Desde a segunda metade do século XX, uma das linhas para a abordagem à problemática das transformações urbanas e territoriais consiste na construção de um vocabulário conceptual acompanhado por técnicas cartográficas, com vista a interpretar a paisagem contemporânea e as diferentes configurações urbanas. Esta abordagem gráfica e conceptual está relacionada com a necessidade de filtragem do excesso de informação que é característica da nossa época, contribuindo para clarificar e revelar de forma sistemática e elementar os princípios‐chave das transformações territoriais contemporâneas (PINZON CORTES, 2009).
26 | FILAMENTOS METROPOLITANOS. A emergência de morfologias especializadas no território metropolitano de Lisboa Seguindo esta linha de abordagem, a metodologia adoptada revela, assim, uma forte componente gráfica e o recurso a técnicas de representação variadas com vista a responder à necessidade de caracterização e de compreensão do objecto de estudo e do território metropolitano nos seus vários estados de formação, assim como a clara explicitação da origem da sua configuração atual. Recorre‐ se à pesquisa e crítica de fontes documentais e gráficas variadas, tal como à observação direta, através de trabalho de campo realizado de forma contínua ao longo do período de desenvolvimento da investigação. Com esta metodologia pretende‐se aliar uma abordagem teórica e empírica ao espaço urbano, com vista a uma sólida problematização do tema, para a identificação das lógicas, traduzidas em princípios de análise e posterior intervenção, passíveis de serem aplicados em realidades semelhantes.
Apesar da ocupação urbana linear ao longo de estradas e caminhos ser uma característica conhecida do processo de crescimento das cidades, a emergência de formações urbanísticas associadas à concentração periférica de atividades económicas (ligadas aos sectores secundário, terciário e quaternário), estruturada pela rede de mobilidade metropolitana, revela uma leitura de localização territorial de escala e carácter distintos. A sua observação no terreno permite a identificação de padrões morfológicos e relacionais, revelados tanto pela intensidade da sua existência ao longo da rede, como pela sua presença visual e pela falta de integração com a envolvente no que respeita às dimensões, acessos e escala. Por outro lado, a observação à distância, através de aerofotogrametria ou de cartografia, permite a sua leitura como um todo e a identificação de padrões e lógicas de localização relativamente ao suporte biofísico e antrópico (infraestruturas e tecidos urbanos). A chave para a aproximação a esta problemática baseia‐se, então, na transição entre as diferentes
escalas de leitura24, conferindo uma nova hierarquia às partes constituintes do sistema e à rede que as suporta, desmontando as suas relações, identificando os elementos que determinaram a sua configuração e analisando de forma dinâmica a sua transformação.
A interpretação morfológica, tanto a nível cartográfico como sensitivo, através do trabalho de campo de análise e reconhecimento do território metropolitano, revela a identificação de eixos urbanos dominantes, onde convergem um grande número formações urbanísticas especializadas. A compreensão do papel destes espaços na dinâmica metropolitana constitui‐se como um aspecto central para a investigação, apoiada na recolha de informação documental e cartográfica, mas também através da forte componente empírica de análise e observação direta.
O processo de investigação estrutura‐se na construção de um arquivo operativo de imagens, documental e cartográfico, decorrente do cruzamento da observação direta, da análise documental, da análise de dados estatísticos/gráficos/cartográficos, da análise dos instrumentos de planeamento existentes e no recurso a programas informáticos, enquanto ferramenta complementar de análise, cruzamento e representação dos dados recolhidos. Desta forma, o recurso a técnicas gráficas atua
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As escalas de leitura da realidade em estudo situaram‐se entre a escala nacional (e integrada na rede Europeia), a escala metropolitana, a escala local e a escala real de contacto direto, através do trabalho de campo.
FILAMENTOS METROPOLITANOS. A emergência de morfologias especializadas no território metropolitano de Lisboa | 27 enquanto de mediador entre a realidade e a sua representação/interpretação (SOLÁ‐MORALES, 2001).
