• Nenhum resultado encontrado

Desamparo e demanda de amor

5 O CORPO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO: DO DESAMPARO À IDENTIDADE

5.1 Desamparo e demanda de amor

Amar

Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar ? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar ?

sempre, e até de olhos vidrados, amar? (ANDRADE, 2008 b, p. 230)

A cria humana, se comparada com as de outros animais, encontra-se, ao nascer, no mais completo estado de desamparo. Se nenhuma ação externa intervir para atender as necessidades fisiológicas do bebê, ele não sobrevive. Quando o estado de proteção intrauterina é interrompido pelo nascimento, inicia-se no recém-nascido um esforço de sobrevivência que o faz desenvolver suas primeiras relações com o mundo externo, esforço que resulta na construção de seu psiquismo, desde o início marcado pela dependência de outro ser humano com o qual vai desenvolver seus primeiros vínculos afetivos.

Enquanto que o preparo congênito para fazer face aos perigos reais é quase inexistente, a parte de nossa herança arcaica que tem referência com a perda do objeto cuidador, a figura materna, é extremamente intensificada. Assim, os bebês produzem uma sensibilidade muito aguçada em relação a quem satisfaz suas necessidades primordiais, tomando-os como os primeiros objetos de seu investimento libidinal.

Por intermédio da ação específica, que é uma alteração no mundo externo, promovida pela figura materna, que fornece o alimento que aplaca a fome do bebê, este obtém a eliminação das tensões desagradáveis que o perturbam, retomando assim o seu estado de equilíbrio. Quanto a isso, Freud assim se expressa:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de levar a cabo essa ação específica. Ela se efetua por intermédio de assistência alheia , quando a atenção de uma pessoa experiente é atraída para o estado em que se encontra a criança, mediante a condução da descarga pela via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da

comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial

de todos os motivos morais (FREUD, 1980 e, v. 1 p. 422).

O corpo biológico é a pré-condição do aparelho psíquico, uma vez que o corpo erógeno é uma organização libidinal apoiada no corpo biológico. No entanto, a psique é algo

que transcende o soma, uma vez que ela emerge dele para existir como algo além, com leis próprias de funcionamento, distintas das formas e manifestações do aparelho biológico. Mas então qual é a passagem que existe para que um corpo biológico possa emergir como um corpo erógeno, uma organização psíquica, sendo que o corpo erógeno é uma aquisição, posto que não nascemos com ele como é o caso do corpo biológico?

Esta passagem ocorre pela constituição da pulsão, que ocorre na interseção destes dois corpos, o corpo biológico e o corpo erógeno, como também na interseção do corpo da criança com o corpo do outro que dela cuida. O aparelho psíquico se apoia no biológico. A fonte da energia psíquica é somática, mas a pulsão conceitua um fenômeno que se encontra nos limites do biológico e do psíquico:

Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista

biológico, uma ‘pulsão’ nos aparecerá como sendo um conceito situado na

fronteira entre o mental e o somático, como a representante psíquica dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo (FREUD, 1980 n, p. 142, v. 14).

Freud (1980 n, p. 142-143) nos mostra a complexidade de fatores constituintes da pulsão, designada por ele como trieb: pressão (drang), finalidade (ziel), objeto (objekt) e fonte (quelle).

Por pressão (drang) de uma pulsão Freud compreende o seu fator motor, isto é, a quantidade de força ou medida da exigência de trabalho que ela representa, embora ele não esteja remontando a quantidades mensuráveis. A finalidade (ziel) de uma pulsão é sempre a satisfação, que só pode ser obtida por intermédio da eliminação do estado de estimulação (que produz tensão), na fonte da pulsão. O objeto (objekt) de uma pulsão é a coisa através da qual a pulsão é capaz de atingir a sua finalidade, podendo ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. A fonte (quelle) de uma pulsão é o processo somático que ocorre em uma parte do corpo, cujo estímulo é representado na vida mental pela pulsão.

Chama-nos a atenção na noção de pulsão a sua flexibilidade, o que nos mostra que nosso corpo se abre ao mundo como possibilidade de troca, de estabelecimento de vínculos afetivos, de comunicação e de criação de sentidos e significados. Há um organismo que é montagem biológica, mas também sentido. Este aspecto é ilustrado por Laplanche (1997):

No trieb sexual, tudo é variável. O objeto é contingente, é suscetível de todas as substituições; segundo Freud, sempre se pode substituir um objeto por outro. O alvo é suscetível de troca, de modificação, de inibição. As fontes,

enfim, estão conectadas umas às outras, suscetíveis de ‘vicariar-se’. Nessa

concepção, objeto, fonte e alvo na pulsão sexual são finalmente evanescentes. [...] O que resta da pulsão? Nada, exceto afinal a força, essa

drang que pela semântica é exatamente sinônimo de trieb (LAPLANCHE,

1997, p. 31-32).

A sexualidade envolve a implantação da fantasia, dos significantes enigmáticos que confrontam o corpo da criança, pelo impacto deste com o inconsciente parental. A sexualidade apóia-se na auto-conservação, ou seja, na nutrição alimentar do bebê, mas dela desliza-se para a dimensão da fantasia, que constitui a dimensão da própria sexualidade.

