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Tensões e impasses na constituição da Psicanálise enquanto ciência

4 POR UMA CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE: O CONHECIMENTO PSICANALÍTICO COMO CIÊNCIA E FICÇÃO

4.1 Tensões e impasses na constituição da Psicanálise enquanto ciência

É com a leitura de Birman (1994) que pudemos referendar as dificuldades de Freud no percurso de construção de uma cientificidade peculiar à psicanálise. Este autor nos mostra que, de fato, o discurso freudiano é um conjunto heterogêneo de enunciados, isto é, nele encontramos diferentes estilos de discursos.

Vamos acompanhar Birman em suas leituras sobre a cientificidade da psicanálise, a fim de que possamos alargar nossa compreensão do sentido e da direção da pesquisa em psicanálise.

O discurso freudiano inscreveu-se num contexto bem preciso da história das ciências, no qual a emergência teórica do Círculo de Viena pretendeu estabelecer proposições rigorosas para definir o conhecimento científico em contraposição ao conhecimento metafísico. Para isso, seria necessário considerar a oposição radical entre as proposições com sentido (discurso científico) e as proposições sem sentido (discurso metafísico). O critério de sentido se baseava na verificação dos enunciados das proposições, de maneira que a exigência de verificação remetesse aos fatos de ordem empírica. Neste quadro epistemológico, o discurso freudiano enunciava que a filosofia se definiria como um trabalho teórico centrado na especulação, enquanto que a ciência estaria estreitamente vinculada à empiria e à observação.

Desde os seus primórdios, a psicanálise foi radicalmente criticada pela sexologia, pela psiquiatria e pela psicologia, que levantavam dúvidas quanto ao rigor teórico das construções intelectuais de Freud. Este, por sua vez, procurava responder incisivamente aos seus críticos, afirmando, sempre positivamente, a cientificidade da psicanálise. Para obter a

afirmação de sua disciplina como ciência, Freud baseou-se nos pressupostos do fisicalismo e da termodinâmica, que se constituíam então o paradigma no campo das ciências da natureza. Birman (1994) considera que a utilização da linguagem fisicalista perpassa toda a obra freudiana, desde o “Projeto para uma psicologia científica”, e evidenciava o esforço do criador da psicanálise em enunciar a sua disciplina para a comunidade científica, na linguagem considerada adequada para que a psicanálise fosse reconhecida como ciência.

Birman (1994) procura evidenciar, pela leitura do discurso freudiano, que há neste um duplo conjunto de enunciados teóricos. No primeiro deles, a linguagem dominante pertence aos domínios da fisiologia, da termodinâmica e da psicofísica, no qual buscava-se uma base empírica e verificacional para as proposições teóricas freudianas. No trecho seguinte do ‘Projeto para uma psicologia científica’, de 1895, buscamos ilustrar o que nos mostra Birman, quanto ao primeiro grupo de enunciados:

[...] quem se dedica à elaboração de hipóteses científicas só pode levá-las à sério se se adaptam, em mais de um sentido, aos nossos conhecimentos e se a arbitrariedade de uma constructio ad hoc é suscetível de ser atenuada em relação a elas. Contra nossa hipótese das barreiras de contato, poder-se ia objetar que ela pressupõe duas espécies de neurônios, fundamentalmente diversas, em suas condições funcionais, embora por ora não exista outra base de diferenciação. Seja como for, sob o ponto de vista morfológico (isto é, histológico) nada se conhece que corrobore a distinção. Onde então situar a divisão em duas espécies? Se possível, no desenvolvimento biológico do sistema nervoso, que, como tudo mais, no entender do cientista natural, é algo que se formou gradativamente. Gostaríamos de saber se as duas espécies de neurônios podem ter tido significação biológica diferente e, nesse caso, graças a que mecanismo teriam desenvolvido características tão diversas como a permeabilidade e a impermeabilidade (FREUD, 1980e, v. 1, p. 403-404).