O trabalho de campo realizou‐se a partir de um conjunto de trajetos pré‐definidos25, com vista ao contacto direto e leitura dos processos de transformação estudados. Os percursos exploram as áreas de concentração de atividades económicas, assim como a rede de mobilidade metropolitana, recorrendo aos diversos meios de transporte disponíveis (automóvel privado, comboio e barco), e foram definidos ao longo de vias de mobilidade integradas na rede local, regional e nacional, que estruturam o território metropolitano, complementados por um levantamento pontual das formações urbanísticas identificadas através da visita detalhada e recolha de informação sensorial. A sua documentação consiste num conjunto de imagens fotográficas, gráficos, diagramas e anotações, que constituem um arquivo gráfico que se apresenta sintetizado e compilado no Volume II, em fichas
de trabalho de campo26, que permitem a sistematização e comparação da informação recolhida, funcionando como o complemento visual ao texto apresentado neste volume.
Como técnica de aproximação à realidade, experimentaram‐se diversas representações gráficas e cartográficas, divididas em três tipos, de acordo com os diferentes momentos da investigação:
descritivas, exploratórias e dialécticas (BEELEN, 2010). Num primeiro momento, destinaram‐se a
registar o levantamento da realidade, descrevendo‐a, desmontando‐a e lançando as bases para o trabalho exploratório seguinte, em que são experimentadas leituras e interpretações. A comunicação e demonstração do trabalho realizado apoiou‐se, igualmente, em elementos gráficos que permitiram revelar o processo da investigação. A observação in‐situ constitui na base da produção da cartografia específica e dos diagramas de análise, com o processamento e cruzamento de dados recolhidos na observação direta com informação geográfica, estatística, documental e cartográfica, recolhida em fontes oficiais, trabalhada a três escalas de referência diferentes (1:25 000, 1:10 000 e 1:2 000). A abordagem adoptada é suportada por uma metodologia de análise baseada na contextualização abrangente e na comparação temporal e espacial. Em termos gerais, esta análise divide‐se em: a) Leitura conjunta e diacrónica, com a qual se identificam as lógicas e padrões metropolitanos, com recurso a períodos temporais de limites elásticos27;
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A técnica de leitura e interpretação da realidade através do contacto direto com o território surge no seguimento de diversos autores, que recorreram a percursos exploratórios e à sua representação gráfica, como são exemplo os percursos urbanos pedonais da deriva dos Situacionistas, nos anos 1960 (CARERI, Francesco‐ Walkscapes. Walking as an Aesthetic
Practice: Land&Scape. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 9788425218415.), os itinerários temáticos e
interpretativos da região Milanesa (LANZANI, A.; GRANATA, E. (coord.)‐ Esperienze e paesaggi dell'abitare. Itinerari nella
regione urbana milanese. Milan: Abitare Segesta, 2006. ISBN 8886116888.), os quatro percursos cognitivos da grande Paris
(SECCHI, B.; VIGANÒ, P.‐ La Ville poreuse : Un projet pour le grand Paris et la métropole de l'après‐Kyoto. Genéve: Mérispresses, 2011. ISBN 9782940406562.) ou por trajetos no território metropolitano de Lisboa (MORGADO‐. , SANTOS‐. ), entre outros.
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Ver Volume II.
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Por limites elásticos entende‐se a definição de períodos temporais que constroem intervalos de tempo marcados por acontecimentos que balizam períodos coerentes, em relação ao tema em estudo e ajustáveis ao aspecto específico em foco.
28 | FILAMENTOS METROPOLITANOS. A emergência de morfologias especializadas no território metropolitano de Lisboa b) Leitura fragmentada e sincrónica, em que se interpretam as consequências de ações pontuais na configuração da ocupação metropolitana, de forma a relacionar a génese dos filamentos
metropolitanos com o contexto do momento em que se formaram e nos diferentes períodos de
transformação relevantes;
c) Leitura global das relações e das lógicas que se estabelecem entre os filamentos metropolitanos e os elementos que determinam a sua estrutura, através da decomposição dos diferentes elementos urbanos e da sua sobreposição ao longo do tempo.
Como consequência da definição do objecto de estudo, a análise recorre tanto à aproximação empírica através de trabalho de campo, como a bibliografia e a fontes de registos cartográficos, documentais e estatísticos. De forma a sistematizar a leitura do objecto de estudo e ao contexto que acompanhou a sua transformação, a leitura temporal é apresentada através de intervalos de tempo, divididos pelas últimas cinco décadas, com uma grande flexibilidade conceptual dos limites, de acordo com o enquadramento temático tratado.
