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A Modernidade e o corpo

2 A MODERNIDADE, O CORPO E A PSICANÁLISE

2.2 Olhares cruzados sobre o corpo

2.2.2 A Modernidade e o corpo

No âmbito das representações visuais reveladas pelo olhar dos artistas, Arasse (2008) argumenta que desde o século XIV, pintores e escultores deram uma atenção renovada à

representação do corpo humano, tanto em seu detalhe anatômico como em suas capacidades expressivas. No apogeu da Renascença na Itália, o humanismo e o antropocentrismo fazem do corpo humano a base e a medida da vida: microcosmo no centro do mundo, é também o reflexo e o resumo do macrocosmo. Para o pensamento analógico renascentista, “a criatura humana, corpo e alma não separados, participa do conjunto do mundo e se encontra ligada aos reinos animal e vegetal, à Terra e ao cosmos” (ARASSE, 2008,v. 1, p. 544).

Na Renascença, a valorização do corpo era indissociável da exaltação de sua beleza física, período que inaugura as técnicas que deviam permitir aos pintores desenhar facilmente corpos e rostos corretamente. As proporções do corpo passam a ser investidas de uma dimensão metafísica, devendo refletir a harmonia da criação divina e o vínculo entre o microcosmo e o macrocosmo.

A partir do século XVII, há um deslocamento do modelo de referência na representação do corpo, no qual encontramos não mais a ideia do corpo microcosmo refletindo a perfeição da criação, mas a realidade visível das estátuas antigas: “este sutil deslocamento do cosmos divino para o mundo da arte assinala a posteriori a ruína da noção de corpo microcosmo, cuja dissolução também foi preparada pela anatomia” (ARASSE, 2008, v. 1, p. 552).

Arasse salienta que o período renascentista inaugura um fenômeno de amplidão considerável, mais durável do que a reflexão das proporções, que é a presença do corpo nu, seja masculino ou feminino, nas pinturas, esculturas, gravuras e até arquiteturas. O retorno inesperado das formas antigas gregas fazem com que, até o século XIX, deuses, deusas, heróis, ninfas e sátiros da mitologia permitam representar o corpo nu.

A invasão da nudez atinge também o domínio da arte religiosa, fenômeno considerado paradoxal por Arasse, uma vez que o tratamento artístico do corpo nu suscita, no fiel ou devoto, um efeito que desvia a imagem de sua função, isto é, se a função da imagem religiosa é propiciar um distanciamento das questões mundanas, a exposição do corpo nu provoca o efeito contrário, que é o de convocar a emergência das sensações carnais.

O período renascentista também inaugura duas práticas sociais novas, indissociáveis da glorificação do corpo em sua representação clássica, nas quais os artistas participam em larga escala, de acordo com Arasse, do começo do século XVI até as últimas décadas do século XVIII: “a ciência anatômica revoluciona a definição física do organismo humano e a instituição de regras de comportamento ou ‘civilidade’ fixa, através do controle de sua manutenção, uma nova representação do corpo socializado” (ARASSE, 2008, v. 1, p. 565).

Para este autor, estas duas práticas são responsáveis por constituírem juntas, uma consciência moderna do corpo, em sua estrutura física e em sua sociabilidade.

Em síntese, podemos considerar que a anatomia, a exaltação da beleza, a erotização do corpo masculino e feminino, juntamente com a introdução dos primeiros manuais de civilidade tornam-se ingredientes fundamentais na invenção e desenvolvimento de uma nova representação cultural do corpo, suportes das relações sociais.

Na Renascença, encontramos também uma outra representação do corpo, a fisiognomia, a qual concebe o corpo como espelho da alma. Courtine (2008) descreve- a como ‘a arte de decifrar a linguagem do corpo’, ou em outras palavras, o saber que nos mostra que ‘o corpo fala’, a arte de conhecer os homens por intermédio dos sinais corporais, sendo assim portadora de uma história do olhar sobre o corpo.

Para o autor, a fisiognomia não é a única a afirmar que o corpo fala, mas representou a forma mais sistematizada deste tipo de saber durante a época clássica (entre os séculos XVI e XVII). Situa-se na trilha de um vasto domínio de artes e ciências cujo fundamento antropológico remonta à antiguidade Greco-romana. Pela leitura dos sinais corporais, a ambição da fisiognomia era a de oferecer a cada pessoa um guia de conduta na vida civil. Este tipo de saber obteve ampla aceitação no século XVI até a primeira metade do século XVII, acompanhando o desenvolvimento da sociedade cortesã.