Este trecho acima é parte da fundamentação teórica que Freud empreende para explicar o mecanismo da memória. Se no âmbito dos estudos sobre histeria ele havia constatado que os histéricos sofrem de reminiscências (em que o afeto não ab-reagido ligado ao trauma era considerado a causa maior dos sintomas observados), era necessário que ele pudesse explicar o que era a memória, ou seja, como as experiências eram retidas e transformadas em neurose. No Projeto, Freud procura estudar a memória no campo dos conhecimentos da neurologia de sua época, onde tentava representá-la como efeito da ação dos neurônios impermeáveis. Observamos, neste trecho citado acima, a tentativa de conferir à suas hipóteses credibilidade científica, pela utilização da linguagem da biologia.

No segundo conjunto de enunciados mencionados por Birman (1994), por sua vez, havia uma impossibilidade de verificação nos modelos das ciências naturais, o que possibilita a construção de uma dimensão hermenêutica para a psicanálise, inscrevendo-a no campo das ciências da cultura. No apêndice aos estudos sobre histeria, intitulado “psicoterapia da histeria”, escrito em 1894, Freud descreve a organização do material psíquico referente à memória, em arquivos:

O material psíquico em tais casos de histeria apresenta-se como uma estrutura em várias dimensões, que é estratificada em pelo menos três formas diferentes. (Espero logo poder justificar esta modalidade pictórica de expressão). Inicialmente, há um núcleo que consiste de lembranças de fatos, ou sequências de pensamento, nos quais o fator traumático culminou, ou a ideia patogênica encontrou sua manifestação mais pura. Em torno desse núcleo encontramos o que é frequentemente uma quantidade incrivelmente grande de um outro material mnêmico que tem de ser elaborado na análise e que é, como dissemos, arranjado numa ordem tríplice. [...] a análise de minha paciente Emmy Von N continha arquivos de lembranças embora não fossem tão plenamente enumerados e descritos. Esses arquivos são uma característica bem geral de cada análise, e seu conteúdo sempre surge em ordem cronológica, que é infalivelmente tão digna de confiança quanto a sucessão dos dias da semana, ou os nomes dos meses numa pessoa mentalmente normal (FREUD, 1980c, v. 2, p. 345).

Como podemos observar, se no primeiro trecho, Freud busca nas ciências naturais uma base, para sustentar suas proposições (a memória descrita em termos de neurônios, explicados pela histologia), no segundo enunciado, a utilização da metáfora pictórica impossibilita a verificabilidade da proposição sobre a memória (como encontrar na anatomia a imagem dos arquivos descritos?).

Apesar de todo o esforço de Freud em construir o seu “Projeto para uma psicologia científica”, buscando com este adequar a psicanálise aos pressupostos da ciência natural, os sintomas das neuroses revelavam uma significação que não era sustentada pelos conhecimentos anatômicos. O sentido dos sintomas se inscrevia na experiência temporal do sujeito, na sua história e era registrado na sua memória. Se Freud se desculpava pela utilização de metáforas para descrever o funcionamento do psiquismo, ao mesmo tempo, ele seguia uma trajetória de rompimento com a psiquiatria de seu tempo, a qual buscava explicar as perturbações mentais como produzidas no corpo biológico. De fato, o psiquismo da psicanálise não é orgânico, mas um psiquismo falante:

[...] O psiquismo com que se defronta o discurso freudiano não é um psiquismo artificializado num laboratório, seja de neuroanatomia, de neurofisiologia ou de psicologia introspectiva. O psiquismo freudiano é um psiquismo que fala, não uma fala solitária, mas inserida num circuito de interlocução (BIRMAN, 1994, p. 25).

Ao erigir-se como uma outra psicologia, que se diferenciava da psicologia do eu, da consciência e das faculdades mentais, fundada no inconsciente e nas pulsões, a psicanálise não se baseava nos modelos de cientificidade das ciências naturais. O que o discurso freudiano realizava, efetivamente, eram operações de interpretação, baseadas na escuta dos pacientes, de onde Freud retirava suas hipóteses sobre o funcionamento psíquico

No início do século XX, os saberes da interpretação apresentavam-se com frequência superpostos aos campos da arte e da filosofia, de maneira que não eram considerados científicos. Apesar deste estatuto epistemológico, conferido aos saberes da interpretação, Birman (1994) salienta que Freud baseou-se no discurso dos historiadores e dos gramáticos alemães, que representavam, no final do século XIX, a história, a língua e a cultura, segundo um modelo evolucionista. Tendo em vista estas filiações da psicanálise, ela não se construiu como um discurso científico – natural, pois suas operações metodológicas estavam mais próximas das que eram utilizadas no campo da história e da linguagem.