A delimitação dos intervalos de tempo correspondentes aos períodos de estudo tem por base a conjugação entre acontecimentos relevantes que os marcaram do ponto de vista histórico, social, económico e cultural, tanto no contexto nacional como internacional, e alterações relevantes a nível territorial, de políticas públicas e de planeamento. Desta forma, são caracterizados os diferentes momentos de formação e crescimento de Lisboa, relacionando‐os com as ações territoriais de
ancoragem, aderência, preenchimento, remoção e nova ancoragem ao território metropolitano de
Lisboa, que moldaram os filamentos metropolitanos.
Para além deste aspecto, a abordagem morfogenética, por ser apoiada em documentos oficiais, encontra‐se condicionada à informação oficial existente e disponível para este período específico de tempo. O seu acesso para a produção de análises e desenhos temáticos específicos, constitui‐se como um factor determinante para a delimitação dos períodos de análise. Assim, e porque a necessidade de representação do território através de cartografia oficial corresponde, igualmente, a momentos relevantes em termos de mudanças ou nos quais surge a necessidade de conhecer a realidade para nela intervir (a nível de produção de planos, urbanização ou infraestruturação), a estas datas de produção da cartografia oficial correspondem momentos‐chave, que abrem pistas para o entendimento da evolução territorial do contexto em estudo.
Para além da dificuldade de fragmentação e de separação do processo de transformação em períodos estanques, acresce o facto de a literatura existente sobre o tema28 estabelecer
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Variados autores apresentam uma leitura do território metropolitano de Lisboa, em função das temáticas em análise, como são exemplo os seguintes:
Os períodos [1945, 1970], [1970, 1990], [1990, 2000] apresentados por GEORGE, P.; MORGADO, S.‐ Área Metropolitana de Lisboa 1970‐2001. De la monopolaridad a la matricialidad emergente. In FONT, A.‐ L'explosió de la ciutat : morfologies, mirades i mocions sobre les transformacions territorials recents en les regions urbanes de l'Europa Meridional. Madrid: Ministerio de Vivienda, 2007. ISBN 8496387259. p. 62‐85.
FILAMENTOS METROPOLITANOS. A emergência de morfologias especializadas no território metropolitano de Lisboa | 29 periodizações que expressam parâmetros e lógicas diferentes de divisão temporal, de acordo com o aspecto em análise. Por se tratar de um tema que envolve questões de natureza variada – urbana, económica, política, social e cultural – optou‐se por uma periodização de limites elásticos, que constroem intervalos de tempo marcados por acontecimentos que balizam períodos coerentes, em relação ao tema a abordar. Desta forma, uma vez que a metodologia alia uma aproximação cartográfica ao cruzamento de informação de variadas fontes, são considerados os seguintes intervalos:
1. Até 1974 – Ação de ancoragem
Como recurso cartográfico principal usam‐se as cartas militares da série M888, folhas 374 a 466 (escala 1:25 000), com as datas de 1961 a 1973, e cartas militares da série M782, folhas 30III a 39IV (escala 1:50 000), com as datas de 1964 a 1975.
Este é um período marcado pelo regime político do Estado Novo e pontuado pelo decurso de duas guerras, que vieram contribuir para grandes alterações demográficas e económicas, marcando as primeiras etapas da formação do território metropolitano e a constituição do tecido industrializado periférico, que se estabeleceu como a ancoragem das atividades económicas. 2. De 1975 a 1994 – Ação de aderência Recorrendo às cartas militares da série M888, folhas 374 a 466 (escala 1:25 000), com as datas de 1971 a 1994, e cartas militares da série M782, folhas 30III a 39IV (escala 1:50 000), com as datas de 1988 a 1996.
Este é um período de grandes mudanças a nível político e económico, marcado sequencialmente pela revolução, estabilização democrática e a entrada na UE, seguidas por um período de normalização política e de abertura do mercado. Estas transformações marcaram os rápidos ciclos económicos e demográficos que estiveram na base da dispersão urbana e do crescimento acentuado das atividades terciárias e da sua consequente dispersão periférica pelo território metropolitano de Lisboa, através de ações de aderência, suportada pela construção da rede rodoviária de alta velocidade.