A fisiognomia foi contemporânea do desenvolvimento da civilidade, assim como da demarcação que começa a evidenciar-se entre uma exterioridade de cuja expressão o corpo é o veículo, e um mundo interno e privativo; da separação entre o mundo das aparências e o da alma. Esta última estaria impressa em marcas físicas que caberia à fisiognomia revelar, isto é, decifrar a linguagem da alma, estampada no exterior.

O pensamento fisiognomônico é dominado pela astrologia e guiado, em seu exame, pela infinidade de simpatias e de semelhanças que ligam o grande universo ao microcosmo do corpo humano. Fazia parte da fisiognomia as metoscopias ou leitura dos sinais do rosto: “a metoscopia é para o rosto o que a quiromancia é para a mão” (COUTINE, 2008, v. 1, p. 406).

De acordo com o autor, os sinais no corpo eram relacionados a um significado psicológico e a um poder tutelar (astros, divindades ou natureza), de modo que cada pessoa traria escrito na fronte o seu destino, uma marca que pode revelar sinal de boa ou má sorte, de doença e estigma social.

No curso do século XVI, porém, as percepções do corpo veiculadas pelos tratados de fisiognomia tendem a se deslocar com a introdução de uma outra racionalidade, que passa a observar o cuidado com o método e precisão nas observações do corpo, acompanhando as

descobertas da anatomia. As imagens do corpo que este saber dissemina vão aproximando mais do corpo máquina e distanciando-se do homem zodíaco.

Trata-se agora de uma legibilidade mais regulada que vai compondo não mais uma leitura detalhada dos sinais, mas uma anatomia das paixões, na qual Courtine (2008) aponta para a presença de uma abordagem mais abstrata, construída com base no cálculo. A leitura dos sinais do corpo então muda, e torna-se um código binário: a uma configuração expressiva do rosto correspondia uma paixão da alma.

Para Courtine (2008), durante os séculos XVI e XVII, a figura humana desencanta-se progressivamente e vai impregnando-se de uma nova dimensão subjetiva, entrecortada por uma racionalidade que passa a condenar a antiga fisiognomia. Desacreditada pela ciência, no entanto ela continua a ser parte essencial do conhecimento comum e dos saberes ordinários que informam as práticas de observação do outro.

A partir do século XVIII a leitura dos sinais do corpo vai apropriando-se de duas vias divergentes: de um lado, a perspectiva aberta pelos desenvolvimentos da anatomia que leva à frenologia ou leitura dos crânios de Gall, e de outro, na leitura da fisionomia humana, ou seja, na apreensão das expressões sensíveis de uma linguagem individual do sentimento, divisão esta que testemunha “o divórcio entre o estudo objetivo do ser humano orgânico e a escuta subjetiva do ser humano sensível, este grande corte que separa os saberes, esta profunda fratura das linguagens do corpo no Ocidente” (COURTINE, 2008, v. 1, p. 410).

Para Porter e Vigarello (2008), na compreensão da saúde e da doença, o que domina durante dois mil anos é a imagem do corpo transmitida pela medicina e pela filosofia gregas, o modelo humoral, encontrado nos escritos hipocráticos (sec. V. a.C.) e na obra de Galeno (séc. II d.C.). Este modelo do corpo apoia-se nas substâncias que este exala e em sua aparência, que são tomados como indícios de saúde ou doença. Estas substâncias fundamentais constituem-se de quatro líquidos, que eram considerados os fatores de vitalidade: o sangue, a bílis (ou bilis amarela), a fleuma e a melancolia ou (bílis escura).

Os quatro humores desempenham diferentes funções que permitem manter o corpo em vida: o sangue é o “licor da vitalidade”; se sai borbulhando de um corpo, a vida se escoa com ele. A bílis é o líquido gástrico, indispensável à digestão; a fleuma constitui-se de uma vasta categoria que compreende todas as secreções incolores, sendo, ao mesmo tempo, um lubrificante e resfriador corporal, como o suor e as lágrimas. A bílis escura ou melancolia quase nunca é encontrada em estado puro, sendo que é a responsável pelo obscurecimento dos outros fluidos.