O termo metapsicologia representaria a tentativa freudiana em superar a psicologia da consciência, em que o prefixo “meta” acarreta o sentido de ir “além da” consciência e do eu, em direção ao inconsciente. Em carta a de número 84, a Fliess, datada de dez de março de 1898, Freud relata: “parece-me que a teoria da realização de desejos trouxe apenas a solução psicológica, ou melhor, a metafísica. (Aliás, vou perguntar-lhe com seriedade se posso usar o nome de metapsicologia para minha psicologia que vai além da consciência)” (FREUD, 1980 l, v. 1, p. 369-370)

Desta forma, a psicanálise como saber da interpretação seria uma modalidade de discurso teórico bem próximo da especulação filosófica, o que impedia a inserção desta no registro da ciência. Mas Freud também criticava a psicologia da consciência em sua pretensão de fundamentar um saber da interpretação. Assim descreve Birman (1994) os impasses da psicanálise, no campo tortuoso da cientificidade do século XIX:

Exilado do campo da ciência pelas exigências positivistas de seus cânones e pelos ideais de verificação empírico de seus enunciados, apenas ficava para o discurso freudiano, como saber da interpretação, a possibilidade de encontrar a sua identidade teórica no campo dos saberes que foram excluídos

da cidade da ciência e da razão com a revolução científica dos séculos XVII e XVIII. Desta maneira, a psicanálise se encontra com o ideário teórico do Renascimento, silenciado definitivamente do mundo da cientificidade justamente porque a prática da interpretação constituía-se como uma de suas ferramentas fundamentais de trabalho. Com isso, a psicanálise foi identificada à demonologia e à alquimia, saberes que unificavam os territórios terrestre e celeste do cosmos pelos procedimentos da interpretação, e não pela leitura causal do universo infinito definido pela extensão (BIRMAN, 1994, p. 22-23).

A superposição da psicanálise aos campos da arte e da filosofia era frequente, de modo que Freud sempre recorria à linguagem metafórica para ilustrar suas hipóteses, como no exemplo da memória em ‘arquivos’, do psiquismo como um ‘aparelho telescópico’, dentre tantas outras metáforas por ele utilizadas como forma de ilustrar a anatomia fantasmática do psiquismo.

Birman verifica que o termo “construção” foi empregado por Freud com muita cautela, para designar o trabalho de interpretação do analista, a partir da rememoração do analisante, de onde seria possível validar ou invalidar as proposições interpretativas metapsicológicas:

com a ‘construção’ o psicanalista se defronta radicalmente com o que existe

de arbitrariedade na função de intérprete. Esse arbitrário da interpretação coloca um limite fundamental na representação empirista do saber psicanalítico, deslocando esse saber do campo de determinismo para o campo do indeterminismo (BIRMAN, 1994, p. 20).

Freud sempre colocava em dúvida suas hipóteses, temeroso de que estas pudessem resvalar para o campo do delírio, da especulação e da bruxaria alquimista, posto que a metapsicologia e a interpretação não se sustentavam sempre nos ideais de verificação e da empiria, como estas eram compreendidas no final do século XIX.

Para superarmos estes impasses e encontrarmos a direção teórica da pesquisa psicanalítica, faz-se necessário definir o campo da empiria da Psicanálise. Segundo Birman (1994), o quadro fundamental da empiria freudiana refere-se à investigação do psiquismo:

O psiquismo com que trabalha a psicanálise é um psiquismo de um sujeito concreto que fala para um outro de maneira constante e que tem no outro o seu polo fundamental de referência.[...] Este é o quadro fundamental da empiria freudiana, onde se estabelece uma experiência ao mesmo tempo

intersubjetiva e alteritária entre sujeitos, considerados como seres falantes lançados no circuito da interlocução (BIRMAN, 1994, p. 25).

Assim, foi a partir da elaboração teórica da experiência psicanalítica, constituída pela escuta de um sujeito que fala para um outro, que se construiu a metapsicologia e um saber centrado na interpretação.