3. De 1995 a 2011 – três ações simultâneas de preenchimento, remoção e nova ancoragem
Os períodos [1860, 1940], [1940, 1965], [1965, 1992], [1992, 2001] apresentados por MORGADO, S.‐ Protagonismo de la ausencia: interpretácion urbanística de la formación metropolitana de Lisboa desde lo desocupado. Barcelona: Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona, Universidad Politecnica de Catalunya, 2005. Tese de Doutoramento. Os períodos [1856, 1891], [1891, 1944], [1944, 1966], [1966, 1995], [1995, 2007] apresentados por SANTOS, J.R.‐ Espaços de mediação infraestrutural: Interpretação e projeto na produção do urbano no território metropolitano de Lisboa. Lisboa: Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, 2012. Tese de Doutoramento. Os períodos [1960, 1973], [1974, 1985], [1986, 1995] apresentados por BARRETO, A. (org.)‐ A situação social em Portugal, 1960‐1995. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1996. ISBN 9726710643‐X. Os períodos [1960, 1969], [1970, 1989], [1990, 2009] apresentados por PINHO, P. (coord.), [et al.]‐ SUPERCITIES: Sustainable Land Use Policies for Resilient Cities. FEUP, FAUTL, 2010.
Os períodos […, 1985], [1985, 1995], [1995, 2000] apresentados por DGTT / DELEGAÇÃO DE TRANSPORTES DE LISBOA‐ Mobilidade e Transportes na AML – 2000. Lisboa: Direcção‐Geral dos Transportes Terrestres/Delegação de Transportes de Lisboa, 2000.
Os períodos [..., 1850], [1850, 1945], [1945, 1985], [1985, 2001] apresentados por SALGUEIRO, T.B.‐ Lisboa. Periferia e Centralidades. Oeiras: Celta, 2001. ISBN 9789727741090.
30 | FILAMENTOS METROPOLITANOS. A emergência de morfologias especializadas no território metropolitano de Lisboa Recorrendo às cartas militares da série M888, folhas 374 a 466 (escala 1:25 000), com as datas de 2004 a 2010; cartas militares da série M782, folhas 30III a 39IV (escala 1:50 000), com as datas de 1994 a 2010 e fotografia aérea de 2005.
Este é um período caracterizado por uma grande velocidade de transformações urbanas, económicas e sociais, que correspondem às três ações simultâneas de preenchimento, de remoção e de nova
ancoragem. O ciclo de crescimento / estabilidade / decrescimento económico Português foi marcado
inicialmente pela estabilidade económica e social e pela aproximação crescente à média Europeia, através da introdução da moeda única e do acesso aos fundos comunitários, culminando num período de crise económica e financeira que justificou o resgate financeiro por parte do Programa de
Assistência Financeira UE/FMI/BCE, assinado em 2011, encetando um ciclo de reestruturações
profundas que representaram grandes transformações territoriais e de planeamento.
Deste quadro resultou a consolidação da rede de mobilidade metropolitana, que permitiu a leitura do território apoiada na facilidade de deslocação e no transporte individual, com a emergência de eixos territoriais de especialização funcional, acompanhados pelo crescimento das atividades de produção de conhecimento e de consumo e, simultaneamente, pelo abandono e obsolescência de áreas industriais periféricas.
A leitura das transformações espaciais relacionadas com a ocupação das atividades económicas no território metropolitano de Lisboa permite a identificação de cinco tipos de ações territoriais, correspondentes ao processo29 de produção e transformação espacial e de configurações urbanas distintas. Este processo aponta para uma interpretação sequencial, com um ciclo de períodos temporais, de investimento e sua consequente espacialidade, encarando os espaços urbanizados como não estáticos, mas como parte de um todo metropolitano mais abrangente. Desta forma, parte‐se de uma aproximação contextual, enquadrando as condições políticas, económicas e sociais que contribuíram para as transformações urbanas e para a constituição dos filamentos
metropolitanos, com vista a construir uma caracterização e leitura dos diferentes processos de
produção espacial, os seus diferentes resultados e indagar acerca de novas ações para a melhoria destes diferentes espaços.