De acordo com os autores, o modelo do corpo humoral estabelecia vínculos com as grandes substâncias elementares que compõem o conjunto do universo: o fogo, o ar, a água e a terra. Assim, quente e movimentado, o sangue é como o fogo; quente e seca, a bílis é como o ar; fria e úmida, a fleuma é como a água; fria e seca, a bílis escura é como a terra.

Nas metáforas da medicina popular, o corpo é um microcosmo no centro do universo e estava em correspondência com os signos do zodíaco e com as variações climáticas. Acreditava-se que a lua influenciava as sangrias, a cura das feridas, o peso dos humores; ela regulava a menstruação das mulheres, o momento do nascimento e até da morte.

Salientam os autores que a saúde era considerada um estado de equilíbrio sempre precário, ameaçado e instável entre o corpo humano, o universo e a sociedade. A prevenção das doenças era considerada uma arte de viver de acordo com a natureza, isto é, a obtenção de uma correspondência entre a harmonia interna e a externa. No mundo europeu, o começo da medicina científica apresenta-se entrelaçado com a tradição popular, regida pela representação do corpo humoral, em sintonia com as forças astrológicas: “religião, magia, feitiçaria e medicina popular encontram-se entrelaçadas nas concepções da saúde e da doença” (PORTER E VIGARELLO, 2008, v. 1, p. 448).

A medicina moderna vai sendo elaborada lentamente contra esses saberes milenares, opondo a observação ao “ouvir-dizer”, a pesquisa à tradição popular. Porter e Vigarello (2008) informam que a partir da Renascença, a agitação intelectual mobilizou a vontade de descobrir verdades novas, momento em que podemos observar uma série de tentativas para estabelecer a medicina sobre bases mais sólidas, em particular, a partir do momento em que a revolução científica obteve sucesso nas ciências mecânicas, na física e na química, conhecimentos que possibilitaram grandes avanços também nas artes de navegação. No campo da medicina, a estrutura mais sólida, calcada na observação, surge com o conhecimento anatômico possibilitado, por sua vez, pela acumulação das práticas de dissecação de cadáveres, no final da Idade Média.

Afirma Mandressi:

No século XVI – um tempo de viagens de descoberta e de exploração, de novos mundos a conhecer e a dominar – a noção de homem-microcosmo facilita a assimilação da obra anatômica à descoberta, à designação e à representação de regiões desconhecidas. Ela é uma ponte lançada entre os modos antigos de imbricação analógica do ser humano e do mundo e a ambição de caminhar em direção a um corpo enfim descoberto e cartografado. Partes de território tomam forma no seio de uma anatomia que

fragmenta o “resumo do universo”, coloca-o em mapas e o submete a uma

nomenclatura tão minuciosa quanto superabundante (MANDRESSI, 2008, v. 1, p. 438).

Para o autor, podemos ver inaugurar, entre os anatomistas do século XVI, algumas transformações em relação às representações herdadas das tradições antiga e medieval. Surge com eles um modelo de corpo arquitetural, o advento de representações de solidez, deslocamento que descarta os humores do papel de elemento central da organização corporal em favor da parte sólida, que vai sendo progressivamente fragmentada, pelo trabalho dos primeiros anatomistas.

De acordo com Porter e Vigarello (2008), a grande ruptura em relação à representação do corpo humoral ocorreu com a obra do anatomista flamengo André Versálio, nascido em 1514. A grande contribuição de Versálio adveio da criação de uma atmosfera de pesquisa e do estudo anatômico fundado na observação. Sendo assim, sua obra está na origem da exploração do corpo enquanto estrutura de órgãos e ossos e na promoção da anatomia a fundamento da ciência médica.

O crescente prestígio do conhecimento anatômico e a nova busca de “verificação” reorientam sensivelmente o estudo do corpo e de seus distúrbios. Entre 1600 e 1602, o médico inglês William Harvey fez importantes descobertas sobre o funcionamento do coração, concebido como uma bomba que permite a circulação do sangue pelo corpo. A imagem do corpo como máquina tornou-se ainda mais fascinante, sobretudo com a filosofia mecanicista de René Descartes.

Assim descreve Porter e Vigarello (2008) a imagem do corpo máquina, reinante a partir do século XVII: “a imagem das alavancas, das rodas dentadas e das polias funciona como tantas referências possíveis. As forças, as rupturas e os choques funcionam como outras tantas explicações. O que dominou foi sobretudo a hidráulica” (PORTER E VIGARELLO, 2008, v. 1, p. 460).

