Igreja, tais como: a gravadora Gospel Records,6 a Revista Show Gospel, a TV

Gospel (UHF-53), WebTV Gospel, curso pré-vestibular Gospel, na cidade de São

Paulo, e o portal da internet Gospel, entre os principais (CUNHA, 2007). Segundo observa esta autora, todos esses fatos e o desencadear desse processo,

que criou os corinhos dos anos 50 e 60, o Movimento de Jesus e a revolução musical jovem dos anos 70 fazem parte da gênese do que é hoje denominado movimento gospel, cuja explosão acontece nos anos 1990, provocado principalmente pelas bandas de rock evangélico. As bandas, além do uso do rock e suas variações, como o hard rock e o metal rock, inauguram uma nova linha de desenvolvimento da música evangélica, com novos estilos de apresentação (por meio de espetáculos e não cultos ou programas evangelísticos) e de elaboração de letras mais “irreverentes” (como o uso de linguagem mais coloquial) e exploração de temas relacionados ao cotidiano da juventude (CUNHA, 2007:80- 81).

Também a Igreja Católica, enfrentando oposições similares àquelas sofridas pelos protestantes e evangélicos, tentou inovar no campo da música religiosa para atrair igualmente os jovens. Para isso, seguiu em muitos aspectos a trajetória e o exemplo dos evangélicos.

Como ocorreu em relação ao avivamente espiritual, em que a Igreja Católica foi fortemente influenciada pelo pentecostalismo estadunidense, conforme abordaremos no segundo capítulo deste trabalho ao tratarmos da origem da Renovação Carismática Católica, assim também no campo da música religiosa contemporânea, os movimentos eclesiais católicos seguiram um caminho, em vários aspectos, pautados pelo exemplo dos evangélicos, especialmente no que se refere à música gospel. Integrantes das mais famosas bandas de músicas religiosas católicas, como Rosa de Saron e Ministério Adoração e Vida, testemunham em depoimentos, no terceiro capítulo dessa dissertação, a influência recebida de pessoas, de estilos musicais e até mesmo de estratégias de evangelização do mundo evangélico.

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Pioneira no segmento de música gospel no Brasil, a gravadora Gospel Records, fundada em 1990, por Estevam Hernandes e Antonio Carlos Abbud, encerrou oficialmente suas atividades em abril de 2010, embora a Igreja Renascer em Cristo ainda detenha a marca.

Através da música gospel, os cristãos evangélicos, primeiramente, e, em seguida, os católicos assumem um dos elementos mais expressivos das culturas juvenis hodiernas, ou seja, a música e a dança, como meio de evangelização, especialmente, desse segmento jovem da sociedade contemporânea.

No documento Luzia Maria de Oliveira Sena (páginas 41-46)