Laplanche (1988; 1997) subverte a noção de “apoio” da sexualidade nas funções de auto-conservação, revirando-a pela sedução. A relação de auto-conservação atrai a sedução. A sedução aqui não é um atentado sexual, um estupro, mas o confronto do inconsciente do adulto na experiência vital da criança, que nos mostra como se dá a gênese do sujeito humano, possuidor de um inconsciente e de uma sexualidade. Nas palavras de Laplanche:

Mas este mundo adulto não é um mundo objetivo que a criança teria que descobrir e aprender, como aprende a caminhar e a manipular coisas. Caracteriza-se pelas mensagens (linguísticas ou simplesmente semiológicas: pré ou paralinguísticas) que questionam a criança antes que ela as compreenda, e às quais deve dar sentido e resposta. [...] Há várias linguagens do adulto, linguagem verbal, linguagem dos gestos, da mímica e dos afetos. Há na criança uma potencialidade para entrar nestas línguas, potencialidade natural, instrumental e também afetiva. [...] A confrontação adulto - criança engloba uma relação essencial de atividade-passividade, ligada ao fato

inelutável que o psiquismo parental é mais ‘rico’ que o da criança

(LAPLANCHE, 1988, p. 118).

A assimetria contida na díade adulto - criança nos remete à presença de um “maior sentido”, mas de um maior sentido escondido, ignorado pela criança, conformando um enigma que a seduz em direção à sua decifração: “o enigma cujo móvel é inconsciente é sedução por si mesmo e não é em vão que a Esfinge está postada às portas de Tebas” (LAPLANCHE, 1988, p. 119).

O que o outro quer de mim? Esta indagação, ainda que formulada de uma perspectiva adulta (por parte de um esforço de compreensão deste, do que se passa com a criança nos primórdios de sua constituição, diante de um mundo pela frente a decifrar), coloca-nos no

cerne de uma demanda cultural e identitária: para humanizar-se e apropriar-se do acervo de sentidos e significados sintetizados na cultura, é preciso confrontar-se com o enigma do outro. As possíveis respostas a este enigma vão apontando os caminhos para os contornos do eu, de modo que a criança possa ir integrando em si mesma as experiências que lhe acontecem, sendo que é na totalidade psicossomático-afetiva que ela pode ou não integrar adequadamente o que vivencia.

Há, portanto, uma sedução originária, a presença de um maior sentido que se insinua na ação inconsciente do outro, na face sexual inconsciente da mensagem do outro: “pelo termo sedução originária qualificamos, portanto, esta situação fundamental na qual o adulto propõe à criança significantes não verbais tanto quanto verbais, e até comportamentais, impregnados de significações sexuais inconscientes. Do que chamo significantes enigmáticos” (LAPLANCHE, 1988, p. 119).

O ser cuidado pelo outro, o receber sentido e significação no gesto alheio nos coloca no âmago de nossa tessitura simbólica. Instaura-se aqui a ordem humana, a ordem da cultura pelo ato inaugural de um outro que fornece sentido e significado ao corpo do bebê, lócus da subjetividade nascente. Não sobrevivemos apenas do aparato orgânico, mas fundamentalmente do amparo do outro que nos acolhe.

Assim, muito cedo nos deparamos com nossa perplexidade diante do outro – sem esse outro essencial o eu se faz em pedaços: decomposição e recomposição, perda e recuperação. O laço primordial nos une ao outro para que deste possa emergir a composição de um corpo estruturado. Este corpo não nos pertence. Fomos capturados pelo olhar enigmático da alteridade, pelo universo simbólico-cultural que habitamos.

Esta é a geografia de que dispomos para nos fazer humanos, onde cabemos como gente, nos limites de um corpo investido de amor. Deste vínculo que angaria eficácia simbólica, posto que resulta em um sujeito viável, continuamos a depender no percurso de uma vida inteira. Nas palavras do poeta podemos ilustrar a incansável busca pelo amor:

Amar [...]

Este o nosso destino: amor sem conta,

Distribuído por entre as coisas pérfidas ou nulas, Doação ilimitada a uma completa ingratidão, E na concha vazia do amor a procura medrosa, Paciente, de mais e mais amor.

A herança do desamparo na constituição do sujeito nos coloca diante da demanda do amor do outro para que seja possível sua sobrevivência tanto material quanto psíquica. É neste sentido que Freud nos ensina que o desamparo inicial do sujeito é a fonte primordial de todos os motivos morais: a fragilidade da cria humana reclama cuidados e mobiliza a ação ética inerente aos cuidados maternos, únicos capazes de recompor o equilíbrio do corpo do bebê, quando inundado pelas tensões desencadeadas pela fome, frio, dores e demais demandas do recém-nascido.

A pulsão sexual é esta força plástica, que nos aproxima, que nos une aos objetos de satisfação, que podem sempre ser substituídos, quando de sua perda (o trieb sexual é variável, como vimos), o que nos permite seguirmos nos gratificando ao longo da vida. Estratégia de sobrevivência: perda e desligamento aqui, resgate do perdido ali, de modo que nesta procura medrosa deparamo-nos com nossa fragilidade originária, esta que é também nossa fortaleza, enquanto aponta para a eterna busca.

Há uma trajetória no processo de constituição do corpo-sujeito, que é desencadeada pelo desamparo e inaugurada pela noção de narcisismo, em Freud (1980 o). Introduzir o narcisismo é introduzir o eu na teoria psicanalítica. Vamos neste momento traçar o percurso de constituição do sujeito, a partir do estado de desamparo inicial.