A filosofia mecanicista seguiu em sua influência sobre as representações do corpo e estimulou novas investigações. No século XVIII, a pesquisa em anatomia geral prosseguiu nas pistas desenvolvidas por Versálio e seus sucessores, conforme salienta Porter e Vigarello (2008). Os conhecimentos anatômicos e suas aproximações com as leis da mecânica vão sendo cada vez mais refinados. Assim, o modelo da relojoaria de Descartes passa a ser considerado muito grosseiro para o anatomista Boerhaave (1668-1738), que propôs o funcionamento do corpo como uma rede de vasos e tubos, elegendo o modelo da hidrostática. O crescente prestígio das ciências físicas despertou o interesse em medir as operações da

máquina corporal. Termômetros passam a ser usados a partir do século XVIII para medir a temperatura e a pressão sanguínea.

Em 1542, com a invenção do microscópio, a ampliação ótica abre novos horizontes à fragmentação do corpo. Os anatomistas, por intermédio de fracionamentos sucessivos, buscam o segmento definitivo, a parte das partes. O microscópio faz aparecer a unidade da composição sob a forma de um filamento, a fibra, noção que eclode a partir dos anos de 1650. Tal noção fez com que o corpo humano passasse a ser visto como um feixe de fibras.

Durante o século XVIII as pesquisas experimentais sobre os corpos vivos levantam novas questões sobre o fato de o organismo vivo ser essencialmente uma máquina ou algo diferente. As pesquisas vão mostrando que a vida possui uma complexidade que a diferencia das máquinas: “algumas descobertas revelavam os poderes fenomenais que os seres vivos possuem, entre os quais a sua maravilhosa capacidade de regenerar-se, ao contrário dos relógios e das bombas” (PORTER E VIGARELLO 2008, v. 1, p. 467).

William Cullen, professor de medicina em Edimburgo, desenvolveu, em 1778 , o conceito de irritabilidade como propriedade das fibras. Este pesquisador interpretava a própria vida como uma função do potencial dos nervos, e enfatizou a importância do sistema nervoso na etiologia das doenças, criando a palavra “neurose” para descrever um grupo de doenças nervosas.

Por intermédio da visão anatômica e fisiológica, a ciência das Luzes foi tentando descobrir as leis da vida. As relações entre o conhecimento biológico nascente e as práticas médicas ainda permaneceram opacas, mas a importância da observação do corpo doente forneceu os sinais para um diagnóstico mais seguro.

Porter e Vigarello (2008) salientam que o nascimento da clínica médica é marcado pelo prestígio do conhecimento qualitativo, sendo que os médicos do século XVIII contentavam-se com o uso tradicional dos cinco sentidos para o diagnóstico. Os médicos: “tomavam o pulso, farejavam para descobrir a gangrena, provavam a urina, escutavam para detectar irregularidades respiratórias e eram atentos à cor da pele e dos olhos- eles pretendiam encontrar a impressão que aparece no rosto dos moribundos (PORTER E VIGARELLO, 2008, v. 1, p. 480).

Na busca por tentar desvendar o mundo subterrâneo do corpo, a ascensão da anatomia patológica também tornou-se fundamental, sendo a responsável por mostrar que as doenças residiam em órgãos específicos e os sintomas das doenças correspondiam a lesões anatômicas. Os avanços da anatomia patológica e da fisiologia dos tecidos demonstraram que os

diversos órgãos do corpo contêm tecidos particulares, como os tecidos musculares, conjuntivo e nervoso. O corpo doente emergia assim em sua materialidade.

Diante da abundância das descobertas, a medicina moderna é responsável por transformar profundamente as representações do corpo: “a medicina da Europa moderna libertou-se insensivelmente da visão de um corpo perpassado de simpatias: o modelo enraizado na cultura popular. Ela soube explorar o imaginário mecânico, físico, químico do seu tempo” (PORTER E VIGARELLO, 2008, v. 1, p. 486).

De acordo com Faure (2008), ao adentrarmos no século XIX, a tendência a fragmentar o corpo já está estabelecida. Uma abordagem mais fisiológica, localista, minuciosa e técnica ganha bastante prestígio, o que modifica a maneira de os indivíduos e da sociedade lidarem com o corpo. A medicina erige-se como principal guia de leitura do corpo e da doença, o que faz com que a representação naturalista deste e sua medicalização se tornem hegemônicas.

Entre 1750 e 1850, o coração da medicina moderna firma-se na clínica médica, cujo método de pesquisa consiste, de um lado, em recolher informações junto aos pacientes e examiná-los com atenção aos sintomas descritos e, de outro, fazer ligações entre os sintomas apresentados e suas possíveis lesões orgânicas, seguindo o percurso anatomoclínico.

A observação dos sintomas e da anatomia é considerada a base da prática médica. Na exploração do corpo, interessa agora não apenas o corpo morto, mas também o vivo, onde encontramos o corpo das sensações. Nasce a abordagem do sensualismo na medicina, e um interesse renovado pela dor:

A dor é um meio de chegar ao conhecimento dos sentidos e da sensibilidade, centro das interrogações dos filósofos que procuram descrever e explicar uma natureza humana liberada de seu estatuto único de criatura divina. A capacidade de sentir e ressentir é rapidamente considerada como algo próprio do ser humano. [...] O estudo da sensibilidade estimula pesquisas de médicos fisiologistas como Albrecht Von Haller e de médicos-filósofos como Georges Cabanis (FAURE, 2008, v. 2, p. 28).

No trabalho cotidiano de lidar com a dor, inicia-se cada vez mais a prescrição de calmantes cujo princípio ativo era o ópio. Surge também, com o uso da morfina como anestésico, entre 1850 e 1875, a prática da anestesia e, com esta, um progresso para os médicos, a conquista de poder operar sem dor.

Cresce, desta forma, o poder dos médicos, que passam a dominar cada vez mais o diálogo com os pacientes, cujos corpos, submissos nesta relação de poder, são codificados e controlados. A escuta mais atenta dos sintomas do corpo passa a ocorrer de maneira mais

“fácil” pela vigilância e controle dos afetos que poderiam perturbar a construção da racionalidade médica:

O diálogo com o doente perde espaço para o exame físico e a anamnese retorna ao interrogatório. [...]. Nesse quadro ideal o diálogo é inteiramente dominado pelo médico. O doente e seu corpo não fornecem mais que indícios, aos quais somente o médico pode dar um sentido, transformando-os em sinais. Com o aparecimento da semiologia, apenas o médico pode discorrer sobre a doença (FAURE, 2008, v. 2, p. 32).

Na medicina do séc. XIX, de acordo com Faure (2008), surge o vitalismo, uma reflexão filosófica que procura refletir sobre a natureza da vida, sem recorrer à noção de alma, de conotação religiosa. A interpretação vitalista vê na força vital, que não é nem definida, nem localizada, o motor da vida e a fonte da saúde e da doença. Seu maior representante, Georges Cabanis, defende uma representação do ser humano que não é nem criatura divina, dirigida por sua alma, nem um animal dirigido apenas por suas sensações: “a medicina de Cabanis é, antes de tudo, antropológica. Querendo conhecer o homem em sua inteireza, ela é levada a refletir as relações entre o físico e o mental” (FAURE, 2008, v. 2, p. 45).

Representante do movimento dos ideólogos, Cabanis procura explicar as relações entre o físico e o mental em termos de uma interdependência e de uma reciprocidade. Salienta Faure (2008) que embora muito especulativo, o pensamento dos ideólogos representa a primeira reflexão a respeito do funcionamento do psiquismo e de seus efeitos sobre o organismo. Na linha de reflexão aberta pelos ideólogos, encontramos os psiquiatras, que, embora hesitem entre a interpretação fisiológica e a psicológica, acabam por associar as duas explicações.

Também no contexto dos conhecimentos da medicina do século XIX, encontramos o desenvolvimento de uma abordagem ambiental da saúde e da doença, especialmente após a descoberta dos micróbios por Pasteur, que evidencia a existência de organismos vivos responsáveis por inúmeras doenças.

A descoberta dos germes por Pasteur dá origem a uma medicina preventiva que passa a enfatizar a importância da implementação de hábitos de higiene, entre a população, dando origem a um novo higienismo, de cunho moralizador, que procurou incutir novos costumes, e a responsabilização individual pela aquisição de doenças.

O espectro da contaminação atinge o âmbito das doenças sexuais como a sífilis. A teoria da heredosífilis traz à tona a preocupação com a decadência Neste contexto, o corpo,

“torna-se o receptáculo de todas as ameaças que pesam sobre a sociedade, o lugar de inscrição